Ninguém quer morrer, disse
Steve Jobs. No discurso para formandos da Universidade de Stanford que entraria para a história, o fundador da
Apple continuou o raciocínio: "Ainda assim, a morte é o destino que todos nós compartilhamos. Ninguém nunca conseguiu escapar. E assim deve ser, porque a morte é muito provavelmente a principal invenção da vida. É o agente de mudança da vida."
A reportagem é de
Marta Barcellos e publicada pelo jornal
Valor, 04-11-2011.
Jobs inventou a nossa relação com a tecnologia, porém sucumbiu à "principal invenção da vida" mais cedo do que o esperado. Morreu aos 56 anos, enquanto a expectativa de vida para homens nascidos nos Estados Unidos em 1955 era de 66,6 anos. Mas a morte do empresário, vítima de um câncer pancreático, poderá ser vista no futuro como ainda mais precoce. Da mesma forma como hoje nos espantamos com mortes que seriam evitadas no passado com um simples antibiótico, poderemos lamentar que o gênio da tecnologia não tenha chegado a usufruir de avanços que estavam tão próximos em áreas como terapia genética e reconstrução de órgãos. Para alguns cientistas, estamos às vésperas de uma extensão radical na longevidade humana, e a primeira pessoa que viverá 150 anos já nasceu.
Mas será que
Jobs gostaria de viver tanto, se tivesse o pâncreas reconstruído pela engenharia de tecidos e o câncer debelado por genes terapêuticos? A julgar pelo discurso em Stanford e pela hesitação diante da cirurgia indicada na ocasião para extirpar o seu câncer, talvez não. Motivações filosóficas, porém, tendem a ser ofuscadas em debates sobre a existência humana quando entra em cena a promessa grandiosa de uma vida prolongada, com saúde e menos sofrimento. "Chegará um tempo em que problemas de saúde serão raros, assim como hoje são raras as doenças infecciosas nos países desenvolvidos", afirma a futuróloga
Sonia Arrison, que acaba de lançar nos Estados Unidos o livro "
100 Plus: How the Coming Age of Longevity Will Change Everything, From Careers and Relationships to Family and Faith" (Basic Books, 2011).
A previsão de que nossa longevidade dobrará neste século, amparada por cuidadosa pesquisa em torno de progressos comprovados na medicina e na biotecnologia, destaca o livro de
Sonia no segmento de títulos que prometem revelar os segredos de uma vida longa e saudável, um filão crescente nos Estados Unidos. O assunto empolga também no Brasil, onde o interesse vai desde as 150 pílulas alternativas tomadas diariamente pela jornalista
Glória Maria para retardar o envelhecimento até os avanços obtidos por pesquisadores brasileiros como o neurocientista
Miguel Nicolelis, que impressionou a plateia da última
Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) ao afirmar que "estamos próximos do instante em que o cérebro vai se libertar dos limites físicos do corpo".
Depois de desenvolver uma nova técnica cirúrgica, baseada na simulação elétrica da medula espinhal, testada como novo tratamento para o mal de Parkinson,
Nicolelis criou uma interface cérebro-máquina que poderá ser desenvolvida junto com um exoesqueleto robótico de corpo inteiro. Ou seja, além da substituição de órgãos que começam a falhar por outros feitos sob medida com nosso DNA, como se fossem peças de um automóvel, podemos no futuro prescindir do corpo inteiro, envelhecido, enquanto nosso cérebro estiver saudável.
O cenário de ficção científica pode parecer exagerado se considerarmos que o experimento de
Nicolelis envolve até agora macacos e o sucesso da terapia genética para retardar o envelhecimento, e também a evolução de doenças degenerativas, foi comprovado apenas em animais de laboratório. Exageros, de fato, existem. O gerontologista inglês
Aubrey de Grey, por exemplo, caiu em descrédito ao prever que a próxima geração viverá mil anos, quando os experimentos mais espetaculares de manipulação genética possibilitaram uma vida seis vezes maior apenas em um pequeno verme - o "Caenorhabditis elegans", alterado geneticamente pela biologista molecular
Cynthia Kenyon, da Universidade da Califórnia.
No entanto, longe dos laboratórios já há resultados concretos - e impressionantes - de cura em humanos, a partir da utilização de células-tronco, envolvendo casos de cegueira e de alguns tipos de câncer. Sonia Arrison destaca a história de uma mulher de 30 anos,
Claudia Castillo, que precisava de um transplante de traqueia depois de ter sofrido danos irreversíveis em seus órgãos respiratórios por causa da tuberculose. Os médicos usaram a traqueia de um doador, limparam-na com substâncias químicas para matar todas as células e revestiram a estrutura que restou com células da própria paciente - evitando, assim, a rejeição ao órgão doado.
O sucesso da cirurgia foi considerado emblemático da nova fase da medicina regenerativa, cujo financiamento conta com a ajuda decisiva do Departamento de Defesa americano. "O governo dos Estados Unidos vem aplicando muito dinheiro nesse campo porque gostaria de ser capaz de recuperar os soldados que voltam para casa com sérios ferimentos", diz a escritora americana. "O [projeto] Genoma Humano redundará em imensos progressos e novas formas de tratamento", prevê também o médico brasileiro
Alexandre Kalache, que chefiou o Programa de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS) e é conselheiro em envelhecimento da Academia de Medicina de Nova York. "Para uma minoria, com acesso à alta tecnologia, talvez não haja limites do que possa ser feito no sentido de oferecer-lhe longevidade com saúde."
A questão levantada por
Kalache é um dos poucos pontos a preocupar a otimista Sonia. Tudo indica que aumentará a disparidade entre a esperança de vida de uma elite e o resto da população mundial, que pode contar no máximo com os anos extras proporcionados por mudanças no estilo de vida - fugindo do cigarro, do excesso de álcool, do sedentarismo e das dietas pouco saudáveis.
Kalache prefere "pôr os pés na terra" e fugir das especulações sobre o bebê que terá 150 ou mil anos. "Não estou interessado nelas", diz. "O que mais me entusiasma é a nossa compreensão sobre a importância de nossos hábitos de vida e dos fatores sociais que determinam o envelhecimento saudável e ativo."
Já
Sonia torce para que os avanços tecnológicos rumo à expansão da longevidade cheguem rápido às camadas menos favorecidas da população global, pulando etapas, assim como os celulares se tornaram acessíveis em países que mal tinham um sistema de telefonia fixa. "Historicamente, a distribuição das novas tecnologias vem se acelerando", lembra. Além disso, na prática, a humanidade já estaria dividida em categorias que vivem mais ou menos tempo, sem que para isso se desenhem cenários de ficção científica: "Uma pessoa morando em Mônaco pode esperar viver 89 anos, enquanto outra em Angola tem uma expectativa de apenas 38 anos", compara a escritora.
A esperança de vida ao nascer, ressalta o demógrafo
José Eustáquio Alves, é uma média muito influenciada pela mortalidade infantil - o que de certa forma explica o seu expressivo crescimento à medida que mortes de crianças são evitadas. O resultado é que nas últimas seis décadas a população mundial tem ganhado 2,5 anos de vida a cada 10 anos, o que representou um acréscimo de 15 anos. "Os otimistas acreditam que esse ritmo vai continuar", diz
Alves, professor titular do mestrado em estudos populacionais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence) do IBGE. De qualquer forma, como a taxa de fecundidade vem caindo, a população mundial envelhece rapidamente, inclusive no Brasil, onde o número de pessoas com mais de 90 anos aumentou de 261 mil em 2000 para 449 mil em 2010, um salto de 72%, segundo dados do IBGE.
Alves é cético em relação ao ritmo de aumento da longevidade porque o impacto da redução de mortes precoces deve diminuir, ao mesmo tempo em que o ser humano parece ter encontrado uma espécie de limite documentado para a espécie. Oficialmente, o recorde de longevidade pertence à francesa Jeanne Calment, que morreu em 1997 aos 122 anos. No ano passado, a brasileira
Maria Gomes Valentim, moradora de Carangola (MG), chegou a deter o título de "decano da humanidade", reconhecido pelo Guinness World Records, mas morreu pouco antes de completar 115 anos. "Passar dos 100 anos está fácil", diz
Alves. "Mas os estudiosos perceberam que ultrapassar os 115 é quase impossível, como se esse fosse um limite, do cérebro e do corpo."
