Por: Caroline | 02 Abril 2014
Ele possui seis graduações, três pós-graduações e 170 livros publicados. É militante dos direitos humanos, ecologista e pacifista. Sobreviveu a vários atentados cometidos contra ele pela Aliança Anticomunista Argentina (a Triple A) e pela ditadura militar. Tem seis filhos biológicos e 17 filhas adotadas. Estudou com Claude Lévi-Strauss e tem Edgar Morin como seu grande mestre. Diz que seu de maior aprendizado foi obtido na convivência com os indígenas da América Latina. Ao longo desta entrevista Ezequiel Ander-Egg (foto) traz um pouco de suas reflexões acadêmicas, sua atuação política e a relação com sua família. A entrevista é de Verónica Engler, publicada por Página/12, 31-03-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/fZ7cWY |
Ander-Egg diz que tem uma “incurável neurose de trabalho”. Seus mais de 170 livros publicados, as incontáveis aulas e conferências realizadas por diferentes países, que constituem um quase permanente peregrinar, somado aos múltiplos projetos em desenvolvimento (como os dos centros de Educação Popular que participa no México e na Bolívia) dão conta dessa característica que o mantém extremamente ativo, no alto de seus 84 anos. Ezequiel Ander-Egg escreveu sobre os temas mais diferentes das ciências sociais, mas fundamentalmente sobre trabalho social, animação sociocultural e educação. “Nunca busquei escrever para um público seleto, mas para muitos, já que minha intenção é tornar compreensível justamente os temas e problemas das ciências sociais”, diz em resposta a certos setores da academia que o chamam de um “simples divulgador”.
Militante dos direitos humanos, pelas minorias sexuais, pacifista, ecologista e feminista, sobreviveu a vários atentados realizados contra ele pela Triple A e pela última ditadura militar: muitos dizem que é quase um milagre que ainda esteja vivo. Alegre, de face vibrante, este homem de livros e de ação conta, nesta entrevista, múltiplos aspectos de sua vida, sobre seus filhos, suas 17 filhas adotivas, seus pareceres sobre a universidade, sua juventude e sua experiência com os indígenas da América Latina, com os quais, segundo ele próprio, aprendeu mais do que com as lições tidas com Claude Lévi-Strauss durante uma de suas estadias na França.
Eis a entrevista.
O senhor geralmente se descreve como um “homem de ação e pensamento”.
Sim, mas há duas definições sobre mim: essa e outra muito poética que diz “ternura em um mundo sem ternura”, justamente pela forma com a qual me comporto. Tenho 170 livros escritos, e tudo o que há neles vem da ação.
Um dia me pediram que escrevesse algo sobre o colégio secundário, o que pedi foi a permissão para lecionar em um colégio secundário. Contudo o que é menos conhecido é meu trabalho pela paz internacional, porque eu sei, pelo meu trabalho realizado na UNESCO, que ainda existem 402 mil bombas atômicas. Nas missões de paz que atuei, meu coração estava com Gandhi, porque sei que, até os dias de hoje, seguimos deteriorando ao meio ambiente e não poderemos sobreviver mais que três gerações no planeta Terra. Tudo isto ocorre devido à maneira pela qual usamos a ciência e a tecnologia, pelo nosso desejo de sermos ricos destroçamos a única riqueza que há: a vida. Se não aprendermos a viver superando a sociedade do consumo, se não soubermos viver de outro modo, nós mesmos iremos nos destruir. A Santa Trindade do homem contemporâneo é formada pelo dinheiro, pelo consumo e pelo status. E o que faz isto funcionar é a publicidade e a propaganda, a publicidade vende os produtos e a propaganda vende os valores.
Como sobreviveu ao fuzilamento realizado contra o senhor pela Triple A?
Eu fiquei trinta e um dias estirado, a oito quilômetros da cidade de Mendoza, de maneira que não podia nem ao menos me mover. Fui atendido por uma camponesa que não sabia meu nome. Meu único desejo era viver coberto de barro para que a gangrena não avançasse. Todos os médicos que me atenderam no primeiro momento disseram-me que havia uma possibilidade em mil de me salvar, devido às feridas recebidas, e essa possibilidade foi o que aconteceu. (Benjamín) Menéndez, um militar argentino, tornou público que eu era guerrilheiro, mas eu não era guerrilheiro, apenas falava com eles, pois falava com todo mundo. E ele mandou que me matassem. Entretanto a tragédia é muito maior, porque eu sabia que desejavam me matar e não poderia abandonar meus filhos. Então saquei todo o dinheiro para fazer com que minha família viajasse para o exílio. Os facínoras foram me buscar, mas como não me encontraram, apontaram uma arma contra minha família e roubaram todo o dinheiro que estava com eles. Minha esposa os denunciou e, em três dias, dinamitaram a casa em que ela estava com um dos meus filhos.
Por sorte eles conseguiram se salvar, mas foi uma tragédia após a outra. No dia seguinte em que me fuzilaram, quiseram sequestrar meu filho. Ele conseguiu desviar da sua rota e se salvou, contudo nunca mais voltou à Argentina. Minha mãe sofria muito com toda essa situação. Ela queira que eu abandonasse a luta, contudo eu lhe dizia: “Enquanto no mundo ainda houver uma mulher camponesa explorada, não deixarei de lutar”.
Antes de ir ao exílio, o senhor era criticado na Universidade de Cuyo, da qual era docente, por ler Arturo Jauretche, verdade?
Sim, é porque aqui os acadêmicos liam os europeus. (Andrés) Delich, que foi ministro da Educação, fez severas críticas a Jauretche e a mim, em troca, eu defendia suas contribuições. Ele vendia livros porque não escrevia como um sociólogo. O que é ter nível sociológico? Dizer com palavras ininteligíveis o que todo mundo sabe no senso comum? Fazer pesquisas e apenas escrever artigos que só servem para incrementar o curriculum vitae de quem os escreve? Depois de me expulsarem da universidade, por ser socialista, quiseram me reintegrar, mas eu não quis. Para que? A universidade está repleta de papagaios culturais, dão texto sem contexto. A última vez que tive reunião do Conselho na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais, cada professor dizia no início do ano qual texto iria trabalhar. Para mim, dizer qual texto será trabalhado não é uma maneira de pensar, o que eu planejo é quais os problemas que afetam a nosso povo iremos estudar. Estou decepcionado com a universidade latino-americana, porque não está relacionada a problemas concretos.
Qual sua trajetória antes de ir para o exílio? De Bernardo Larroude, em La Pampa, onde nasceu, foi estudar em Mendoza, capital e a maior cidade da província de Mendoza?
Não, estive por todas as partes. Estive em Córdoba cursando a escola de aviação criada por Perón. Fui um dos 320 jovens de todo o país escolhidos por Perón para este projeto que foi importantíssimo, a carreira aeronáutica. Eu fiz isso porque queria deixar de ser pobre. Com o fim da (segunda) Guerra Mundial, diferentes países trouxeram alemães altamente capacitados: em primeiro lugar os Estados Unidos, a União Soviética, Inglaterra, França, e Perón trouxe especialistas da aeronáutica. Perón teve aí muita lucidez. No fim de 1946 fez a convocação de jovens para que fizessem uma formação na área da aeronáutica, de modo técnico. A carreira de cinco anos seria feita em dois anos e meio: eram cinco meses de aulas e quinze dias de férias. Todavia esta grande ideia de Perón, após ele ter desaparecido da vida política, acabou frustrando-se. Quando voo em aviões fabricados no Brasil, recordo deste “fracasso” argentino causado pela falta de visão dos dirigentes políticos que nunca entenderam o que Perón queria ter feito.
E o senhor entrou na Aeronáutica?
Por certo tempo, mas acabei me retirando porque eu não era efetivamente militar. Porém, logo em seguida, o que ocorreu foi que escolhi Mendoza, pois queria estudar filosofia e havia tido problemas porque a carreira aeronáutica era um segredo de Estado, e não poderia entrar na universidade. Então fiquei desesperado para fazer o bacharelado e, finalmente, em setembro de 1953 disseram-me que não era realmente um segredo de Estado, e pude entrar na universidade. Em 30 de setembro de 1953 comecei a faculdade e em 31 de agosto de 1955, um ano e onze meses depois, havia me graduado em Ciências Políticas e Sociais. Logo fui à Espanha com uma bolsa, me doutorei em Ciências Políticas e Econômicas. Regressei e me tornei professor na faculdade, meus alunos do quinto ano tinham sido meus colegas de primeiro ano. Ao mesmo tempo tinha um cargo no governo de La Pampa, que era algo próximo a ministro de Assuntos Técnicos.
E logo voltou para a Europa para continuar estudando, é isso mesmo?
Sim, fui à França, na década de 70. Até então havia trabalhado apenas como economista. Na França me graduei em Planejamento Econômico e Social, e pensava em viajar para o Vietnã para trabalhar com o padre (Louis) Lebret, com a equipe de Economia e Humanismo. Contudo (Alfredo) Calcagno, que era o embaixador na UNESCO, me disse que havia voltado a trabalhar com o presidente (Arturo) Frondizi que, para mim, era um estadista de muito respeito. Voltei e me nomearam diretor de Desenvolvimento da Comunidade e, em dois anos, construi 3.200 habitações para os setores mais pobres da Argentina.
O senhor teve cinco filhos e uma filha biológica, mas logo adotou dezessete filhas. Por que decidiu cuidar dessa prole numerosa?
Adotei as meninas para que não me tornasse louco, pois o fiz quando minha filha Gabriela morreu. Contudo não as adotei quando eram bebês, não tive que trocar fraudas (risos), mas elas estavam próximas a idade de dezoito anos. Também não viveram todo o tempo comigo. Cuidei para que pudessem se formar, que cursassem a universidade, que fizessem suas pós-graduações no exterior, todas elas são de descendência indígena de países latino-americanos. Geralmente ficavam seis meses aqui para aprender esse artesanato intelectual, para iniciar no mundo das pesquisas. Este ano as 17 terão seu título universitário. Para as melhores dei uma formação na Europa, especialmente a guarani paraguaia, Mariela Cuevas, que esteve aqui há pouco tempo. Ela foi minha secretária na Venezuela, quando eu trabalhava com Chávez para o socialismo do século XXI e a União de Nações Sul-americanas (Unasur). Ela se graduou na Venezuela e era a “preferida” de Chávez, por sua militância e inteligência. Tinha 22 anos quando foi escolhida para falar para todos os presidentes da América do Sul. Ontem a noite veio aqui a primeira filha que adotei, uma quechua-aymara, que está fazendo um curso internacional do qual sou diretor (na Escola de Psicologia Social do Sul). Uma das características para escolher minhas filhas, é que são pessoas que têm um compromisso, de serviço com as pessoas. Contudo já não irei mais adotar. Usei todo meu dinheiro nisso, não o doei a nenhuma organização como a Cruz Vermelha ou a UNICEF, porque trabalhei nessas instituições e as conheço bem.
O senhor viveu com várias comunidades indígenas da América Latina que, inclusive, o consagraram como “ancião”. Poderia me contar algo destas experiências?
Sim, consagraram-me há alguns anos, no México. Contudo minha experiência com os maias na Guatemala foi muito importante, creio que foi o cargo mais importante que tive na minha vida, como responsável pelo Programa Indígena, mas acabaram me expulsando do país, e com toda a razão. E, por vinte e dois anos, não pude entrar.
Por que o expulsaram?
Lembro-me do dia em que assumi, estava com o presidente e a ministra. Colocaram-me em um carro com chofer, e o chofer se abaixou para que eu me sentasse na parte detrás. Então eu disse a ministra: “Eu não vou trabalhar assim, eu vou viver com os indígenas”, e assim o fiz. Estive um tempo com feridas que não cicatrizavam porque estava mal alimentado. Pela noite estudava antropologia. Eu havia estudado antropologia com (Claude) Lévi-Strauss na França, mas sempre digo que aprendi mais com meus irmãos indígenas. E os oligarcas dali são tão filhos da puta como os daqui e diziam: “Estes indígenas não querem trabalhar”, e eu os respondia: “Como irão trabalhar se têm fome?”. Então, claro, a oligarquia me viu com maus olhos. Além disso, eram muito religiosos, queriam a missa cantada, com três padres, que cobravam quinze quetzales, que era o salário de um mês, e eu me opus a isto. Bem, como se isto fosse pouco, em seguida me meti com os militares. Então aos três meses de estadia me expulsaram e, por vinte e dois anos, não pude entrar no país.
E também o expulsaram da Espanha, não?
Ah, da Espanha fui várias vezes, a última vez por fazer a lista das amantes do rei. Pois não tolero hipocrisia e a monarquia não me desce. Eu sabia isso sobre o rei porque em sua casa havia uma general, que era o chefe, e esse general tinha um filho jesuíta que contava tudo para mim e assim foi formou-se uma fofoca impressionante. Contudo, por que me irritava com essa vida do rei? Porque nos dias de Natal ele dava sua mensagem a favor da família, e eu não admito a hipocrisia. Admito as diferentes opções sexuais, a homossexualidade e o lesbianismo.
Em várias oportunidades você respondeu publicamente à Igreja sobre o tema da homossexualidade, e chegou a se declarar militante gay.
Sim, e de certa forma chegou a ser até engraçado. O problema que tive foi aqui mesmo na Argentina quando o cardeal (Antonio) Quarracino disse que deveria deixar todos os homossexuais a par da situação. Havia chegado da Espanha e me fizeram uma longa entrevista, e já de início a jornalista me perguntou o que eu pensava sobre o cardeal Quarracino e eu disse: “Olhe, Jesus Cristo jamais diria isso, você sabe da minha militância”. E a jornalista me disse: “Sim, o senhor é militante dos direitos humanos, pacifista, ecologista e feminista”. Então, eu lhe disse: “E agora me declaro militante gay sem ser homossexual”. E a nota apareceu com o seguinte título: “Ander-Egg se torna militante gay graças ao cardeal Quarracino”. Anteriormente, durante o governo de Alfonsín, na ocasião de uma missão oficial, o governo me recebeu como se fosse um diplomata em Ezeiza, cidade da Grande Buenos Aires, e me colocaram em uma entrevista com a Rádio Nacional. Há pouco (o arcebispo Emilio) Ogñenovich havia me dito, quando Alfonsín planejou a lei do divórcio, que por detrás dessa lei viriam a AIDS, a homossexualidade e o lesbianismo. E me perguntaram o que eu pensava sobre isso. O que eu iria responder? Rapidamente pensei em dizer-lhe: “Olha, eu creio que vocês jornalistas tem deturpado, porque não pode ser, não pode haver alguém tão bruto e tão idiota que possa dizer algo assim”.
O que está escrevendo neste momento?
Nesta etapa da minha vida estou enfrentando a tarefa de reescrever meus livros mais significativos, contudo, além disso, estou escrevendo um novo livro que se chama Historicidades Anônimas. Quase todas as pessoas acreditam que a história é resultante de grandes ações políticas ou militares, feitas por pessoas que tinham poder, que foram importantes empresários ou cientistas. Isto é parcialmente correto, porém a história também é feita por pessoas comuns, humildes, sem cargos públicos, com ações pequenas, fragmentárias, mas que mudam a história, entre tantas há, por exemplo, a das Mães da Praça de Maio. Entre as trinta histórias que já escrevi, uma é a de Rosa Parks, uma mulher negra estadunidense que era costureira e, um dia, se sentou no ônibus e um homem branco foi até ela e quis fazê-la levantar. Como não se levantou foi presa, mas o juiz, no julgamento final, disse que ela tinha razão. Desde esse dia os negros puderam sentar-se nos ônibus e muitas coisas mudaram. Outra história que tomei é a de Vasili Arkhipov, uma marinheira russa, que evitou uma catástrofe universal. Foi no dia 27 de outubro de 1962, quando os Estados Unidos declarou o bloqueio comercial para Cuba, enviando destroyers para torná-lo efetivo. Havia alguns cargueiros da URSS que traziam mísseis, seguiam escoltados por submarinos B-59. No momento do encontro de navios de ambas as potências, um submarino lançou um desregulador de som e o destroyer o confundiu com um torpedo e respondeu lançando uma bomba de profundidade contra o submarino. O governo dos Estados Unidos não sabia que os três submarinos estavam equipados com torpedos de ogiva nuclear. Devido à dificuldade de se comunicar com Moscou, podiam tomar qualquer decisão desde que fosse aprovada pelos três comandantes. Um dos comandantes decidiu disparar o míssil com a ogiva sobre a Casa Branca, contudo, quando o comandante Arkhipov foi consultado, disse que não havia informações suficientes e votou contrariamente. Então, não foi lançado. Foi um instante no qual a sorte da humanidade estava em jogo.
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“A história também é feita por pessoas comuns e humildes”, entrevista com o sociólogo Ezequiel Ander-Egg - Instituto Humanitas Unisinos - IHU