18 Setembro 2015
O desconforto dos católicos europeus e italianos diante da hipótese de acolhida de dezenas de milhares de africanos e de habitantes do Oriente Médio não é dada apenas pela crise do "modelo social europeu" e das limitadas capacidades de integração. É um desconforto que decorre da dificuldade de enquadrar ideologicamente esse estrangeiro, no momento em que a Igreja Católica é guiada por um papa claramente pós-ideológico e anti-ideológico (na política como na teologia), como Francisco.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado na revista Il Mulino, 17-09-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Um dos paradoxos do pontificado de Francisco é que o papa que sucedeu Bento XVI inverteu a orientação vaticana (bem visível ao menos desde a "Nota doutrinal" da Congregação para a Doutrina da Fé "sobre algumas questões relativas à participação dos católicos e na vida política", de 2002) a eliminar a ideia da mediação política, confiada a políticos, quando se trata de "aplicar" o magistério social da Igreja à gestão da coisa pública.
A Igreja de Francisco não é antipolítica, nem irremediavelmente desencantada em relação à lacuna entre a utopia cristã e a possível distopia do mundo real. Ao mesmo tempo, o Papa Francisco está tentando reduzir (não sem provocar tensões no establishment eclesiástico) o espaço de mediação das incoerências entre Evangelho e Igreja. A queda do véu das mediações entre Igreja e Evangelho é só o ponto de partida da abordagem do Papa Francisco à questão migratória, com o apelo do Ângelus do dia 6 de setembro dirigido a paróquias, conventos e casas religiosas na Europa para acolher uma família de refugiados.
A questão migratória – fruto de uma série de guerras que envolvem muitos países na faixa entre Afeganistão e Líbia, Iêmen e África oriental, África central (sem falar da crise dos refugiados no Sudeste Asiático, entre Malásia, Tailândia, Indonésia e Austrália) – é uma daquelas sobre as quais o catolicismo global deve enfrentar o cerne da relação entre o radicalismo do Evangelho de Jesus e a complexidade das situações políticas, institucionais e demográficas da Igreja em países em que os cristãos são minoria. É um desafio inédito tanto para a Igreja quanto para a Europa.
A situação atual não tem nada a ver com a dispendiosa abertura da Alemanha Ocidental aos "Ossies" depois do colapso do sistema comunista na Europa Oriental. Para permanecer na Alemanha, os 12 milhões de alemães que abalaram a muito jovem e frágil república de Bonn eram alemães étnicos em fuga do comunismo, testemunhas da intrincada teia de cumplicidade da nação alemã (mesmo no período pós-bélico) com os crimes do nazismo na Europa Oriental.
O influxo de judeus em Israel depois de 1945 e, mais tarde, depois do fim da diáspora nos países árabes e a re-emergência de uma cultura antissemita, constituía uma reunificação. Para fazer uma comparação contemporânea, a questão migratória europeia tem pouco a ver com a questão nos Estados Unidos: em parte porque, desde sempre, os Estados Unidos souberam escolher e filtrar os imigrantes com base nas necessidades do sistema econômico; em parte porque a questão da imigração joga uma luz sobre os Estados Unidos como "nação-Igreja", em que o mercado é a verdadeira religião nacional, e as Igrejas são as mais importantes agências não governamentais que, no passado, apoiaram e integraram as ondas migratórias e hoje pedem em alta voz (a Igreja Católica especialmente) uma immigration reform. Para os estadunidenses, todos descendentes de imigrantes, todo imigrante que tenta é um estadunidense em potência.
Os milhares que o Papa Francisco pede que a Europa acolha, ao contrário, não permitem nem mesmo uma fugaz identificação. Do ponto de vista ideológico, as guerras na África e no Oriente Médio dificilmente são enquadráveis nas categorias políticas ocidentais – exceto redespertar nos europeus o senso de responsabilidade pelo fracasso daqueles Estados nacionais criados abstratamente entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.
Do ponto de vista étnico, esses requerentes de asilo são grupos diferentes entre si, às vezes inimigos entre si.
Do ponto de vista religioso e confessional, os católicos italianos em geral não têm conhecimento algum (e não é culpa da secularização) da proximidade teológica que os aproxima aos cristãos orientais, percebidos como uma variante do Islã por causa da cultura árabe comum.
Esses são os pobres da terra, que nenhum cálculo político ou ideológico torna exploráveis, mas, ao contrário, só um custo. Nesse sentido, as tomadas de distância de alguns bispos italianos e o silêncio de quase todos os outros dizem muito sobre o desconforto da Igreja Católica diante do Papa Francisco.
A indicação do sucesso ou do fracasso da conversão da Igreja de Francisco será medida nos próximos meses sobre a capacidade de acolhida do estrangeiro em todos os sentidos – nacional, ideológico, étnico, religioso – e é provavelmente um dos critérios evangelicamente mais adequados para medir o caráter cristão de uma Igreja e de uma sociedade.
O desconforto dos católicos europeus e italianos diante da hipótese de acolhida de dezenas de milhares de africanos e de habitantes do Oriente Médio em fuga da violência dos conflitos armados ou da pobreza causado por eles não é dada apenas pela crise do "modelo social europeu" e das limitadas capacidades de integração.
É um desconforto que decorre da dificuldade de enquadrar ideologicamente esse estrangeiro, no momento em que a Igreja Católica não é mais a coluna ideológica do Ocidente, mas, ao contrário, é guiada por um papa claramente pós-ideológico e anti-ideológico (na política como na teologia), como Francisco.
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Os refugiados e a Igreja pós-ideológica de Francisco. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU