01 Agosto 2011
Como se já não estivesse clara, os recentes eventos enfatizaram conclusivamente a seguinte observação: exatamente agora, as pessoas que têm queixas contra o Vaticano sentem o cheiro de sangue na água.
A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 29-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Considere-se o que vimos apenas nos últimos 10 dias:
- Na segunda-feira, o Vaticano chamou de volta o seu embaixador na Irlanda para consultas, depois de um duro ataque no dia 20 de julho do primeiro-ministro irlandês, Enda Kenny, contra a "disfunção, a desconexão e o elitismo, o narcisismo, que dominam a cultura do Vaticano até hoje". Kenny estava reagindo a um recente relatório do governo sobre a diocese de Cloyne, que constatou que as alegações de abuso sexual estavam sendo mal geridas ainda em 2009. Algumas pessoas na Irlanda sugeriram a ideia de estender a imputabilidade criminal pela não denúncia dos abusos até mesmo para o sacramento da confissão.
- A China está seguindo em frente com a ordenação ilícita de bispos católicos, desafiando a autoridade papal, incluindo a diocese de Leshan no final de junho e a diocese de Shantou em meados de julho. Abandonando sua usual diplomacia "um passo à frente, um passo atrás", as autoridades chinesas emitiram uma declaração nesta semana explodindo o "irrazoável" e "brutal" resposta vaticana ao declarar os bispos excomungados (a declaração também afirmava que os bispos são "devotos em sua fé", o que, como observou o renomado sinólogo Pe. Bernardo Cervellera, equivale à irônica inversão de ter a sua ortodoxia católica certificada por um Estado oficialmente ateu).
- Mesmo na Itália, os críticos estão saindo da toca. Nesta semana Pietro Orlandi exigiu que o Vaticano abra seus arquivos secretos para revelar a verdade sobre o desaparecimento, em 1983, de sua irmã Emanuela, que continua sendo um dos grandes mistérios não resolvidos da vida italiana contemporânea. Na época, a família Orlandi vivia dentro da cidade-estado do Vaticano como empregados. Recentemente, um ex-membro da máfia italiana afirmou que o Vaticano devia a gigantesca quantia de 20 bilhões de liras (aproximadamente 12,5 milhões dólares), e Emanuela foi pega em uma tentativa de forçar o pagamento. Pietro Orlandi disse ao jornal italiano La Stampa que ele considera essa sugestão perfeitamente confiável e quer que as autoridades vaticanas digam a verdade.
Se o Papa Bento XVI, atualmente de veraneio em Castel Gandolfo, sentir uma dor de cabeça chegando, não é difícil entender o porquê.
A novidade não é a crítica em si mesma. Correntes importantes na Irlanda há muito tempo se sentem ofendidas com aquilo que veem como privilégio clerical e vestígios da teocracia. Os chineses sempre temeram uma Igreja Católica cuja lealdade corre mais para Roma do que para Pequim. E os italianos com mentalidade conspiratória geralmente acreditam que o Vaticano é capaz de qualquer coisa. A novidade, ao contrário, é a desfaçatez dessas irrupções, que sugerem uma sensação de inimigo ferido.
Claro, pode-se ter diferentes pontos de vista dos méritos em cada caso.
Na Irlanda, se poderia argumentar que a falha central em Cloyne com o ex-bispo John Magee não foi tanto a obediência cega ao Vaticano, mas sim a oposição a ela. Começando em 2001, Roma assumiu uma linha mais dura com relação aos casos de abuso, exigindo que as acusações fossem encaminhadas à Congregação para a Doutrina da Fé e aconselhando que os bispos cooperassem com a polícia e os procuradores. Obviamente esse não foi o caminho seguido por Magee, talvez porque, como ex-secretário particular de três papas, ele se sentia livre para fazer o que quisesse. Nesse sentido, a história de Cloyne pode ser menos sobre um acobertamento orquestrado pelo Vaticano do que sobre a falta de supervisão sobre os bispos.
Também é possível apontar que houve um relatório do governo sobre Cloyne em parte porque a Igreja Católica na Irlanda conduziu a sua própria investigação em 2008. O Conselho Nacional para a Salvaguarda das Crianças, dirigido pela Igreja, foi duramente crítico contra Magee naquele momento, tanto que seus assessores ameaçaram protestar oficialmente. Pode-se, assim, argumentar que Cloyne prova que as novas salvaguardas da Igreja, embora tardias, realmente funcionam.
Finalmente, também se pode detectar o cheiro da política nas observações de Kenny. Na Irlanda, nos dias de hoje, enfrentar o Vaticano é um investimento razoavelmente livre de risco para qualquer pessoa que busque apoio público.
Na China, parece claro que, sempre que alguém e pronuncia sobre os procedimentos para a seleção dos bispos, a política do governo não tem a ver com a defesa de princípio à Igreja local, mas sim com a manutenção do monopólio do Estado sobre o poder. As autoridades chinesas podem muito bem ter calculado que agora é o momento de seguir em frente, já que os recentes golpes contra a autoridade moral do Vaticano sugerem que os governos ocidentais podem estar menos inclinados a vir em sua defesa a título da liberdade religiosa.
Na Itália, certamente se poderia questionar até onde se deve valorizar o testemunho de ex-mafiosos – especialmente pessoas que parecem interessadas em se tornar celebridades da prisão.
A resposta do Vaticano
Deixando de lado os erros e acertos, no entanto, a linha de fundo é que, em um número crescente de contextos culturais, escancaram-se as frustrações acumuladas. A questão agora é: como o Vaticano irá responder?
Será que as autoridades irão engolir isso, concluindo que, embora sintam que uma parte dessa crítica é exagerada ou injusta, sua ênfase deve estar na generosidade – entendendo por que as pessoas se sentem feridas e tentando chegar a um acordo com elas?
Esse pareceu ser o tom de uma declaração do dia 21 de julho do porta-voz do Vaticano, o padre jesuíta Federico Lombardi, sobre a Irlanda. Apesar de insistir que o debate deve ter a "objetividade necessária", Lombardi disse que o Vaticano quer fazer todo o possível para "restaurar a confiança" entre a Igreja e a sociedade. Intencionalmente, ele evitou qualquer forma de revide ao primeiro-ministro irlandês.
Claro, Lombardi é uma alma lendariamente gentil, cujas declarações são sempre racionais e comedidas. Às vezes, no entanto, não fica totalmente claro até que ponto ele é capaz de falar em nome de uma atmosfera de opinião mais ampla no Vaticano.
A outra opção é sucumbir a uma mentalidade "eles estão nos perseguindo", induzindo as autoridades a lacrar as escotilhas e a cortar as linhas de conversação.
Especialmente em um momento em que o Papa Bento XVI apelou a uma "Nova Evangelização" do mundo secular, muita coisa pode depender de que lado sopram os ventos. Talvez um resultado não intencional dessa fermentação pode ser um sentido de orientação para o recém-lançado Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, que, desde o começo, pareceu a alguns observadores como uma causa nobre na busca de uma descrição de trabalho.
Com seus membros muito proeminentes, incluindo alguns dos principais pesos pesados do mundo católico, talvez o novo Conselho possa assumir a liderança no desenvolvimento de uma resposta do paciente e humilde às críticas, vendo isso como um pré-requisito para qualquer esforço missionário de sucesso.
Como uma nota de rodapé, a "nova evangelização" é o tema da reunião anual do Papa Bento XVI com seus ex-alunos, conhecida em alemão como o seu Schülerkreis, que está programado para os dias 26 a 28 de agosto, em Castel Gandolfo. Também será o tema da próximo Sínodo dos Bispos em Roma, agendado para os dias 7 a 28 de outubro de 2012.
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Críticos do Vaticano sentem cheiro de sangue na água - Instituto Humanitas Unisinos - IHU