Por: MpvM | 06 Dezembro 2019
"Maria dá espaço dentro de si para que Deus entre na nossa terra. E este espaço é dado na liberdade e no amor a um Deus que nos criou para viver essa amorosa liberdade, por isso Maria é mulher livre, livre até para dar de si mesma, de sua carne, para que Deus seja carne conosco. Essa liberdade só pode ser vivida através do Espírito de Deus, é ele que sopra, que seduz Maria, que sussurra em seu ouvido a Palavra de Amor de um Deus apaixonado pelo ser humano."
A reflexão é de Viviane Moreira, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Ela trabalha no Instituto Interdisciplinar de Leitura e Cátedra Unesco de Leitura PUC -Rio no Setor de Comunicação e Tecnologia da Informação e Comunicação. Tem experiência como assessora de CEBs, Pastoral da Juventude e na área de Educação, com ênfase em Educação a Distância, atuando principalmente no seguinte tema: Transdisciplinaridade, Feminismo, Religião e Tecnologia de Informação e Comunicação.
Referências bíblicas
1ª Leitura - Gn 3,9-15.20
Salmo - Sl 97(98),1.2-3ab.3cd-4 (R. 1a)
2ª Leitura - Ef 1,3-6.11-12
Evangelho - Lc 1,26-38
Neste segundo domingo do Advento, nossa liturgia festeja a Imaculada Conceição de Maria. Dentro deste tempo em que nos preparamos para celebrar o mistério da natividade do Senhor, somos convidados a contemplar a grandeza d'Aquela que "encontrou graça diante de Deus".
A primeira leitura (Gn 3,9-15.20) nos traz a imagem da serpente apresentada como o mal, o inimigo da humanidade. É preciso lembrar que o texto não é uma reportagem jornalística, mas uma maneira teológica que os autores encontraram de explicar a criação do mundo e dos seres humanos. Para a maioria dos comentadores o relato da criação contido em Gn 2,4b-3,24, do qual faz parte o texto de hoje, é um texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época do rei Salomão. O texto apresenta homem e mulher confrontados com o resultado das suas opções erradas e as consequências que daí advieram, quer para o homem, quer para o resto da criação. É importante atentar para forma de como o texto apresenta Deus como um juiz justo, que antes de punir, investiga, interroga. Escuta o homem e a mulher, mas não dá voz à serpente. Não se pode dar voz ao mal. Por fim a sentença é a inimizade entre a humanidade e a “serpente” e a sina da mesma de ter “a cabeça esmagada” pela descendência da mulher. A interpretação judaica e cristã dessa passagem é a da profecia messiânica da vinda Daquele que irá, na dinâmica da graça, vencer finalmente o mal.
A primeira leitura nos convida a repensar nossas escolhas em um mundo onde o mal tomou outras formas: a corrupção, o poder, a ganância, o hedonismo. A lembrar que o mal resulta das nossas escolhas erradas, do nosso orgulho, do nosso egoísmo e autossuficiência. Deus nos criou para a felicidade e para o amor, sobretudo o amor ao próximo.
Por isso, o ultimo versículo desta primeira leitura, no dia de hoje, é tão importante. “O homem deu à mulher o nome de 'Eva', porque ela foi a mãe de todos os viventes. ”Somos filhos de uma mesma mãe, somos todos irmãos. E entre irmãos não pode haver espaço para o mal. Dividimos a mesma casa comum, sofremos com as mesmas humanas dores, nos alegramos com a beleza deste mundo nos dado gratuitamente. Em nós só deveria haver espaço para “cantar ao Senhor um cântico novo” (Salmo 97/98) todos os dias de nossas vidas.
Como diz a epístola do apóstolo São Paulo aos Efésios (Ef 1,3-6.11-12), Deus “nos predestinou, conforme a benevolência da sua vontade, a fim de sermos seus filhos adotivos, por Jesus Cristo, para louvor da sua glória e da graça que derramou sobre nós, por seu amado Filho” (Ef 1,5-6). Somos filhos de um Pai amoroso e misericordioso e de uma mãe fiel, forte e corajosa.