O limite atual seria dado pela nossa divisão celular, afirma o presidente da Academia Brasileira de Medicina Antienvelhecimento,
Kose Horibe. "Como nossas células têm potencial para se dividir 54 vezes, nosso corpo pode viver até 120 anos, se atrasarmos cada fase da divisão celular." É aí que entram as medidas antienvelhecimento, que pautam a entidade criada nos moldes da academia americana, difusora do conceito repudiado por gerontológos que defendem o envelhecimento como um processo natural - e não a ser evitado.
Quem pretende adiar ao máximo o envelhecimento deve, por exemplo, seguir uma dieta bastante restritiva do ponto de vista calórico, o que comprovadamente retarda o processo de divisão das células. Horibe, que tem 70 anos, faz a dieta, assim como segue as indicações do livro "
The Project Longevity", no qual os pesquisadores
Howard Friedman e
Leslie Martin analisaram um estudo de oito décadas com 1.500 americanos desde a infância, concluindo sobre quais hábitos levam à longevidade, como a maneira de pensar e se exercitar.
Cirurgião plástico com doutorado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP),
Horibe acompanha os estudos antienvelhecimento internacionais e reconhece que é preciso desconfiar das novidades. "Existe um comércio grande em torno de efeitos miraculosos." Mas se entusiasma diante dos experimentos com comprovação científica: "A prevenção do envelhecimento tende a ficar mais eficaz com os diagnósticos de doenças latentes. As tecnologias da substituição vão permitir transplantes feitos a partir do nosso DNA, e poderemos trocar partes preventivamente, como fazemos com os carros."
A comparação entre corpos e automóveis, presente também no livro de
Sonia Arrison, é um prato cheio para filósofos. "A tecnociência contemporânea se move em direção a um projeto de ultrapassagem da finitude", diz
Maria Cristina Franco Ferraz, doutora em filosofia pela Universidade de Paris I-Sorbonne e professora titular de teoria da comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF). "Enquanto no século XIX o avanço visava a um aprimoramento das condições da vida humana sobre o planeta, na contemporaneidade ele passou a almejar a superação da insistente tendência do "orgânico" ao envelhecimento, à obsolescência e à degradação."
Na medida em que envelhecer deixa de ser "natural" e perde qualquer sentido positivo, surgem novos problemas éticos e existenciais, diz
Maria Cristina. Evitar o envelhecimento tornou-se um "imperativo e dever moral", que solicita a responsabilização pelo próprio corpo, pela saúde e pelas doenças. Para aumentar a angústia de quem conta rugas no espelho e faz check-up anual, ela acrescenta que o envelhecimento contraria valores das sociedades liberais avançadas, tais como autonomia e independência social e financeira.
"Envelhecer, em nossa cultura, passou a ser algo pelo qual somos responsáveis, se não quisermos viver o inferno da "dependência" em uma sociedade em que laços afetivos duradouros vão visivelmente se esgarçando", afirma
Maria Cristina, autora de "
Homo Deletabilis: Corpo, Percepção, Esquecimento: do Século XIX ao XXI" (Garamond/Faperj). "Os eufóricos a respeito da busca da longevidade talvez não tenham se dado conta dessas questões." A filósofa termina se perguntando, como outros entrevistados desta reportagem: e por que seria melhor viver muito tempo?
Em "
100 Plus...", Sonia Arrison rebate as críticas ao que alguns já chamam de "tecnolongevidade". "Argumentos contra a extensão da vida são muitas vezes simplesmente um apelo ao status quo. Dizem que, se os seres humanos vivessem mais, o mundo de alguma forma seria menos nobre, belo ou emocionante. Mas o que há de nobre, belo e emocionante na deterioração e no declínio? O que é moralmente suspeito em amenizar o sofrimento humano?" Ela enfatiza que o motivo de seu otimismo reside não no prolongamento da vida em si, mas no prolongamento da saúde humana. Indagada sobre quantos anos gostaria de viver, ela responde que almeja o máximo possível - com saúde.
Com corpo e mente saudáveis, de qualquer forma, outras questões terão de ser enfrentadas, nos relacionamentos, no trabalho e nas finanças. Enquanto os governos, desde já, precisam reavaliar seus sistemas de previdência e seguridade, do ponto de vista individual a aposentadoria deveria ser redefinida como um tempo livre para o retreinamento para uma nova carreira, diz Sonia, apresentando estudos que mostram a longevidade produtiva como fator de enriquecimento dos países. Com uma expectativa média de 150 anos, mais casamentos serão possíveis ao longo da vida, poderá haver maior diferença de idade entre cônjuges e também entre irmãos - o número de pais idosos tenderia a aumentar com o congelamento de óvulos e a evolução das tecnologias de reprodução.
Esse futuro pode ser distante para a maioria, mas para
Glória Maria parece bem palpável. "Se puder, estico a vida até uns 180 anos", afirma a jornalista do "Globo Repórter". "Agora que tenho minhas filhas, serei obrigada a viver pelo menos mais 50 anos."
Glória não diz com quantos anos se tornou mãe das filhas adotivas
Maria e
Laura, de dois e três anos, para não revelar a idade - estimada em "terceira idade" pelas revistas de celebridades que a perseguem atrás da fórmula de sua aparência jovem. "Uso tudo o que estiver à disposição", resume. Além de não beber álcool, não fumar nem comer carne vermelha, toma cerca de 150 pílulas ao longo do dia. "Fui incorporando o que eu descobria, por isso são tantas."
As "descobertas" se referem mais a substâncias naturais e alternativas do que a novidades científicas - que ela, no entanto, não descarta utilizar. "Trocaria um órgão meu que estivesse com problemas, mas não substituiria preventivamente. Aí já é birutice total." Influenciada pelas reportagens que fez viajando pelo mundo quando era apresentadora do "Fantástico", a jornalista incluiu no seu arsenal "anti-aging" excentricidades como ninhos de passarinho importados da China, cujos microorganismos agiriam na elasticidade da pele. "Se funcionou com os samurais, por que não vai funcionar comigo?", pergunta.
O motivo de ela se empolgar mais com as novidades da medicina alternativa do que com a tecnologia foi a sua observação dos hábitos de pessoas centenárias - de uma comunidade isolada no Japão à sua avó, que morreu lúcida aos 104 anos. "Eu aceitaria ficar congelada por dez anos se me garantissem a fórmula da imortalidade quando eu acordasse", afirma. "Acho morrer uma inutilidade."
A imortalidade na literatura, retratada quase sempre de forma sombria, é citada por aqueles que temem o prolongamento da vida. Em "Todos os Homens São Mortais", de Simone de Beauvoir, um conde que toma o elixir da juventude se cansa de tentar mudar o destino da humanidade, cita o demógrafo Alves, para justificar a idade com que gostaria de morrer: "Cem anos está bom. A fila anda." O médico Kalache cita "As Intermitências da Morte", romance de José Saramago no qual a morte é abolida de um país, para rechaçar o desejo da imortalidade: "Ela roubaria da humanidade sua inocência e humildade. Viver em um mundo arrogante seria um martírio para mim." Já a filósofa
Maria Cristina lembra de "
Os Imortais", conto de
Jorge Luis Borges que narra o "tédio mortal sentido pelos que nunca morrem": "O fato de sermos os únicos a sabermos que vamos morrer é um aguilhão que dá sabor e intensidade à vida. Além disso, é uma grande generosidade saber sair de cena para que novos seres nasçam."
E voltamos assim ao discurso de
Steve Jobs, que precocemente abriu o seu lugar para
Tim Cook na Apple ou para outro gênio da tecnologia talvez presente na formatura de Stanford: "A morte é o agente de mudança da vida", continuou o discurso. "Ela limpa o velho para abrir caminho para o novo. Neste momento, o novo é você. Mas algum dia, não muito distante, você gradualmente se tornará um velho."
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