Por: Jonas | 21 Junho 2013
A desocupação do Parque Gezi, em Istambul, e a repressão no Rio de Janeiro possuem em comum a mesma coisa que a maioria das manifestações de 2013, seja pelo estupro de uma pessoa na Índia, por reivindicações estudantis, no Chile, ou trabalhistas, no México, e contra a austeridade na Europa: o gás lacrimogêneo. No orçamento da Espanha, uma das poucas exceções no corte realizado foi em relação ao material antidistúrbio.
Fonte: http://goo.gl/5ppWH |
Ao mesmo tempo em que baixou o gasto em saúde, educação e segurança social, o gasto com materiais antidistúrbios disparou de 173 mil euros para mais de 3 milhões em 2013. No Oriente Médio, a Primavera Árabe resultou num remédio para a indústria da segurança. No ano passado, o mercado da segurança interna atingiu os 6 bilhões de euros, um aumento de 18%.
É um mercado de contradições e de duplos discursos. Em um momento em que os Estados Unidos aprovaram o fornecimento de armas aos rebeldes na Síria, por terem sido atacados com armas químicas, ninguém se lembra que o gás lacrimogêneo é considerado uma arma química pela ONU e que as companhias estadunidenses são dominantes no mercado, com a crescente concorrência de empresas chinesas e da brasileira Condor Non-Lethal Technologies. O próprio Departamento de Estado defende o seu uso abertamente, dizendo que é uma arma “não letal”, que “salva vidas e protege a propriedade”. O jornal Página/12 conversou sobre o assunto com Anna Feigenbaum, que pesquisa a história política do gás lacrimogêneo, na Universidade de Bournemouth, no Reino Unido.
A entrevista é de Marcelo Justo, publicada no jornal Página/12, 19-06-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
A história do gás lacrimogêneo parece ter sido reescrita nas últimas décadas. É uma arma química ou não é? É uma arma letal ou não?
Nos protocolos de guerra da ONU, é uma arma química. O que ocorre é que ao final da Primeira Guerra Mundial vários países, em especial os Estados Unidos, embarcaram-se numa ofensiva para manter sua produção em tempos de paz. Os Estados Unidos lançaram uma estratégia específica de “marketing” com a polícia, guarda nacional e até realizando exibições especiais na Casa Branca para demonstrar sua utilidade. Assim, criaram a demanda pelo produto. Do lado da oferta, ou seja, da produção, a indústria do gás lacrimogêneo modernizou o complexo industrial-militar, que tinha começado a desenvolver em inícios do século, aceitando a cooperação entre químicos da universidade, militares, a burocracia estatal e as corporações privadas.
Porém, hoje, rebatizou-se o produto. Não se fala em “arma química” como na Primeira Guerra Mundial. Isso causaria horror. O que temos é uma arma “não letal”.
Este jogo com a linguagem aconteceu no início. Por um lado, oferecia-se o gás lacrimogêneo como uma arma multiuso, para atacar e se defender, que inicialmente teve como principal função a ruptura de greves. Ao mesmo tempo, enfatizava-se que não era “tóxica” e que não produzia nenhum dano duradouro. Foi um grande movimento de relações públicas, evidenciado por uma pesquisa em 1939.
Em que momento se “universaliza” o uso do gás lacrimogêneo, para aquilo que se chama controle das multidões?
Nos anos 1930, começa-se a exportá-lo para as colônias e países periféricos. Os Estados Unidos o utiliza nas Filipinas e no Panamá, o governo britânico na Índia. Na época, também no Oriente Médio, embora exista discordância, a esse respeito, entre os historiadores.
Nos anos 1960, era parte comum na paisagem das manifestações latino-americanas.
É uma das coisas mais perigosas que aconteceu, porque o uso de gás lacrimogêneo foi naturalizado, quando na realidade se trata de um veneno que ocasiona uma série de danos comprovados, muito mais sérios do que é admitido em nível oficial, principalmente perigoso para as pessoas que possuem problemas respiratórios, problemas epiléticos ou pessoas mais velhas. E em nível político é também muito perigoso, porque está se naturalizando um tipo de resposta repressiva sobre o direito de livre expressão e reunião.
O argumento da indústria e dos governos é o que de que este é melhor do que as armas para o controle de manifestações e distúrbios. Chamam-nas não letais e o Departamento de Estado disse que “salvam vidas”.
Na Turquia, no Egito, em Bahrein, o gás lacrimogêneo está sendo utilizado como se fosse uma arma, ou seja, é usado em lugares fechados e, às vezes, como munição que se dispara contra alguém. A ideia de que é melhor do que outras armas, como as armas de fogo, tem dois problemas básicos. Primeiro é que, do ponto de vista dos direitos civis, concebe-se que a alternativa está na arma de fogo ou no gás lacrimogêneo, ao invés de se concentrar na possibilidade da mediação, do diálogo e da solução dos problemas que motivaram o protesto. Então, a opção passa a ser: nós os metralhamos ou envenenamos com gás lacrimogêneo. O segundo problema é que o gás lacrimogêneo, normalmente, é usado junto com outras formas de controle de massas, como os carros hidrantes ou as balas de borracha. Isto faz parte de sua origem militar. Na Primeira Guerra Mundial, o gás lacrimogêneo foi pensado como um precursor para outras formas de ataque, já que obrigava os soldados a saírem de suas trincheiras e deixavam-lhes expostos a outras armas mais letais. Algo semelhante acontece nas manifestações. O gás lacrimogêneo cria caos, impede que as pessoas possam se proteger, expondo-as a outras formas de ataque.
Você tem um mapa do uso, em nível mundial, do gás lacrimogêneo, em 2013. É notável que na Europa da austeridade há vários países que o usaram, desde Alemanha e Bélgica até Espanha e Grécia.
Houve um aumento dos protestos, a partir do estouro financeiro de 2008, e outro desde que começaram as medidas de austeridade. Paralelo a isto, vimos uma resposta cada vez mais violenta ao protesto. Viu-se, neste protesto, um maior uso de gás lacrimogêneo, balas de borracha e do restante de material antidistúrbios. Também estamos vendo um novo deslizamento semântico, a partir da crescente importância da indústria antiterrorista e dos métodos para lidar com os protestos. Recentemente, uma especialista israelense em políticas policiais me disse que a tecnologia estava sendo usada contra os militantes israelenses, o mesmo tipo de treinamento e de forças utilizadas para casos de terrorismo. Trata-se do uso de táticas militares para o treinamento da polícia. Isto também faz parte da naturalização dos métodos de repressão.
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