Por: Jonas | 20 Mai 2015
Engenhoso. Divertido. Aprazível. Tudo isso, e outras tantas coisas, é “Los Beatles y la ciencia: de cómo la música, John, Paul, George e Ringo nos ayudan a entender la ciencia”, o livro do físico uruguaio Ernesto Blanco (foto), que foi apresentado na recente Feira do Livro. E que também tem a virtude de contar como a ciência é algo que se passa com as pessoas. Personalidades, na realidade, tão conhecidas para o mundo inteiro, que qualquer coisa que lhes ocorre desperta curiosidade (ou mal-estar talvez?), mesmo ao menos experimentado nos discursos científicos ou musicais. Pode a ciência explicar o fenômeno mundial dos Beatles? Ou, ao contrário, que contribuições Os Quatro de Liverpool deram à ciência? E também: por que “Yesterday” é uma das canções mais importantes da história? São algumas das perguntas enfrentadas por Blanco neste livro editado por Siglo Veintiuno, em sua coleção de divulgação “Ciencia que Ladra”.
Fonte: http://goo.gl/2fRlvE |
A entrevista é de Sonia Santoro, publicada por Página/12, 18-05-2015. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Em quem ou no que se inspirou para chegar a ser um cientista?
Desde o que recordo, a ciência me interessou, inicialmente a biologia, já que eu gostava muito de animais e lia enciclopédias e livros sobre eles. Nessa época, pensava em ser veterinário: não sabia que era possível ser cientista no Uruguai e, de fato, nessa época, era quase impossível. Por ler ficção científica e divulgadores da ciência, logo comecei a gostar de astronomia e física. A decisão por esse trabalho não foi tão imediata, pois ao entrar na universidade não tinha claro que no Uruguai era possível viver da ciência. De qualquer modo, a ciência estaria em minha vida, mesmo que fosse como hobby. Comecei a estudar engenharia e, paralelamente, Licenciatura em Física (como diversão) e depois, ao perceber as possibilidades de trabalho, acabei me dedicando totalmente ao que eu mais gostava, que era a ciência básica. Finalmente, pude me dedicar a uma disciplina que reúne tudo o que eu gosto: a física e os grandes animais, incluindo os fósseis do passado.
Por que a física lhe entusiasma?
O que mais me surpreende na física é a possibilidade de utilizar as matemáticas (algo muito preciso e lógico) para entender e predizer questões do mundo real. A maior parte do tempo, o mundo que nos rodeia aparece como algo difícil de entender e muitas questões cotidianas vão além de nossa possibilidade de predizer com precisão. A física nos mostra que há muitos fenômenos que podem ser compreendidos e preditos com precisão matemática e compreender até onde isso é possível parece um empreendimento realmente interessante e desafiante.
Por que você faz a divulgação?
Minha aproximação com a ciência ocorreu por meio da leitura de grandes divulgadores da ciência como Isaac Asimov, Carl Sagan e Stephen Jay Gould, entre outros. Portanto, para mim é difícil ver a ciência como algo descolado de seu valor cultural. A ciência pode servir para muitas coisas, especialmente para sustentar avanços tecnológicos ou médicos, mas também é um empreendimento cultural. Na minha perspectiva, o trabalho não termina enquanto não for transmitido para um público geral e de um modo significativo à importância dos problemas que se investiga. A ciência, assim como a arte, é algo que nos dá a possibilidade de refletir sobre nossa vida e nosso lugar no universo. Isso é algo que enriquece nossas vidas. Pessoalmente, além disso, divirto-me muitíssimo em compartilhar a ciência e explicar aquelas coisas que, por causa de minha profissão, posso entender com mais facilidade do que outras pessoas.
No livro, transmite-se a importância de que o trabalho e o prazer estejam de mãos dadas. Como consegue trabalhar assim?
Na ciência encontro um campo no qual posso canalizar muitas inquietações pessoais. E como divulgador posso, além disso, buscar um lado mais divertido ou artístico para apresentar minhas ideias. Ao buscar o prazer pessoal, é muito provável que o resultado também seja prazeroso para os outros. Embora, no meu caso, tive a sorte de me dedicar a algo que sempre gostei, acredito que isto é aplicável para outras profissões (acredito que quase para todas). Em muitos casos, essa busca implica em romper alguns modelos e tentar coisas novas, acredito que isso é possível em qualquer atividade que se realize.
Como chegou a estudar animais extintos, analisando cantos infrassônicos?
Meu campo de especialização é a paleobiomecânica, ou seja, a aplicação da mecânica newtoniana (um ramo da física) ao estudo dos seres vivos que existiram no passado de nosso planeta. A ideia é usar a física como ferramenta para reconstruir o modo de vida e os hábitos dos dinossauros e outros surpreendentes animais do passado. Em certa ocasião, concebemos a possibilidade de estudar os ossos do ouvido médio das preguiças-gigantes que habitaram a América do Sul e a América do Norte até cerca de 10.000 anos atrás. Algumas dessas preguiças atingiram o tamanho de rinocerontes ou, até mesmo, dos elefantes atuais. Esse trabalho nos mostrou que estes animais eram capazes de ouvir sons muito graves, em alguns casos infrassônicos. Esses sons são muito bons para se comunicar a longa distância. Vimos, além disso, que estes animais possuíam certas adaptações para emitir sons nessas frequências. Portanto, a ideia que tivemos é que pudesssem usar os infrassons para se comunicar entre eles. Algo assim como canções de amor infrassônicas ressoando por nossas planícies até cerca de 10.000 anos atrás. Este tipo de trabalho me levou a refletir com mais profundidade sobre o uso dos sons que os animais fazem e os seres humanos (por exemplo, com a música).
O que é o projeto “Beatlemania científica”?
É um ciclo de palestras e conferências no qual se utiliza a música dos Beatles, interpretada ao vivo, como um mecanismo para facilitar e ilustrar conceitos da física e da biologia da música. Produzo música junto com um grupo de cientistas e estudantes de ciências. Inicialmente, participavam meus colaboradores mais próximos, mas atualmente se somaram estudantes que não necessariamente se formarão em biomecânica. Tem contado com diferentes formatos em razão de uma evolução natural da atividade e também para adaptá-lo a diferentes públicos e possibilidades dos lugares no qual podemos nos apresentar.
Quais instrumentos você toca?
Não sou um músico profissional e o que fazemos é totalmente autodidata para a maioria de nós. A baterista, Valentina Sancristóbal, é integrante de uma orquestra sinfônica juvenil e, portanto, tem uma sólida formação musical (além de ter ingressado na Faculdade de Ciências para estudar física médica). Temos, há alguns meses, um tecladista, Ismael Acosta, que é professor de piano (e estudante de ciências biológicas). Eu toco a guitarra com a qual estudei um pouco na minha adolescência, e que retomei com este projeto, e canto na maioria das canções (desde que iniciei o projeto, estou tendo aulas de canto com um professor que considero um verdadeiro mestre, já que o que aprendo com ele vai muito além do canto, do ponto de vista técnico). Em alguma canção toco o baixo, em certas ocasiões mostro algumas coisas de ritmo, do ponto de vista da biomecânica, usando técnica e sapatos tap. Em um novo projeto que estamos iniciando com novas canções, estou tocando a harmônica em alguns países (como não sei nada, posso tocar de tudo). Nestes três anos do projeto, ensaiamos muitíssimo e tocamos muitas vezes para o público (acredito que mais de 30 vezes), motivo pelo qual aprendemos e melhoramos muito. O resultado é uma interpretação digna das canções que o público recebe muito bem, mas não somos profissionais da música (a maioria) e o interessante é justamente que somos cientistas fazendo música como forma de comunicar algo. Gosto de manter as coisas dessa maneira e que aqueles que se incorporarem no futuro sejam cientistas ou estudantes de ciências, o que ajuda a romper um pouco o estereótipo que costumamos ter dos cientistas.
Por que os Beatles e a ciência?
Basicamente tem a ver com o fato de que é uma música que todos nós, integrantes de meu grupo de trabalho, gostamos, representando três décadas (gente de 40 e pouco, 30 e pouco, 20 e pouco). Para mim, pessoalmente, era muito mais fácil interpretar por ter suas melodias e ritmos muito gravados em minha memória. Além disso, por conhecer grande parte da carreira e da obra musical deles, sentia-me muito mais cômodo encontrando conexões com a ciência.
Há uma fórmula científica que explica o êxito dos Beatles?
É claro que não há uma única explicação completa para esse fenômeno e menos ainda que possa ser explicado em uma fórmula. Esse êxito tem a ver com fenômenos muito complexos de tipo social, psicológico e também em algum nível, talvez, biológico ou físico-matemático. Contudo, não é um fenômeno tão simples de se colocar em uma equação, como pode ser o movimento dos planetas do Sistema Solar ou a queda de uma maçã. No entanto, há alguns estudos que são realizados sobre os Beatles que permitem ter algumas chaves no momento de se pensar sobre este assunto. A importância evolutiva que a música tem para nossa espécie e questões fisiológicas de como respondemos aos sons nos ajudam a perceber como a música dos Beatles pode resultar importante (o mesmo poderia se dizer de outros músicos e de fenômenos que se dão em outras culturas). Também há análises sobre quais temas e discos dos Beatles foram mais exitosos em nível popular e de quais características isso depende. Novamente, aí, podemos ter chaves para entender esse fenômeno. Acredito que a resposta final fica nas mãos do leitor, após ver algumas das chaves que a ciência pode oferecer. Não é um tema fechado e acredito que, felizmente, é assim.
Em que os Beatles contribuíram com a ciência?
Um aspecto concreto é o de proporcionar um muito interessante objeto de estudo com suas canções e letras das mesmas para diferentes análises científicas que comento no livro. Acredito que também sua história é muito inspiradora para nós que participamos de uma atividade criativa como é a ciência. Esse grupo de jovens músicos autodidatas, que desde a sua adolescência dedicava longas horas para ensaiar, experimentar e buscar aprender sobre a música, é um exemplo interessante de como a experimentação e a busca de novos caminhos pode levar ao êxito. Isso é algo que qualquer jovem cientista necessita. Outra contribuição mais concreta é a invenção da tomografia computadorizada.
Pode comentá-lo?
A tomografia computadorizada foi desenvolvida devido aos excedentes financeiros que a empresa EMI estava tendo, graças ao grande êxito financeiro dos Beatles. A ideia surgiu a partir dos desenvolvimentos bélicos do radar, mas, neste caso, um pesquisador pensou em um uso pacífico e que, além disso, implicava em mudar as coisas. Ao invés de emitir ondas de um ponto para localizar algo que poderia estar de algum outro lado, emitir ondas de muitos lados para procurar observar o que ocorre em um ponto. Este problema foi resolvido do ponto de vista teórico por vários pesquisadores, mas o dinheiro para realizar o empreendimento apenas foi possível nos laboratórios financiados pela EMI. Os Beatles não tiveram uma influência direta nas decisões ou ideias desse processo, mas no início de suas carreiras sofreram a perda de um grande amigo de John Lennon, e integrante da banda, por um problema no cérebro que poderia ter sido detectado com esta tecnologia. Ou seja, é possível ver uma conexão mais profunda entre os Beatles e esta história, além dos impactos que tiveram para salvar outras vidas.
Para que serve a música na luta por uma sobrevivência da espécie?
Este é um tema de debate na ciência e há várias ideias a respeito de qual seria a principal vantagem da música. É provável que não haja uma resposta única, mas há pelo menos quatro ideias que foram propostas (isto é discutido em profundidade no livro). Uma é a seleção sexual, ou seja, a música não traria uma vantagem direta na luta contra outras espécies, mas seria útil para os indivíduos no momento de conseguir uma parceira para se reproduzir (algo essencial do ponto de vista evolutivo). A música cumpriria uma função semelhante a da cauda do pavão macho. Também existe a ideia de que as canções de ninar (que existem em todas as culturas humanas e que os Beatles também tinham algumas) serviram para acalmar os bebês em situações vitais para a sobrevivência e que, inclusive, foi de utilidade para o desenvolvimento da habilidade de processamento de sons, que é necessária para sua vida adulta. Outra ideia é que a música foi, em algum momento do passado, a única linguagem que os hominídeos possuíam, uma linguagem mais imprecisa, mas mais emocional e potente. Outra é que a música cumpriria um papel muito importante para unir grupos humanos.
Como é isso?
Há muitas atividades sociais e que envolvem a necessidade de atuar em conjunto, como equipe, para as quais se utiliza a música. Exemplos podem ser as músicas ao redor dos esportes, as marchas militares, a coordenação de conduta que a música gera em um concerto. O poder de nossa espécie está em atuar em conjunto e não sempre no poder dos indivíduos. A música poderia ajudar a eliminar vergonhas e temores em situações nas quais é importante que um grupo humano se coordene. No passado, isto pode ter sido muito importante para a sobrevivência dos grupos humanos. É também um fator de socialização e união em festas e diversos rituais que aumentam a coesão social.
Por que “Yesterday” continua vigente hoje? Qual é a relação dos músicos com seus sonhos?
A vigência de “Yesterday” não pode ser explicada em termos científicos, mas é interessante saber que surgiu em um sonho de Paul McCartney. Um estudo científico mostra que é frequente que isso aconteça com os músicos (sonhar com uma música nova). Também os sonhos são importantes em outros processos criativos como os que acontecem na literatura e também nas descobertas científicas.
Você poderia ter escrito os Rolling Stones e a ciência? Os Beatles são apenas uma desculpa para nos aproximar das ciências duras?
Neste caso, parece que você leu a minha mente. Estou exatamente começando a trabalhar em um projeto relacionado aos Rolling Stones, mas ainda é prematuro falar a esse respeito, já que estamos (a editora e eu) apenas começando a ver o que resulta desta experiência dos Beatles e a ciência. É claro que um projeto como este pode ser feito com outros músicos ou outros tipos de música. O realizado com os Beatles pode ser visto como um pretexto para divulgar a ciência (como disse, não é imprescindível que seja assim), mas no meu caso é mais do que isso, é um tema muito interessante em si mesmo e sobre o qual a ciência pode nos oferecer uma nova visão. Também pode se ver ao contrário, divulgar a ciência é um pretexto para poder me aproximar dos Beatles e de sua música.
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A ciência dos Beatles - Instituto Humanitas Unisinos - IHU