É essa a fidelidade ao projeto da salvação que é exaltada na voz do anjo: “Ave cheia de graça” (Lc 1,28).
Toda a teologia da terra presente nas escrituras antigas se realiza em Maria: ela é a terra prometida, a mãe de cujas entranhas nasce a vida, a nova Eva, mãe da vida; a filha de Sião; a esposa do Senhor; o Paraíso como fonte de água viva; a raiz de Jessé, a terra fértil e bendita da qual germina o salvador (Is 4,2). Os pais da Igreja e os escritores cristãos enfatizam que Maria foi a terra bendita onde o Verbo se fez carne. A terra imaculada, a terra virgem.
Sendo a Palavra de Deus o seu poder criador e criativo, Ele a profere na geração de Jesus em Maria. O Verbo, o plano de Deus pela ação do Espírito Santo (Lucas 1,35), se fez carne e carne de mulher como professava a Igreja já nos seus primeiros séculos.
Toda mulher é mãe não só do corpo, mas da pessoa toda inteira do filho que gera e traz por nove meses em suas entranhas, alimentando-o depois com o leite produzido e gerado desde dentro de sua própria corporeidade. Não se podendo separar, em Jesus Cristo, a humanidade e a divindade, também não se pode separar, em Maria, a mulher simples de Nazaré‚ e aquela que a Igreja venera e cultua como Mãe de Deus e Mãe da Igreja.
A carne de Maria, que teceu e formou em suas entranhas, célula por célula, aquilo que seria a carne humana do Verbo de Deus, é parte integrante do mistério da Encarnação. Desse Deus que deseja nossa Salvação e desse ser-humano que em sua dimensão mais profunda também deseja esse Deus.
Pelo mistério da Encarnação de Deus, mistério central da fé cristã, do qual o mistério da Theotokos* é parte integrante, pode-se afirmar que a grandeza e a infinitude do Espírito de Deus só pode ser encontrado na fragilidade, na pobreza e nos limites da carne humana. No entanto, a grandeza do sim de Maria foi muitas vezes interpretada como forma de submissão.
Maria dá espaço dentro de si para que Deus entre na nossa terra. E este espaço é dado na liberdade e no amor a um Deus que nos criou para viver essa amorosa liberdade, por isso Maria é mulher livre, livre até para dar de si mesma, de sua carne, para que Deus seja carne conosco. Essa liberdade só pode ser vivida através do Espírito de Deus, é ele que sopra, que seduz Maria, que sussurra em seu ouvido a Palavra de Amor de um Deus apaixonado pelo ser humano.
Enfatizar a liberdade de Maria diante da vontade divina significa recuperar a beleza e a grandeza do amor de Deus pelo ser humano, significa superar a imagem do “deus todo poderoso” intervencionista e aceitar o Deus – Pai de Jesus Cristo – cujo poder é o poder ‘com’, que está sempre nos persuadindo a cocriar um mundo mais cheio de alegria para todas as pessoas e todos os seres na rede da vida.
Essa é a Maria que pelo seu sim diz não a toda e qualquer forma de submissão e opressão. A personificação feminina da Igreja deve fazer uso de um evangelho libertador, livre de todo preconceito, pois a liberdade é característica fundamental dos filhos de Deus e, portanto, deve ser também da Igreja.
Celebrar a Imaculada Conceição de Maria é celebrar a Maternidade da Igreja e a responsabilidade de todas nós mulheres com a cocriação deste mundo sonhado por Deus.
* Nota do IHU: Theotokos é um termo grego utilizado somente em referência a Maria pelos padres da Igreja nos primeiros séculos da Igreja e significa "Mãe de Deus". Embora o uso do termo já fosse utilizado em liturgias e pregações, é somente no Concílio Ecumênico de Éfeso, após diversas controvérsias, que Maria foi proclamada "Mãe de Deus" e este título passa a fazer parte formalmente da doutrina da Igreja a respeito de Maria.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Segundo Domingo do Advento - Ano A - Imaculada Conceição de Nossa Senhora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU