17 Outubro 2014
O que o Sínodo pode significar para a interseção entre a Igreja Católica com a sociedade norte-americana? As teólogas Julie Hanlon Rubio e Flossie Bourg, além da socióloga Mary Ellen Konieczny - todas estudiosas da vida familiar - respondem a essa pergunta, assim como analisam o documento intermediário recentemente lançado pelo Sínodo.
A reportagem é de Vinnie Rotondaro, publicada por National Catholic Reporter, 15-10-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
As reações sobre as últimas notícias do Sínodo dos bispos sobre a família, que diz respeito a um relatório emitido por seus participantes pedindo mais abertura para as famílias e para as relações não-tradicionais, incluindo as homossexuais, tem sido fortes, para dizer o mínimo. Do lado liberal da equação, as palavras "notícia bombástica" e "terremoto" foram lançadas. Do lado conservador, o documento tem sido chamado, não apenas de uma "heresia", mas de uma "homo-heresia".
No entanto, apesar de toda a arrogância, a notícia em si trata, essencialmente, de uma série de mudanças. A mudança no entendimento da Igreja sobre a vida familiar, longe de ser uma mera questão de doutrina da Igreja, em direção a uma "realidade eclesial" muito mais complexa e cheia de nuances. Uma mudança na linguagem, longe de expressões alienadas e indiferentes como "intrinsecamente desordenada" em direção a formas mais solidárias de falar acerca dos gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. Agora, pelo menos, a Igreja reconhece que eles têm "dons e qualidades".
O que essas mudanças significam? E o que elas sinalizam para o futuro da Igreja Católica nos Estados Unidos? O NCR convidou as teólogas Julie Hanlon Rubio e Flossie Bourg e também a socióloga Mary Ellen Konieczny - todas estudiosas da vida familiar - a analisar isso.
Flossie Bourg, teóloga do Loyola Institute for Ministry, de New Orleans, e autora do livro Where Two or Three Are Gathered: Christian Families as Domestic Churches [Onde dois ou três estiverem reunidos: Famílias cristãs como igrejas domésticas], escreveu:
Estou intrigada com a analogia ao ecumenismo nas seções 17 a 20. Similarmente aos chamados "cismáticos", "hereges" ou "irmãos dissidentes" que o Concílio Vaticano II convidou o povo a ver como "irmãos separados", vários tipos de pessoas e famílias são descritas no texto do Sínodo como "feridas" (pelo pecado) e "fragilizadas", e não descritas como "vivendo em pecado" ou simplesmente como "irregulares" (embora esse termo apareça brevemente).
O Vaticano II encorajava a escuta das ideias dos "irmãos separados". Da mesma forma, este texto incentiva a escuta das ideias compartilhadas por pessoas cujas famílias estão "feridas" ou "fragilizadas". (Existe alguma família que seja inquebrável ou não sujeita à fragilidade?) De forma parecida com o número 16 da Lumen Gentium, que descreveu "aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência", o texto do Sínodo refere-se àqueles cujas "fragilidades familiares ... na maioria das vezes, são "suportadas" mais do que 'livremente escolhidas".
O decreto do Vaticano II sobre o ecumenismo afirma que "aqueles, porém, que agora nascem em tais comunidades e são instruídos na fé de Cristo, não podem ser acusados do pecado da separação, e a Igreja católica os abraça com fraterna reverência e amor" (no. 3). Da mesma forma, o Sínodo diz que, seja quais forem os conflitos teológicos que permanecem relacionados aos divorciados recasados ou casais do mesmo sexo, seus filhos não devem experimentar "danos colaterais" por causa deles (no. 47 e 52). Similarmente ao decreto do Vaticano II sobre o ecumenismo, que reconheceu que ambos os lados [incluindo os católicos] foram os culpados pela separação entre os cristãos (no. 3), o texto do Sínodo insta os católicos a reverem as abordagens pastorais que alienam algumas pessoas devido às suas origens familiares.
Certamente o texto do Sínodo enfatiza a compaixão. Estou curiosa para ver quais serão as iniciativas pastorais que surgir a partir dele. Tal como acontece com a pobreza e a doença, como cristãos, somos desafiados a cuidar compassivamente das necessidades das pessoas que já estão feridas e fragilizadas. Mas também somos desafiados a examinar se as suas dificuldades podem ser minimizadas através de decisões prudentes. Tal como com outros problemas de saúde e de administração da comunidade, é pastoralmente e politicamente complicado propor escolhas pessoais ou sistêmicas para prevenir dificuldades familiares.
Os cientistas sociais e os especialistas em saúde oferecem insights acerca de opções que aumentam a probabilidade de uma estabilidade familiar. Mesmo quando elas não são controversas, as pessoas podem não estar prontas para ouvir ou agir sobre elas. As pessoas estão emocionalmente inseridas em suas famílias. Nossas famílias estão ligadas ao nosso senso pessoal de auto-estima. Podemos nos sentir ameaçados quando as escolhas feitas por nós mesmos ou por nossos entes queridos são analisadas, ou quando os riscos são expostos em sistemas sociais e costumes que nós consideramos óbvios.
A inércia pode desencorajar o discernimento. Nós não podemos garantir que uma família seja poupada de quaisquer ferimentos graves que exigem a nossa compaixão. Mas algumas feridas são evitáveis. Precisamos compartilhar "boas práticas" de padres e guias espirituais que trabalham "nas trincheiras", que são profetas persuasivos, bem como curandeiros compassivos. O Sínodo é sábio ao destacar o testemunho vivo de modelos de família fiéis como fontes de inspiração e sábio discernimento. Precisamos de modelos atraentes - santos específicos para as famílias - que apresentam a "alegria que 'enche os corações e as vidas' quando em Cristo, somos 'libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior e da solidão' (Sínodo #27)".
Mary Ellen Konieczny, socióloga da Universidade de Notre Dame e autora de The Spirit's Tether: Family, Work and Religion among American Catholics, escreveu:
A ênfase entre os participantes do sínodo sobre o casamento como uma "realidade eclesial" parece estar bem refletida no documento Relatio lançado em 13 de outubro, especialmente na forma como ele lida com a relação dos ensinamentos católicos em torno da família e da misericórdia.
Nos materiais que vieram a público do Sínodo, tem-se o testemunho do casal australiano que falou sobre a realidade sacramental do matrimônio como uma vocação que tem como objetivo a vida familiar e o trabalho da família na missão cristã. Eles afirmaram que os casais, especialmente os pais, fazem necessariamente o que o documento do Sínodo está defendendo: eles equilibram as crenças religiosas, os ensinamentos e os ideais com os quais estão comprometidos à necessidade de ter compaixão e paciência com seus filhos, que, como todos nós, comentem erros inevitavelmente. Neste caso, os cônjuges que levam a sério o seu matrimônio sacramental são testemunhas de vida cristã e fonte de aprendizado para toda a Igreja; e mais do que cooperadores, eles podem exercer uma "co-responsabilidade" com os sacerdotes, religiosos e religiosas dentro da Igreja.
O documento divulgado pelo Sínodo parece assumir este tema geral do matrimônio sacramental como uma vocação e uma realidade eclesial precisamente neste sentido. O documento afirma a importância da Igreja em ouvir os desafios, os problemas, a dor e as mágoas que muitos católicos experimentam com casamentos que não deram certo ou estão com dificuldades, e em responder com misericórdia, como muitos casais fazem em suas próprias vidas, com a família e os amigos. Mas mais do que isso, o documento também quer melhor reconhecer, apoiar e ensinar que as graças recebidas em um matrimônio sacramental são, em parte, para que a vida cristã dos cônjuges possa ser um testemunho da qual toda a Igreja possa aprender.
Então, o que uma abordagem como esta poderia significar para a interseção entre a Igreja Católica com a sociedade norte-americana? É claro que é muito cedo para talvez, até mesmo, arriscar um palpite. Mas uma Igreja que coloca a escuta de seus fiéis e a visão do casamento como uma realidade eclesial tem o potencial de desenvolver a nossa compreensão do casamento como uma vocação cristã de testemunho, de modo que os casais possam ser incentivados e reconhecidos a fim de apoiar aqueles que tem dificuldades em seus casamentos (o que acontece com a maioria dos casais às vezes), bem como desenvolver respostas pastorais que combinem os ensinamentos da Igreja sobre o casamento com a misericórdia e a cura.
E a seguir podemos ler a análise de Julie Hanlon Rubio da St. Louis University, autora do livro Family Ethics: Practices for Christians:
As grandes mudanças que eu vejo no documento divulgado são estas: a vontade de olhar para a diversidade das famílias católicas e de ouvir as suas ideias, o desejo de encontrar soluções pastorais criativas que permitam à Igreja acolher a todos e uma vontade de ver aquilo que é bom no imperfeito. Todas as mudanças parecem mais enraizadas em um movimento crucial para imitar Jesus, especialmente abraçando o seu pedido por misericórdia.
Documentos anteriores do Vaticano, como a recente carta pastoral da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos sobre o casamento, às vezes, parecem cegos para a realidade da diversidade. Palavras positivas podem ser alienantes em seu caráter abstrato e pronunciamentos negativos podem parecer surdos ao seu potencial para machucar. É evidente em todo este documento um desejo de olhar para pessoas reais e ouvi-las, tendo em vista a compreensão de como elas vêem a si mesmas.
A vontade de seguir o pedido do Papa Francisco para ter ousadia e criatividade a nível pastoral é clara. Os bispos estão buscando novas maneiras para ministrar aos casais que vivem juntos, aos parceiros do mesmo sexo, aos divorciados e recasados e aos casais que utilizam métodos contraceptivos. De forma abrangente, vê-se um desejo de começar com os pontos positivos, evitar a alienação da linguagem e parar de excluir as pessoas.
Ver o bom no imperfeito significa deslocar-se para além das categorias do preto e do branco rumo à realidade confusa da vida das pessoas. Há um tema persistente de olhar para os casais como um recurso que pode ensinar sobre a realidade do sacramento através do seu testemunho prático. Além disso, claramente, os pastores e as famílias que conseguem ver a ação da graça em seus trabalhos pastorais com famílias, que muitas vezes temos identificado como "irregulares", estão sendo ouvidos. Aqueles que queriam uma mensagem clara de reafirmação da doutrina católica vão se decepcionar. Aqueles que estavam esperando por uma maior compreensão, apoio e complexidade irão se alegrar.
Comentando sobre o conceito da vida conjugal como uma "realidade eclesial", Rubio escreveu: "Eu acho que a noção de ver os casais como uma "realidade eclesial" faz algum sentido, embora honestamente essa linguagem é um pouco mais "de Igreja" do que a linguagem do documento, que é por isso que eu gosto tanto do documento. Tanto a linguagem esotérica sacramental quanto a linguagem abstrata da lei natural foram evitadas. Eu acho que a noção de aprender sobre o casamento como uma "realidade vivida" pelos casais é melhor. O tom geral evidencia que os bispos estudaram as respostas dos católicos de todo o mundo e estão tentando não apenas reafirmar velhos ensinamentos, mas aprender algo novo. Eles percebem que não podem dizer "isto é verdade" sem antes encontrarem-se com a "vida real das pessoas" (# 28) e encontrar "novos caminhos pastorais que começam com a realidade efetiva das fragilidades familiares" (# 40)".
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Teólogas e socióloga dos EUA analisam o mais recente Sínodo da família - Instituto Humanitas Unisinos - IHU