25 Novembro 2015
As novas tecnologias dão força à mobilização das sociedades civis. Em países africanos, jovens organizaram-se em rede e conseguiram mudanças, incluído políticas, diz a jornalista espanhola Ángeles Jurado Quintana que esteve em Lisboa. "Temos de aprender a desaprender o que sabemos sobre África."
A jornalista espanhola especializada em temas sobre desenvolvimento, Ángeles Jurado Quintana, diz que em países como o Senegal, Burkina Faso ou Costa do Marfim, o despertar da sociedade civil e o papel das novas tecnologias para organizar movimentos está a trazer mudanças. Não acompanha a situação em Angola. Mas sobre os casos que conhece, diz: “As sociedades civis em África não estão tão desamparadas como imaginamos, nem são tão passivas. Nalguns países, conseguem fiscalizar a acção de governos e conquistar mudanças”, disse numa entrevista em Lisboa, onde esteve como oradora de uma conferência sobre os media e o desenvolvimento na Fundação Gulbenkian.
Como redactora do blogue África Não é Um País e, desde 2007, membro da equipa de comunicação da Casa África – um instrumento do Ministério dos Negócios Estrangeiros espanhol para um bom entendimento com os países africanos – partilha a ideia de intelectuais africanos para quem a melhor ajuda não será tanta a construção de um hospital ou de uma escola num país em desenvolvimento, antes o fortalecimento das sociedades civis. “Estas devem ser ouvidas e as suas histórias contadas”, defende.
A partir desse conceito de “dar voz” aos protagonistas das histórias contadas no mundo ocidental, sobre os países em desenvolvimento, seja da Ásia, Médio Oriente ou África, foi criada em 2012, e graças ao financiamento da Fundação Melinda e Bill Gates, a editoria Planeta Futuro, página da edição online do diário espanhol El País, de que Ángeles Jurado também é colaboradora.
A entrevista é de Ana Dias Cordeiro, publicada por Público, 23-11-2015.
Eis a entrevista.
Sem o apoio da Fundação, o jornalismo alternativo de Planeta Futuro não existiria?
Para a maioria dos jornais e dos media, África não vende, não traz lucro. Além disso, os media estão em crise, não têm recursos para diversificar as histórias e os temas, para enviar jornalistas ao terreno. Por tudo isso, a imagem dada a assuntos de África é sempre a mesma: guerra e conflitos, miséria e doenças. E muito mais do que isso está a acontecer nos países africanos. Por exemplo: a mobilização da sociedade civil, que tem trazido mudanças. As pessoas organizam-se para encontrar soluções. Em África muitos estados ficaram fragilizados, por exemplo, com os programas de ajustamento estrutural [do FMI nos anos 1980-90]. E as pessoas habituaram-se a encontrarem soluções entre elas, a apoiarem-se umas às outras, para resolver os seus problemas, e não ficarem à espera.
Qual o papel da Internet ou dos novos suportes tecnológicos nessa mobilização?
As novas tecnologias têm muito peso nesta mobilização. Em África não falamos de smartphone. São telefones normais, terminais simples. As pessoas comunicam-se por mensagens escritas e existem muitas iniciativas e projectos com base em mensagens escritas para ajudar as pessoas que fazem face a necessidades concretas: registo de nascimento em zonas rurais isoladas, contenção de doenças, ajuda aos agricultores com conselhos para as colheitas, preços no mercado e todo o tipo de formação útil. Também conheço iniciativas na Costa do Marfim, como #civsocial, para organizar redes de voluntários e ajudar as pessoas numa situação de catástrofe humanitária, como foram a guerra de 2010 e 2011 ou as cheias do ano passado.
No blogue África Não é Um País também estão referidas iniciativas noutros países para controlar o processo político?
Sim. No Senegal, por exemplo, houve uma mobilização de jovens para se recensearem, votarem e manifestarem para evitar que Abdoulaye Wade se mantivesse no poder em 2012. E conseguiram. Nesse ano, fiscalizaram as eleições perante a tentativa do poder de ignorar o veredicto das urnas, que davam Macky Sall como vencedor. Os senegaleses também protestaram nas ruas quando Wade tentou alterar a Constituição, para permitir ao seu filho ser o seu sucessor. E no Burkina Faso, em 2014, expulsaram por via pacífica o Presidente Blaise Compaoré, que estava no poder desde 1987 e queria aprovar uma alteração à Constituição para poder candidatar-se a um novo mandato presidencial. Na África do Sul, por exemplo, os jovens estão a manifestar-se contra a subida das propinas nas universidades. Em todo o continente, há mobilizações: gente que está alerta, informada, nas ruas. Para que as iniciativas cidadãs prosperem, às vezes, a única coisa de que precisam é que não haja interferências externas. E que haja talvez um apoio da comunidade internacional para a democratização real e o fortalecimento das sociedades civis formadas e informadas. Dando-lhes voz e não apenas falando do que não está bem no continente, como os conflitos, a miséria ou as doenças.
Esses temas afastam mais do que aproximam a Europa do continente africano?
Sim, porque reforçam a ideia de que somos muito diferentes e que África é um lugar sem esperança, que é um lugar que precisa da nossa ajuda, e que mesmo tempo a nossa ajuda não resulta, não vai resultar e nada vai melhorar. Mesmo a ideia subjacente ao nome [dado ao projecto] Planeta Futuro tem a ver com essa ideia de esperança, de fazer algo melhor, a pensar nas nossas crianças, de lhes dar um mundo melhor.
O financiamento externo da Fundação de Bill Gates não condiciona a linha editorial do projecto?
A única limitação é não existirem nesta páginas notícias de actualidade – essas vão para o site do El País. Existem histórias, reportagens e temas, por exemplo, sobre a investigação científica para erradicar a malária. A ideia é que a visão das pessoas do Sul tem que estar lá. O objectivo é não estarmos sempre a falar apenas do nosso ponto de vista. E para isso temos também um painel de especialistas de vários países que escrevem regularmente.
As diplomacias europeias tentaram uma aproximação a África na última década ou duas. Os dois continentes estão hoje mais próximos ou mais distantes do que estavam há dez anos?
Por um lado, estão mais próximos. Pelo que vejo, muitos jornalistas querem ir para África e estão interessados no continente. Muitas empresas e empresários querem investir em África e existe um interesse político do Governo, em Espanha, em trabalhar em África com África. Mas ao mesmo tempo, ainda há muita gente que não sabe nada sobre os países africanos e que não estão de todo interessados. Em parte o problema são os media, onde permanecem muitos preconceitos e estereótipos. Desde a escravatura, desde a colonização, continuamos sempre a repetir que África não funciona, e é como se essa ideia estivesse, culturalmente e historicamente, dentro de nós. Temos de aprender a desaprender o que sabemos sobre África. Temos de fazer um reset.
A crise de refugiados tornou ainda mais evidente a distância entre a Europa e os países do Sul?
De certa maneira, sim, é como se não estivéssemos conscientes de que somos as mesmas pessoas por todo o mundo, e que partilhamos muitas coisas. Com os refugiados, estamos a esquecer-nos que são pessoas como nós, e não estamos a saber pôr-nos no seu lugar. É devido a situações como a que aconteceu em Paris [nos atentados de 13 de Novembro] que as pessoas estão a fugir da Síria ou do Médio Oriente. É desse tipo de violência que essas pessoas estão a fugir. Nas redes sociais, surgiram comentários a dizer isso mesmo: as pessoas só saberão pôr-se no lugar das outras quando lhes acontecer o mesmo. Por outro lado, existem movimentos de solidariedade: pessoas que ajudam, empresas que ajudam e mesmo clubes de futebol que ajudam os refugiados. Os governos também estão a ajudar. Mas mesmo assim, as pessoas reagiram melhor e mais depressa do que os governos. Porque os governos não parecem ter uma solução comum, não encontram as soluções depressa, e a situação dos refugiados vai complicar-se muito com a chegada do Inverno.
É previsível que os atentados em Paris criem obstáculos aos processos de acolhimento dos refugiados da Síria, Iraque ou Eritreia?
As pessoas que querem ajudar têm uma percepção clara que os refugiados não são terroristas e que essas são duas coisas muito diferentes. A vontade de ajudar vai estar lá, vai continuar. Mas a situação vai tornar-se mais difícil para os refugiados porque o medo intensificou-se. Muitas pessoas vão ter medo. O medo é também o argumento da extrema-direita, e da hostilidade que também é visível. Os atentados estão a dar lume a estes movimentos extremistas, mesmo se os refugiados ou os imigrantes não têm nada a ver com os atentados, as pessoas vêem tudo como um todo. Pensam: eles são sírios, vêm da Síria, acolhê-los é perigoso.
Como está a sociedade espanhola a reagir à necessidade de acolher refugiados?
Em Espanha, tenho tendência para ver sobretudo o lado dos movimentos de solidariedade e de quem acolhe. E não vejo tanto os outros movimentos, de oposição, que também existem. Nas redes sociais, e também na comunicação social, circulam campanhas contra os refugiados e contra os imigrantes. Ouvem-se comentários de quem tenta criminalizar as pessoas que tentam vir para a Europa. Mesmo nos media, há essa tendência de ouvir pessoas que descrevem os refugiados como uma ameaça. E temos o outro lado: de quem explica que é possível ajudar estas pessoas, e trabalhar para um mundo melhor, sem sermos prejudicados.
Pode ser difícil explicar a pessoas em Espanha ou em Portugal que passaram por muitas dificuldades nos últimos anos que o Estado vai agora ter meios de apoiar os refugiados – mesmo se esses meios serão disponibilizados por Bruxelas?
É difícil explicar às pessoas que atravessam tempos difíceis, explicar às sociedades que vão acolher quando antes diziam não haver forma de ajudar, dar apoios. A Espanha ainda tem uma taxa de desemprego elevada e existe pobreza. A classe média também perdeu muito com a crise. O Governo diz que a situação está a melhorar, mas ainda há muitas pessoas sem emprego, ou que perderam a casa ou o seu negócio. Nessas circunstâncias, é muito difícil ser-se solidário, claro. Tanto mais que as campanhas contra o acolhimento falam disso mesmo, passando a ideia de que os refugiados vão ter aquilo que os espanhóis não têm. O Governo terá de encontrar uma forma de o fazer de maneira a que as pessoas não se sintam em desvantagem. Mas, eu sei, é mais fácil dizê-lo do que fazê-lo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"As pessoas reagiram mais depressa à crise dos refugiados do que os governos” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU