27 Julho 2015
Enquanto o Papa Francisco se prepara para visitar os EUA, a sua ênfase em servir aos pobres – em lugar de fazer valer a doutrina – tem inspirado alegria e ansiedade entre os católicos
O texto é do jornalista texano Robert Draper, publicado pela revista National Geographic, agosto de 2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando cerca de sete mil estranhos maravilhados o encontram pela primeira vez, ele ainda não é o papa – mas como uma crisálida agitando-se, algo surpreendente já está presente naquele homem. Dentro do estádio Luna Park, no centro de Buenos Aires, católicos e protestantes se reúnem para um evento ecumênico. Do palco, um pastor chama para se juntar aos demais o arcebispo da cidade, para que este lhes dirija algumas palavras. O público reage com surpresa, porque o homem que se encaminha ao palco andando a passos largos estava sentado na parte de trás o tempo todo, por horas, como se fosse uma pessoa qualquer. Não obstante um cardeal, ele não usa a tradicional cruz peitoral ao redor de seu pescoço, apenas uma batina preta e um blazer, parecendo-se com o simples sacerdote que foi décadas atrás. Está magro e já com certa idade avançada, com um semblante sombrio, e, neste momento, nove anos atrás, era difícil imaginar que um cidadão assim, despretensioso, seria um dia reconhecido em todos os cantos do mundo como uma figura brilhante e carismática.
Fala tranquilamente em sua língua nativa, o espanhol. Fala sem tomar notas. O arcebispo não faz menção alguma dos dias em que considerava o movimento evangélico negativamente, como muitos sacerdotes católicos latino-americanos o fazem, ou seja, considerando-o como uma “escuela de samba”. Em vez disso, o mais poderoso argentino na Igreja Católica – que afirma ser ela a única igreja cristã verdadeira – diz que tais distinções não importam para Deus. “Que bom”, diz ele, “que os irmãos estão unidos, que os irmãos orem juntos. Quão bom é ver que ninguém comercializa a sua história no caminho da fé; somos diversos, mas que queremos ser, e já estamos começando a ser, uma diversidade reconciliada”.
Com as mãos estendidas e voz trêmula, ele clama a Deus: “Pai, nós estamos divididos. Uni-nos!”
Aqueles que reconhecem o arcebispo se espantam; a sua expressão implacável lhe havia rendido apelidos como “Mona Lisa” e “Carucha” (por suas bochechas tipo “bulldog”). Mas o que também ficará na lembrança deste dia ocorre quando ele termina de falar. Lentamente, o religioso se coloca de joelhos pedindo para que os participantes rezem por ele. Depois de um estranhamento, os participam assim o fazem, conduzidos por um pastor. A imagem do arcebispo ajoelhado entre homens de menor status, uma postura de súplica ao mesmo tempo simples e impressionante, será o destaque das primeiras páginas dos jornais argentinos.
Entre as publicações que apresentam esta imagem está o Cabildo, jornal considerado a voz representante dos católicos ultraconservadores do país. Junto da história há um título com um substantivo dissonante: “apóstata”. O cardeal como um traidor de sua religião.
Este é Jorge Mario Bergoglio, o futuro Papa Francisco.
“Preciso realmente começar a fazer mudanças agora”, disse Francisco a uma meia dúzia de amigos argentinos numa manhã, dois meses depois que 115 cardeais, reunidos em Conclave, lhe tiraram de uma relativa obscuridade para pô-lo à frente do papado. Para muitos analistas – alguns felizes, outros frustrados –, o novo papa já havia mudado aparentemente tudo, da noite para o dia. Ele era o primeiro papa latino-americano, o primeiro papa jesuíta, o primeiro em mais de mil anos que não havia nascido na Europa, e o primeiro a assumir o nome Francisco, em homenagem a São Francisco de Assis, defensor dos pobres. Logo após a sua eleição, em 13 de março de 2013, o novo líder da Igreja Católica se materializou em uma varanda da Basílica de São Pedro, vestido de branco, sem a capa escarlate tradicional sobre os ombros ou a estola vermelha bordada a ouro ao redor do pescoço. Ele cumprimentou as massas com uma clareza eletrizante: “Fratelli e Sorelle, buona sera / Irmãos e irmãs, boa noite”. E fechou a noite com um pedido, o que muitos argentinos já sabiam ser algo típico dele: “Rezem por mim”. Quando saiu, passou direto pela limusine que o esperava e entrou no ônibus que transportava os cardeais que tinham acabado de fazê-lo o seu superior.
Na manhã seguinte, o papa pagou a conta no hotel onde esteve hospedado. Deixando de lado os apartamentos papais tradicionais no interior do Palácio Apostólico, optou por viver em uma moradia de dois quartos na Casa Santa Marta, residência casa de hóspedes do Vaticano. Em seu primeiro encontro com a imprensa internacional, ele declarou a sua ambição principal: “Como eu gostaria de ter uma Igreja pobre e para os pobres” E, em vez de celebrar a missa vespertina de Quinta-feira Santa (em comemoração à Última Ceia) numa basílica e lavando os pés de sacerdotes, como tradicionalmente se faz, ele a celebrou em uma prisão juvenil, onde lavou os pés de uma dúzia de internos, incluindo mulheres e muçulmanos, sendo a primeira vez que um papa faz tal gesto. Tudo isso aconteceu durante o seu primeiro mês como Bispo de Roma.
Então, os amigos argentinos do novo papa compreenderam o que ele queria dizer com “mudanças”. Embora mesmo o menor dos seus gestos carregasse um peso considerável, o homem que eles conheciam não se contentava em trabalhar apenas com símbolos: ele era um “porteño” prático, pé no chão, homem das ruas. Queria que a Igreja Católica fizesse uma diferença duradoura na vida das pessoas: ser, como frequentemente ele diz, um hospital em campo de batalha, acolhendo todos os que se feriram, independentemente de qual lado lutavam. Na busca deste objetivo, ele poderia ser, de acordo com o Rabino Abraham Skorka, amigo argentino, “uma pessoa muito teimosa”.
Embora para o mundo exterior o Papa Francisco pareça ter caído dos céus como uma chuva de meteoros, em casa ele era uma figura religiosa bem conhecida e, por vezes, controversa. Filho de um contador cuja família havia emigrado da região do Piemonte, noroeste da Itália, Bergoglio se destacou desde o momento em que entrou para o seminário em 1956, aos 20 anos, após ter trabalhado como um técnico de laboratório [de química] e, brevemente, como segurança em um clube noturno. Logo em seguida, escolheu a intelectualmente exigente Companhia de Jesus como o seu caminho para o sacerdócio. Na qualidade de aluno do Colégio Máximo de San José em 1963, ele possuía “tanto um discernimento espiritual elevado como habilidades políticas”, segundo um de seus professores, o Pe. Juan Carlos Scannone, a tal ponto que rapidamente se tornou orientador espiritual para alunos e professores. Ele lecionou para meninos indisciplinados, lavou os pés de prisioneiros, estudou no exterior. Tornou-se reitor do Colégio Máximo, bem como uma figura presente nas favelas de toda a Buenos Aires. E subiu na hierarquia jesuíta, ao mesmo tempo navegando na política turva de uma época que viu a Igreja Católica entrar em relações tensas, primeiramente, com Juan Perón e, mais tarde, com a ditadura militar. Foi posto de lado pelos seus superiores jesuítas, depois resgatado do exílio por um cardeal admirador, sendo criado bispo em 1992, arcebispo em 1998 e cardeal em 2001.
“Ele não tem medo das novidades! Por isso nos surpreende continuamente, abrindo-nos e levando-nos para caminhos inesperados.” (Homilia do Papa Francisco na Missa de encerramento do Sínodo e beatificação de Paulo VI, em 19-10-2014)
Tímido, Bergoglio – alguém que se descreve como um “callejero”, andarilho – preferia a companhia dos pobres à dos ricos. Os seus momentos próprios de prazer eram simples: literatura, futebol, tango e nhoque. Apesar de toda a simplicidade, este porteño era um animal urbano, um observador social perspicaz e, à sua maneira tranquila, um líder natural. Ele também sabia como aproveitar o momento – quer em 2004, atacando a corrupção em um discurso na presença do presidente da Argentina, quer no Luna Park em 2006, caindo de joelhos. Conforme diz o Pe. Carlos Accaputo, assessor próximo desde que começou a trabalhar para Bergoglio em 1992, diz: “Eu acho que Deus o preparou, ao longo de todo o seu ministério pastoral, para este momento”.
Além disso, o seu papado não foi um acaso. Como o autor romano Massimo Franco diria: “Esta sua eleição surgiu a partir de um trauma” – da renúncia repentina (e sem precedentes por quase seis séculos) do então Papa Bento XVI e do sentimento acumulado entre os cardeais mais progressistas de que a mui antiga e eurocêntrica mentalidade da Santa Sé estava apodrecendo a Igreja Católica a partir de dentro.
Sentado na sala de estar de seu apartamento naquela manhã, o papa reconhecia a seus velhos amigos os grandes desafios que o aguardava. Desordem financeira no Instituto para as Obras de Religião (mais conhecido como o Banco do Vaticano). Avareza burocrática que infernizava a administração central, conhecida como a Cúria Romana. Contínuas revelações de padres pedófilos protegidos por autoridades eclesiásticas. Sobre estes e outros assuntos Francisco quis agir com rapidez, sabendo que “iria fazer um monte de inimigos. Ele não é ingênuo, OK?”, como afirmou o amigo Norberto Saracco que estava lá naquela manhã.
Saracco lembra ter manifestado certa preocupação para com a ousadia do papa. “Jorge, sabemos que tu não usas um colete à prova de balas”, disse ele. “Há muitos malucos aí fora”.
Calmamente Francisco respondeu: “O Senhor me colocou aqui. Ele vai ter que cuidar de mim”. Embora não tenha pedido para ser papa, disse que o momento em que seu nome foi escolhido no Conclave, sentiu uma tremenda sensação de paz. E, apesar das animosidades em que provavelmente iria incorrer, garantia aos seus amigos: “Eu ainda sinto a mesma paz”.
O que o Vaticano sente é outra história
Quando Federico Wals, que passou vários anos trabalhando como assessor de imprensa do Bergoglio, viajou de Buenos Aires a Roma no ano passado para ver o papa, primeiro fez uma visita ao Pe. Federico Lombardi, responsável de longa data pelo departamento de comunicação do Vaticano cujo trabalho essencialmente espelha o que Wals antigamente fazia, ainda que em escala muito maior. “Então, padre”, perguntou o argentino, “como o senhor se sente trabalhando para o meu ex-chefe?” Soltando um sorriso, Lombardi respondeu: “Confuso”.
Lombardi tinha servido como porta-voz de Bento XVI, antes conhecido como Joseph Ratzinger, homem de precisão germânica. Depois de se encontrar com um líder mundial, o Papa Emérito iria surgir e recitar um somatório incisivo, diz Lombardi, com melancolia palpável: “Era incrível. Bento XVI era tão claro. Ele dizia: ‘Falamos sobre estas e estas coisas, eu concordo com esses pontos, eu fui contra esses outros pontos; e o objetivo da nossa próxima reunião será este’ – dois minutos e eu estava totalmente ciente sobre quais eram os conteúdos. Com Francisco – ‘Este é um cara sábio; ele teve tantas experiências interessantes’”.
Com um sorriso tímido, Lombardi acrescenta: “Diplomacia para o Papa Francisco não tem tanto a ver com estratégia, mas sim com: ‘Eu conheci essa pessoa, temos agora uma relação pessoal, vamos agora fazer o bem para a Igreja e para o povo”.
“Pintar o papa como se fosse uma espécie de super-homem, uma espécie de astro, me soa ofensivo. O Papa é um homem que ri, chora, dorme tranquilo e tem amigos como todos.” (Papa Francisco, em entrevista ao Corriere della Sera em 5-03-2014)
O porta-voz do papa fala a respeito do novo ethos no Vaticano, sentado em uma pequena sala de conferências no edifício da Rádio Vaticano, a poucos passos do Rio Tibre. Lombardi usa um traje sacerdotal amarrotado que combina com a sua expressão de perplexidade e cansaço. Ainda ontem, diz ele, o papa teve um encontro com 40 líderes judaicos na Casa Santa Marta – e a Sala de Imprensa do Vaticano soube disso somente após o fato. “Ninguém sabe de tudo o que ele está fazendo”, diz Lombardi. “Nem o seu secretário pessoal sabe. Tenho de ficar perguntando por aí: uma pessoa sabe uma parte da sua pauta, uma outra sabe outra parte...”.
O chefe das comunicações no Vaticano se dá de ombros e diz: “Assim é a vida”.
A vida era completamente diferente com Bento XVI, um estudioso que continuou a escrever livros teológicos durante os seus oito anos como papa, e com João Paulo II, ator de teatro e poliglota cujo papado durou quase 27 anos. Estes dois eram guardiões confiáveis da ortodoxia papal. O espetáculo deste novo papa, com seu relógio de plástico e sapatos ortopédicos volumosos, tomando o seu café da manhã no refeitório do Vaticano, exigiu que alguns precisassem de tempo para se acostumar. E o mesmo para com o seu senso de humor, destacadamente informal. Depois de receber a visita de um velho amigo e colega argentino na Casa Santa Marta, o arcebispo Claudio Maria Celli, Francisco insistiu em acompanhar o seu convidado até o elevador.
“Por que isso?”, perguntou Celli. “Para que tu tenhas certeza que eu fui embora?”
Sem perder o ritmo, o papa respondeu: “E para que eu possa ter certeza de que tu não levaste nada contigo”.
Na tentativa de adivinhar as idas e vindas do papa de 78 anos, o mais próximo que as autoridades vaticanas têm de um intermediário vem sendo o Cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, um diplomata muito respeitado e – o que é mais importante – que conta com a confiança de seu chefe, conforme Wals, “porque ele não é demasiado ambicioso, e o papa sabe disso. Essa é uma qualidade fundamental para o papa”. Ao mesmo tempo, Francisco reduziu drasticamente os poderes do secretário de Estado, particularmente quanto às finanças do Vaticano. “O problema aqui”, diz Lombardi, “é que a estrutura da Cúria não mais está clara. Um processo está em curso, e como ela [a Cúria] será no final ninguém sabe. A Secretaria de Estado não está tão centralizada, e o papa possui muitas relações que são dirigidas por ele sozinho, sem qualquer mediação”.
Valentemente erguendo a cabeça, o porta-voz do Vaticano acrescenta: “Em certo sentido, isso é positivo, pois no passado houve críticas de que algumas pessoas tinham poder demais sobre o papa. Não se pode dizer que este é o caso agora”.
Como muitas instituições, o Vaticano não é receptivo a mudanças e suspeita de quem venha propô-las. Desde o século XIV, o epicentro católico tem sido uma cidade-Estado de 110 hectares, cercada de muros, dentro de Roma. Há tempos a Cidade do Vaticano vem sendo uma atração para os turistas, graças à Capela Sistina e à Basílica de São Pedro, além de um destino de peregrinação para o 1,2 bilhão de católicos no mundo – o que significa dizer que o mundo vem a esta cidade e nunca o contrário. Mas o Vaticano é também aquilo que a sua designação implica: uma entidade territorial autossuficiente, com seus próprios administradores municipais, força policial, tribunais, bombeiros, farmácia, serviço postal, mercearia, jornais e time de críquete. O seu corpo de imprensa, os “vaticanisti”, monitora os caprichos da instituição. A sua força de trabalho entrincheirada não paga impostos sobre vendas na Cidade do Vaticano. A sua burocracia diplomática, na forma familiar das burocracias, presenteia os bispos com belas postagens relegando as menos bonitas a outros setores. Durante séculos, o Vaticano resistiu a conquistas, pragas, fome, fascismo e escândalos.
Agora chega Francisco, alguém que despreza paredes e que, certa vez, disse a um amigo, enquanto passeavam próximos à Casa Rosada, onde o presidente da Argentina vive: “Como podem saber o que as pessoas comuns querem, quando eles constroem um muro em torno de si mesmos?” Ele tem buscado ser o que Franco, que escreveu um livro sobre Francisco e o Vaticano, chama de “o papa disponível – uma contradição em termos”. A própria noção parece ter drenado o sangue do rosto opaco do Vaticano.
“Acredito que ainda não vimos as mudanças reais”, diz Ramiro de la Serna, sacerdote franciscano de Buenos Aires que conhece o papa há mais de 30 anos. “E acredito também que nós ainda não vimos a sua verdadeira resistência”.
As autoridades vaticanas ainda estão aprendendo a lidar com o papa. É tentador para elas ver as reações de coração aberto do papa como provas de que ele é uma criatura de puro instinto. “Totalmente espontâneos”, diz Lombardi sobre os gestos muito comentados de Francisco durante a sua viagem ao Oriente Médio, entre eles, o seu abraço a um imã, Omar Abboud, e a um rabino, seu amigo Skorka, depois de rezar com eles no Muro das Lamentações. Mas, na verdade, diz Skorka, “eu falei sobre isso com o papa antes de sairmos para a Terra Santa; eu lhe disse: ‘Eis o meu sonho, nos abraçarmos, junto ao Muro das Lamentações, tu, eu e Omar’”.
O fato de que Francisco tenha concordado com antecedência em cumprir o desejo do rabino não torna o seu gesto menos sincero. Em vez disso, sugere a consciência de que cada ato e cada sílaba serão interpretados como presságios simbólicos. Tal prudência está em completo acordo com o Jorge Bergoglio conhecido por seus amigos argentinos, que zombam da ideia de que ele é inocente. Eles o descrevem como um “jogador de xadrez”, um jogador cujos dias são “perfeitamente organizados”, em que “cada passo foi pensado”. O próprio Bergoglio disse aos jornalistas Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin há alguns anos que ele, raramente, prestava atenção aos seus impulsos, uma vez que “a primeira resposta que me vem é geralmente errada”.
Mesmo nas mudanças no estilo de vida aparentemente drásticos que o Papa Francisco trouxe, ele fez concessões de senso comum para as realidades do Vaticano. Ele sugeriu que seus guardas suíços não precisassem segui-lo em todos os lugares, mas desde então tem renunciado a presença quase constante deles. (Por vezes o papa pede aos guardas para que tirem fotografias dele com visitantes, o que é outra concessão, uma vez que Bergoglio não gostava das câmeras.) Embora tenha evitado o papamóvel à prova de balas, muito utilizado desde a tentativa de assassinato do Papa João Paulo II em 1981, ele reconhece que não mais pode andar de metrô e se enfiar nos guetos, coisas que fazia em sua Buenos Aires e pelas quais era conhecido. Isso o levou a lamentar, quatro meses depois de assumir o papado: “Se tu soubesses quantas vezes tive vontade de sair pelas ruas de Roma... É que, em Buenos Aires, eu gostava de caminhar pela estrada, gostava tanto! Nesse sentido, sinto-me um pouco enjaulado”.
Amigos dizem que, como chefe do Vaticano e argentino, ele sentiu o dever de receber a presidente de seu país, Cristina Kirchner, mesmo quando lhe ficou evidente que esta usaria tais visitas visando um ganho político próprio. “Quando Bergoglio recebeu a presidente de forma amigável, foi por pura graça”, diz o pastor Juan Pablo Bongarrá, de Buenos Aires. “Ela não merecia isso. Mas é assim que Deus nos ama, com pura graça”.
“Não existe uma família perfeita, um marido perfeito nem uma mulher perfeita. Nem falemos da sogra perfeita! Existimos nós, pecadores.” (Papa Francisco, em encontro com noivos de várias partes do mundo, em 14-02-2014)
Para Wals, seu ex-assessor de imprensa, a entrada cuidadosa de Bergoglio no papado não é de todo surpreendente. Com efeito, ela se prefigurou na maneira pela qual o então arcebispo cardeal deixou o seu ambiente de trabalho anterior. Percebendo que havia chances de ser eleito no Conclave – afinal, ele havia sido o vice-campeão na disputa com Ratzinger após a morte de João Paulo II em 2005 –, Bergoglio viajou para Roma em março de 2013, diz Wals, “com todas as cartas finalizadas, com as finanças em dia, tudo em perfeita harmonia. E, na noite antes de partir, ele me chamou para tratar de alguns detalhes de seu ofício aqui e também para me dar conselhos a respeito do meu futuro, como alguém que sabia que talvez iria ter de sair para cumprir uma outra missão”.
Sair para cumprir uma outra missão foi o que ele fez, e, apesar da serenidade que exibe, Francisco tem, no entanto, se aproximado de suas novas responsabilidades com seriedade imbuída de autocrítica, característico de sua forma de ser. Conforme ele disse no ano passado a um ex-aluno, o escritor argentino Jorge Milia: “Me pus a procurar na biblioteca do Papa Bento XVI, mas não consegui encontrar um manual do usuário. Então eu tenho feito o que me é possível”.
Ele é, a imprensa iria reconhecer, um reformador. Um radical. Um revolucionário. E é também nenhuma dessas coisas. O seu impacto até agora é tão impossível de não se perceber quanto o é de se mensurar. Francisco acendeu uma centelha espiritual não só entre os católicos, mas também entre os demais cristãos, entre pessoas de outras religiões e até mesmo entre os não crentes. Como diz Skorka: “Ele está mudando a religiosidade em todo o mundo”. O líder da Igreja Católica é amplamente visto como uma boa nova para uma instituição que, durante anos antes de sua chegada, tinha conhecido apenas más notícias. “Dois anos atrás”, diz o Pe. Thomas J. Reese, jesuíta e colunista do National Catholic Reporter, “se perguntássemos na rua: ‘O que a Igreja Católica é contra, e o que ela é a favor?”, ouviríamos: ‘Ela é contra o casamento gay, contra o controle de natalidade’ – e coisas assim. Neste momento, se perguntarmos às pessoas, elas dirão: ‘Ah, o papa – ele é o cara que ama os pobres e não mora em um palácio’. Isso é uma conquista extraordinária para uma instituição tão antiga. Ironicamente, digo que a Faculdade de Administração de Harvard poderia usá-lo para ensinar técnicas de ‘rebranding’. E os políticos em Washington fariam qualquer coisa para ter o índice de aprovação que tem o papa”.
Naturalmente, como fica claro quando falamos com autoridades vaticanas, o espetáculo de uma personalidade papal – Francisco como um rock star – é impróprio para uma instituição tão digna. Para algumas destas autoridades, a popularidade do papa também é ameaçadora. Ela reforça o mandato que o papa recebeu dos cardeais que desejavam um líder que deixasse de lado o distanciamento régio da Igreja e expandisse o seu círculo eleitoral espiritual. Diz assim uma destas autoridades, o Cardeal Peter Turkson, de Gana: “Pouco antes do Conclave, quando todos os cardeais se reuniram, compartilhamos os nossos pontos de vista. Havia um certo estado de espírito: vamos nos dar uma chance. Esse tipo de sentimento estava forte no lado de dentro [da Basílica]. Ninguém dizia: ‘Não mais italianos ou não mais europeus’ – mas um desejo de mudança estava aí presente”.
“O Cardeal Bergoglio era basicamente desconhecido de todos os que estavam ali reunidos”, continua Turkson. “Mas então ele fez um discurso – uma espécie de manifesto. Ele aconselhou a nós, ali reunidos, de que precisávamos pensar sobre a Igreja que vai às periferias – e não apenas em termos geográficos, mas também à periferia da existência humana. Para ele, o Evangelho nos convida a ter esse tipo de sensibilidade. Foi esta a sua contribuição. E ela trouxe um tipo de frescor ao exercício do acompanhamento pastoral, uma experiência diferente de cuidar do povo de Deus”.
Para aqueles que, como Turkson, que queriam mudança, Francisco não decepcionou. Dentro de dois anos, ele nomeou 39 cardeais, 24 dos quais vieram de fora da Europa. Antes de fazer um discurso severo em dezembro passado, em que enumerou as “doenças” que afligem a Cúria (entre eles, a “vã glória”, a “fofoca” e o “lucro mundano”), o papa encarregou nove cardeais – todos, exceto dois, de fora da Cúria – com a tarefa de reformar a instituição. Chamando o abuso sexual na Igreja como um “culto sacrílego”, ele formou a Pontifícia Comissão para a Tutela de Menores presidida por Seán O’Malley Patrick, arcebispo de Boston. Para trazer transparência às finanças do Vaticano, o papa trouxe um ex-jogador de rugby: o Cardeal George Pell, de Sydney, e o nomeou prefeito da Secretaria para a Economia – nomeação que coloca Pell em pé de igualdade com o secretário de Estado do Vaticano. Em meio a estas nomeações, o papa pagou um ato notável de deferência para com a velha guarda: manteve em seu posto o Cardeal Gerhard Müller, nomeado por Bento XVI, em geral considerado um linha-dura, como o chefe para a Congregação para a Doutrina da Fé – CDF, dicastério que faz valer as crenças da Igreja.
Estes movimentos significam muito, mas é difícil dizer a que eles irão levar. Os primeiros indícios têm sido tentadores para os reformistas, bem como para os católicos mais tradicionais. Ao mesmo tempo em que aceitou a renúncia do primeiro bispo americano a ser condenado por deixar de relatar suspeitas de abuso infantil em sua jurisdição, Francisco também nomeou como bispo um padre chileno acusado de ter encoberto os abusos sexuais de outro sacerdote, o que provocou protestos durante a cerimônia de instalação do prelado. Além disso, o Sínodo extraordinário sobre a família, convocado por Francisco em outubro passado, não produziu nenhuma mudança doutrinal radical, fator que acalmou os católicos conservadores, que temiam exatamente isso. Porém, o Sínodo no próximo mês de outubro poderá produzir um resultado diferente. Sobre a questão da anulação da proibição à Comunhão para os católicos divorciados cujos casamentos não foram, por sua vez, anulados na Igreja, Scannone, amigo e ex-mestre do pontífice, falou: “Ele me disse: ‘Quero ouvir a todos’. Ele vai esperar pelo segundo Sínodo, e ouvirá a todos; ele definitivamente está aberto a mudanças”. Da mesma forma, Saracco, o pastor protestante, discutiu com o papa a possibilidade da remoção do celibato como uma exigência para os sacerdotes. “Se ele conseguir superar as pressões da Igreja de hoje e os resultados do Sínodo sobre a família, em outubro”, diz Saracco, “creio que, depois disso, ele estará pronto para falar sobre o celibato”. Quando pergunto se o papa lhe havia dito isso ou se apenas estava confiando na sua intuição, Saracco sorriu maliciosamente e disse: “É mais do que intuição”.
Então, novamente, as palavras e os gestos do papa se tornaram um conjunto indistinto tal que o seu público pode interpretar como quiser. Para um homem de palavras e hábitos simples, isso parece irônico. Mas também não é nenhuma novidade.
Em 2010, Yayo Grassi, chefe de cozinha residente em Washington, DC, enviou um e-mail ao seu antigo mestre, o arcebispo de Buenos Aires. Grassi, que é gay, tinha lido que o seu querido orientador havia condenado a legislação que legalizaria o casamento homoafetivo. “O senhor tem sido o meu guia, ampliando continuamente os meus horizontes – o senhor configurou os aspectos mais progressistas da minha visão de mundo”, escreveu Grassi. “E ouvir isso do senhor é um tanto frustrante”.
O arcebispo respondeu por e-mail, embora, sem dúvida, fornecendo um rascunho a mão ao seu secretário para tal, uma vez que o Papa Francisco, na ocasião e agora, nunca fez uso da internet, nem nunca usou um computador, ou mesmo possuiu telefone celular. (A Sala de Imprensa do Vaticano é quem prepara os tuítes das suas nove contas no Twitter, que têm 20 milhões de seguidores, e envia-os, com a aprovação do papa.) Francisco começou dizendo que as palavras de Grassi tocaram o coração. A postura da Igreja Católica sobre o tema do casamento foi o que sempre foi. Ainda assim, doía a Bergoglio saber que havia decepcionado o seu pupilo. O antigo “maestrillo” de Grassi garantiu-lhe que a imprensa havia interpretado de maneira equivocada a postura do papa. Acima de tudo, disse o futuro papa em sua resposta, em seu trabalho pastoral não havia lugar para a homofobia.
Esta troca de correspondência oferece uma imagem daquilo que deveríamos, e do que não deveríamos, esperar de seu papado. No final, Bergoglio não desdisse a sua postura contra o casamento gay, que, como escreveu, ele enxerga como uma ameaça à “identidade e sobrevivência da família: pai, mãe e filhos”. Ninguém entre as dezenas de amigos que entrevistei acreditava que Francisco reavaliaria a postura da Igreja neste assunto.
O que renovou a reverência de Grassi para com o seu ex-mestre é, exatamente, o que hoje atrai multidões à Praça de São Pedro e certamente estará presente em sua visita, em setembro, aos Estados Unidos: a brancura ofuscante do seu traje papal tomada como uma simplicidade acessível. É a afinidade deste “porteño” pelas ruas, unido com a crença dos jesuítas no engajamento vigoroso junto à comunidade (“el encuentro”, o encontro), que envolve tanto sair de si como ouvir o outro, iniciativa decididamente mais árdua do que a publicação de editos impessoais. Porque isso requer a coragem da humildade. É o que motivou Bergoglio a se ajoelhar e pedir por oração. É o que fez os seus olhos se inundar de lágrimas quando visitava uma favela de Buenos Aires, onde um homem declarou que sabia que o arcebispo era um deles, pois podia imaginá-lo a andar na parte de trás do ônibus como uma pessoa qualquer. É o que o obrigou, como papa, a recusar a ter sua mão beijada por um sacerdote albanês que fora preso e torturado pelo governo – e, em vez disso, o fez tentar beijar a mão do homem, na sequência caindo em prantos em seus braços. E é aquilo que fez cambalear milhões dois anos atrás, quando, em um momento retórico emblemático, Francisco proferiu estas palavras simples e surpreendentes, vindo na forma de um questionamento gentil em resposta a uma pergunta sobre sacerdotes homossexuais: “Quem sou eu para julgá-los?”.
Esta parece ser a missão do papa: dar início a uma revolução dentro do Vaticano e para além de seus muros, sem contrariar uma série de preceitos antigos. “Ele não vai mudar a doutrina”, insiste de la Serna, seu amigo argentino. “O que ele vai fazer é devolver a Igreja à sua verdadeira doutrina – aquela de que a Igreja se esqueceu, a doutrina que põe o homem de volta no centro. Por muito tempo, a Igreja colocou no centro pecado. Ao colocar o sofrimento do homem, e sua relação com Deus, de volta ao centro, estas atitudes hostis em relação à homossexualidade, ao divórcio e a outras coisas começarão a mudar.
Então, novamente, o homem que disse a seus amigos que precisava “realmente começar a fazer mudanças agora” não conta com o tempo ao seu lado. O comentário feito por Francisco este ano de que o atual papado pode durar apenas uns “quatro ou cinco anos” não surpreendeu os amigos argentinos, que sabem que ele gostaria de viver os seus últimos dias de volta em sua terra natal. Mas estas palavras foram, certamente, um conforto para os linhas-duras dentro do Vaticano, que darão o seu melhor para retardar os esforços de Francisco por reformas da Igreja e que esperam que o seu sucessor seja um adversário menos potente.
Ainda assim, esta revolução – seja ou não bem-sucedida – é diferente de qualquer outra, mesmo que apenas para a alegria implacável com a qual está sendo travada. Quando o novo arcebispo de Buenos Aires, o Cardeal Mario Poli, comentou ao Papa Francisco durante uma visita à Cidade do Vaticano sobre o quão interessante era ver seu amigo, certa vez sisudo, com um sorriso onipresente, o pontífice considerou essas palavras com cuidado, como sempre faz.
Em seguida, Francisco sem dúvida sorrindo, disse: “É muito divertido ser papa”.
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Será que o Papa mudará o Vaticano? Ou será que o Vaticano mudará o Papa? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU