07 Janeiro 2013
A irmã franciscana Pat Farrell e outras três irmãs cruzaram a Praça de São Pedro, através das fabulosas colunas brancas, pausaram para uma verificação de segurança e entraram no Palácio do Santo Ofício, com sua cor de ferrugem.
A reportagem é de Jason Berry, publicada no sítio do jornal National Catholic Reporter, 26-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Era o dia 18 de abril de 2012, e, ao entrar no palácio, elas estavam cientes da sua história, de que, nesse mesmo edifício, cerca de 400 anos antes, Galileu havia sido condenado como herege pela Inquisição Romana por defender que a Terra orbitava em torno do Sol.
Hoje, o palácio abriga a Congregação para a Doutrina da Fé, o órgão vaticano que obriga à adesão ao ensinamento da Igreja. Como presidente da Leadership Conference of Women Religious (LCWR), Farrell e suas colegas executivas tinham um encontro com o prefeito, o cardeal William Levada, sobre a investigação do seu grupo por parte da Congregação.
Elas estavam caminhando rumo àquilo que o padre Hans Küng, o renomado teólogo internacional que teve as suas próprias batalhas no palácio, chama de "uma nova Inquisição".
As irmãs foram acusadas de minar o ensino moral da Igreja, promovendo "temas feministas radicais incompatíveis com a fé católica". Para muitas irmãs, a ação da Congregação é uma volta ao passado, provocando um clima de medo e um vento frio sobre as suas vidas.
O Vaticano quer o controle da LCWR, uma associação de 1.500 superioras, que representa 80% das irmãs norte-americanas, a maioria delas muito ativas nas linhas de frente da justiça social.
O principal conselho de lideranças das irmãs norte-americanas abraçou o Evangelho da justiça social do Concílio Vaticano II, que levou as irmãs a alguns dos recantos mais pobres do mundo para trabalhar com pessoas politicamente oprimidas, particularmente na América Latina. Mas um severo drama de atritos tem se desdobrado enquanto a geração do Vaticano II chega a um eclipse. Desde 1965, o número de irmãs norte-americanas caiu mais de dois terços, de 181.241 para 54.000 hoje.
Em contraste, a taxa de mulheres que entram para as ordens religiosas subiu na Coreia, no Vietnã do Sul, na África Subsaariana e em partes do Caribe. Em nenhum outro lugar o aumento foi mais pronunciado do que na Índia. Cinco dos 10 maiores institutos religiosos de mulheres têm sede na Índia, onde apenas 1,6% da população é católica.
"Enquanto a Índia tem quase 50 milhões de católicos a menos do que os Estados Unidos, ela tem mais de 30 mil religiosas mais", escreveu Jeff Ziegler no jornal Catholic World Report.
Igreja esquizofrênica
A repressão do Vaticano contra a LCWR expôs uma Igreja esquizofrênica. Entrevistas com irmãs missionárias da Índia e de outros países presentes em Roma registram uma profunda linha de falha entre os cardeais, imunes a punição, e as irmãs, que trabalham em regiões pobres, com algumas das pessoas mais assediadas do mundo. Religiosas de outras partes do mundo veem o conflito da LCWR com maus pressentimentos. Até onde o Papa Bento XVI irá impor uma cultura disciplinar, policiando a obediência das irmãs, é uma questão urgente para muitas dessas mulheres – e uma questão que com certeza irá demarcar o lugar desse papa na história.
A avaliação doutrinal disposta por Levada era um plano de intervenção. Ele nomeou o arcebispo Peter J. Sartain, de Seattle, para aprovar os oradores dos encontros da LCWR e reformar os seus estatutos. "Você pode impor o silêncio, mas isso não muda o pensamento de ninguém", refletiu Farrell vários meses depois, no convento de Dubuque, Iowa, onde ela mora.
"Isso tem a ver com a Igreja do Vaticano II, com como nós conseguimos viver colegiadamente com uma tomada de decisões participativa", disse Farrell. "Quando eu entrei em 1965, estudávamos e rezávamos com os documentos do Vaticano II, implementando novas cartas. Estamos em uma linha de continuidade com a história inicial das nossas comunidades, avaliando necessidades não satisfeitas, indo para as margens para ajudar os sem teto, as pessoas com Aids, as vítimas de tortura e de tráfico sexual".
"Quando o Vaticano II pediu que as irmãs pesquisassem a sua história, Roma acreditava em uma mitologia das mulheres de estátua de gesso", disse a professor da Syracuse University Margaret Susan Thompson, historiadora das religiosas. "Ao invés, eles se depararam com irmãs que assumiram o trabalho literalmente e que se tornaram polêmicas por fazer isso".
A conferência das lideranças aprovou a ordenação de mulheres em 1977 – 17 anos antes que o Papa João Paulo II reforçasse a proibição da Igreja a ela com a carta apostólica Ordinatio Sacerdotalis. Farrell diz que a LCWR não fez campanha pela ordenação de mulheres. Ela também não endossou o aborto. A demanda da Congregação doutrinal de que as lideranças se pronunciem contra o o aborto e os direitos gays é uma batalha em torno da consciência, forçando palavras na boca das superioras.
"Essas mulheres realmente estão enraizadas em Cristo e comprometidas com os pobres", disse a Ir. Nzenzili Lucie Mboma, diretora executiva do Serviço de Documentação e Estudo sobre a Missão Global de Roma. Membro congolesa das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, Mboma tinha dois amigos que foram assassinados pela violência política dos anos 1960, durante os seus anos como noviça. "É doloroso ver o Vaticano exercendo esse tipo de coisas", disse.
"Em certas partes da Igreja, temos uma mentalidade nós-contra-eles", disse o padre Míceál O'Neill, carmelita irlandês prior em Roma, que foi missionário no Peru. "O 'nós' são os religiosos, e o 'eles' são as autoridades da Santa Sé".
"Temos uma Igreja que é doutrinariamente conservadora e pastoralmente liberal", disse O'Neill. "O Vaticano está tentando afirmar o controle, 'nós estamos no comando'. Muitas pessoas estão dizendo que as duas Igrejas não irão caminhar juntas".
"Há um problema fundamental de honestidade".
Compromisso social
Farrell, 65 anos, cresceu em Iowa, nos anos do Vaticano II. Ela entrou para as franciscanas aos 18 anos, e, nos seus 30 anos, trabalhou com os mexicanos de San Antonio. Ela se mudou para o Chile em 1980, durante a ditadura de Augusto Pinochet. Os desaparecimentos eram comuns. "Era rotina para a polícia torturar as pessoas nas primeiras 72 horas", disse. As manifestações eram proibidas, mas os protestos eram a única forma de pôr um holofote sobre os raptos quando as vidas estavam em jogo.
Ela se uniu às "manifestações-relâmpago", exibindo cartazes do movimento de protesto antitortura no trânsito congestionado, espalhando panfletos que informavam as pessoas sobre os desaparecidos, que eram apagados dos novos relatórios. Uma vez, ela foi presa com outras 100 pessoas, mas a cobertura de uma crescente mídia clandestina fez com que eles fossem liberados no mesmo dia.
Em 1986, ela se mudou para El Salvador com algumas irmãs para ajudar as pessoas a se recuperar de uma guerra civil que teve o apoio militar dos EUA ao governo salvadorenho. Farrell passou suas primeiras semanas dormindo à noite na sacristia de uma igreja, conhecendo as pessoas e, finalmente, entrando em um crescente campo de refugiados, vivendo com os moradores deslocados pelos bombardeios militares. As irmãs norte-americanas eram uma presença não violenta, dando uma fina cobertura para os moradores.
"Aprendemos a nunca deixar a estrada, porque qualquer área fora trilhas definidas poderia ter minas terrestres", explicou. "Lembro-me de descer uma longa colina com meus joelhos tremendo para me encontrar com um grupo de soldados que entraram no acampamento. Parte do nosso papel como pessoas internacionais no campo era manter os militares do lado de fora, e eu estava no meu caminho para pedir-lhes para sair. Daquela vez eles fizeram, graças a Deus".
As procissões religiosas comuns na América Latina tinham um maior significado. O fato de uma comunidade recém-repovoada se mostrar em massa, com cartazes dos santos e da Virgem Maria, transmitia "uma declaração política", disse Farrell: "Nós não temos medo. Temos o direito de estar aqui. A nossa fé continua a ser uma fonte de força para nós".
Em 2005, Farrell voltou para seu convento em Dubuque. Eleita para o conselho da LCWR vários anos mais tarde, em 2012 ela estava no meio do caminho do seu mandato de um ano como presidente quando as lideranças da LCWR fazem a sua viagem anual a Roma para atualizar as autoridades da Igreja sobre o seu trabalho. Com Farrell, estavam a irmã dominicana Mary Hughes, ex-presidente; a presidente eleita, a irmã franciscana Florence Deacon; e Janet Mock, diretora executiva e irmã de São José, de Baden, Pensilvânia.
Antes do seu encontro no Palácio do Santo Ofício, elas tiveram uma hora de oração silenciosa em um centro carmelita.
O encontro
As irmãs haviam se reunido uma vez com o investigador da Congregação doutrinal, Dom Leonard Blair, bispo de Toledo, Ohio, mas não haviam visto o seu relatório. As irmãs estavam esperando alguma conclusão para o inquérito de Blair, mas não tiveram nenhuma indicação sobre o que ele implicaria. Blair não estava na reunião nesse dia. Elas deveriam se encontrar com Levada, que estava prestes a completar 76 anos e a se retirar para a sua Califórnia natal.
Depois de uma saudação cordial, Levada leu em voz alta uma declaração de oito páginas em espaço simples que o seu escritório estava prestes a postar na internet. A avaliação acusava as irmãs de "dissidência corporativa" acerca da homossexualidade e do fracasso para se pronunciar sobre o aborto. A avaliação também criticou a LCWR por seus laços com a Network, um grupo de lobby católico com sede em Washington que apoiou o Affordable Care Act, e o Resource Center for Religious Institutes, um grupo de Silver Spring, Maryland, que oferece orientação sobre o direito canônico para questões de propriedade para as ordens religiosas.
Ao sair do Santo Ofício, Farrell se sentiu estarrecida. "Estava na imprensa antes que tivéssemos tempo para informar os nossos membros", lembrou.
"A reação das irmãs comuns foi de raiva. Agora, há um período de profunda tristeza e de preocupação com relação ao clima na Igreja e à deturpação da vida religiosa", disse.
Uma mudança repentina sombriamente irônica envolve o manejo da Congregação doutrinal da crise dos abusos sexuais clericais. A Congregação processou 3 mil casos de padres que foram laicizados por abusar de jovens. Várias centenas ainda estariam pendentes.
Religiosas x pedófilos
No entanto, esses procedimentos – que Bento XVI, como cardeal Joseph Ratzinger, pôs em prática como prefeito em 2001 – têm um grande furo. O escritório não julgou bispos e cardeais cuja negligência na reciclagem dos abusadores provocou a crise.
O exemplo mais gritante é o do cardeal Bernard Law, cujo tratamento de luva de pelica aos pedófilos acendeu o escândalo em Boston. Ele renunciou ao cargo de arcebispo em 2002 e, em 2004, foi nomeado pároco de uma grande basílica romana, Santa Maria Maggiore, com um salário de 10 mil dólares por mês e um papel altamente influente na escolha dos novos bispos norte-americanos.
Law era uma força motriz por trás de uma investigação preliminar de todas as ordens religiosas femininas norte-americanas, de acordo com várias fontes entrevistadas e uma reportagem do dia 15 de maio de autoria de Robert Mickens, o respeitado correspondente vaticano para a revista britânica católica The Tablet. Law, que não fala com a mídia há uma década, recusou um pedido de entrevista. Mas o cardeal Franc Rodé, 78 anos, prefeito emérito da Congregação que supervisiona as ordens religiosas, confirmou o papel de Law. Em uma longa entrevista em sua residência no Palácio do Santo Ofício, Rodé disse: "Foi o ambiente norte-americano na Cúria Romana que sugeriu isso".
A "visitação apostólica" de todas as comunidades religiosas femininas dos EUA, com exceção às de clausura, foi a fase inicial. A agressiva investigação da Congregação doutrinal do principal grupo de lideranças seguiu-se logo depois.
"Algumas pessoas dizem que essa é uma tentativa de desviar a atenção da crise dos abusos, como os políticos fazem", disse uma irmã missionária de um país em desenvolvimento referindo-se à investigação da Congregação doutrinal. Ela pediu que o seu nome não fosse usado, porque a sua ordem depende das doações dos católicos norte-americanos canalizados através das dioceses.
A LCWR, de fato, foi além dos limites abrindo fóruns para teólogos que questionavam o celibato e a evolução da vida religiosa. Como os teólogos liberais clamam por mudança, a LCWR entrou em colisão com o escritório doutrinal acerca da liberdade de consciência, um princípio fundamental do Vaticano II.
Rodé, como prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, ordenou a visitação das comunidades de irmãs norte-americanas em 2009. Ele falou à Rádio do Vaticano sobre a sua preocupação com "uma certa mentalidade secular nessas famílias religiosas e, talvez, também um certo espírito 'feminista'".
Rodé também foi incitado por uma conferência sobre a vida religiosa da qual ele participou em 2008 no Stonehill College, perto de Boston. A irmã dominicana Elizabeth McDonough, canonista, acusou a LCWR de criar "corporações de negócios operadas por feministas globais" e "controlar todas as estruturas e todos os recursos".
"Eu não estou ciente de nenhum fato que possa sustentar essa afirmação. Parece uma acusação impetuosa da direção que muitas ordens tomaram, que a hierarquia considerou como ofensiva ou desleal, resumida no slogan 'feminismo radical'", disse Kenneth A. Briggs, autor de Double Crossed: Uncovering the Catholic Church's Betrayal of American Nuns.
"A maioria das ordens estavam mendigando para juntar fundos para sustentar as irmãs aposentadas, muitas vezes vendendo propriedades que pertenciam a elas. Parece-me claro que o objetivo do encontro de Stonehill foi pintar um quadro de desobediência como pretexto para uma repressão", disse Briggs.
Rodé, em uma entrevista, rebateu as sugestões de que a visitação apostólica era injusta.
Rodé havia solicitado 1,3 milhão de dólares das comunidades religiosas e dos bispos para cobrir as viagens e outras despesas para a visitação, a cuja responsabilidade ele nomeou a Madre Mary Clare Millea, superiora-geral das Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus.
O pedido de financiamento provocou desconfiança entre muitas ordens missionárias.
"Por que iríamos querer pagar-lhes para eles nos investigarem?" perguntou uma das irmãs missionárias em Roma.
O estudo de Millea não foi tornado público.
"O Vaticano II foi o evento mais importante que mudou a Igreja Católica", disse a Ir. Nzenzili Lucie Mboma. "Jesus era um carpinteiro. Ele não construiu celas, mas sim janelas para ver todas as culturas".
Ela fez uma pausa. "Por que essa investigação está acontecendo?"
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Uma nova Inquisição: irmãs norte-americanas na mira do Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU