Diferentes denominações religiosas fazem uso de dinheiro público para prática assistencial com finalidade lucrativa, colocando em risco o princípio constitucional do Estado laico
O cristianismo está na formação do Brasil enquanto Estado. Chegou junto com o descobrimento e está alicerçado na crença dos ensinamentos de Jesus Cristo. Majoritariamente representado pelo catolicismo, o cristianismo brasileiro vive um fenômeno de transição religiosa, com especial crescimento dos evangélicos neopentecostais. Estimativas indicam que haverá uma troca de hegemonia na primeira metade deste século, com os católicos deixando de ser maioria.
Essa reconfiguração do campo religioso brasileiro exerce um papel social e político em diferentes espaços públicos. Mas, esse não é um fato recente. “Vemos, desde a eleição para a Assembleia Constituinte de 1986, a grande participação de evangélicos pentecostais na política partidária, formando grandes bancadas nas casas legislativas”, pontua o sociólogo André Ricardo de Souza, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Para ele, esses atores foram fator decisivo na “mobilização do ativo eleitoral evangélico para a eleição presidencial de Jair Bolsonaro em 2018 e tem sido também em outros pleitos majoritários para cargos executivos”, assinala.
Contudo, as práticas financeiras que muitas instituições religiosas adotam não seguem o modelo de gratuidade proposto nos evangelhos. “A meu ver, é a grande movimentação econômica, isenta de impostos, por determinadas denominações, destacadamente a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), ligada a empresas bastante lucrativas e impulsionadas por doações de fiéis, sendo a maior parte deles de baixa renda”, destaca o professor, que acaba de lançar o livro O cristianismo brasileiro contemporâneo: aspectos econômicos, assistenciais, políticos e ecumênicos (EdFUSCar e FAPESP, 2024). “Algo que fere o princípio cristão da gratuidade caritativa”, complementa.
André Ricardo de Souza (Foto cedida pelo entrevistado)
André Ricardo de Souza é doutor em sociologia pela USP, professor associado do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, pesquisador do CNPq, coordenador do Núcleo de Estudos de Religião, Economia e Política (NEREP) e autor de O cristianismo brasileiro contemporâneo: aspectos econômicos, assistenciais, políticos e ecumênicos (EdFUSCar e FAPESP, 2024).
IHU – O que significa ser cristão no Brasil hoje?
André Ricardo de Souza – Ser cristão no Brasil hoje significa fazer parte de um amplíssimo e muito heterogêneo segmento religioso, composto por diferentes igrejas e instituições afins, que têm em comum, evidentemente, a crença em Jesus Cristo, a partir de diferentes interpretações teológicas e doutrinárias. Estas interpretações, por vezes, são bastante contraditórias e até antagônicas entre si em termos da compreensão das questões de direitos humanos e da desigualdade social, por exemplo.
IHU – O senhor lançou recentemente o livro O Cristianismo Brasileiro Contemporâneo: aspectos econômicos, assistenciais, políticos e ecumênicos. Do que trata a obra?
André Ricardo de Souza – O livro trata das principais configurações econômicas e assistenciais do cristianismo nacional e suas implicações e consequências políticas, assim como determinadas experiências de diálogo inter-religioso entre as três grandes tradições cristãs, compostas por católicos, evangélicos e espíritas. Este último segmento é abordado não só devido à sua crença central em Cristo, mas também pela materialização do princípio da caridade em relevantes obras assistenciais.
Reprodução da capa da obra (Imagem cedida pelo entrevistado)
IHU – Quem são os neocristãos e por que eles têm esse nome?
André Ricardo de Souza – Eles compõem tradições religiosas que não integram o segmento dos evangélicos e que fazem interpretação peculiar dos textos bíblicos, abrangendo: testemunhas de Jeová, mórmons e adventistas do sétimo dia. No censo demográfico de 2000, foram considerados como neocristãos também adeptos da Legião da Boa Vontade (LBV) e do espiritismo. No âmbito do neocristianismo, os espíritas se destacam pelo ressaltado fator assistencial e por constituírem o terceiro maior grupo religioso (2%, ainda conforme o, quase defasado, censo de 2010), atrás de católicos (64,6%) e evangélicos (22,2).
IHU – Qual é o maior paradoxo que caracteriza o cristianismo brasileiro?
André Ricardo de Souza – A meu ver, é a grande movimentação econômica, isenta de impostos, por determinadas denominações, destacadamente a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), ligada a empresas bastante lucrativas e impulsionadas por doações de fiéis, sendo a maior parte deles de baixa renda, portanto algo que fere o princípio cristão da gratuidade caritativa. Tais atividades econômicas são beneficiadas pela ação de parlamentares também vinculados às igrejas, que atuam enfaticamente em prol da prosperidade dos negócios ligados a elas.
IHU – Como se caracteriza a dimensão assistencial e como ela se liga ao cristianismo brasileiro?
André Ricardo de Souza – A dimensão assistencial é a mais abrangente e antiga do cristianismo mundial e do brasileiro também, estando histórica e predominantemente ligada organizações católicas, atuantes nas áreas de saúde e de auxílio a extratos sociais vulneráveis, por vezes, em parceria com o poder público. Os espíritas são menos afeitos à relação com o Estado e, como dito, contam com relevantes instituições assistenciais, fazendo trabalho cotidiano e capilarizado em seus centros. Já os evangélicos realizam também atividades assistenciais no âmbito de determinadas igrejas, bem como em ecumênicas organizações não governamentais.
IHU – Em que pese o trabalho de entidades assistenciais que trabalham, por exemplo, com dependentes químicos ser uma atividade respeitável, não raras vezes as condições sanitárias e de tratamento dessas pessoas são precárias. Por outro lado, essas entidades recebem polpudos recursos da bancada evangélica. Como compreender essas complexidades?
André Ricardo de Souza – Trata-se de uma face efetivamente complexa e paradoxal do trabalho assistencial, feito muito predominantemente por evangélicos. Embora haja atendimento a pessoas e famílias necessitadas, este é feito, por vezes, em condições precárias, em termos sanitários. Além disso, fere o princípio da laicidade do Estado, uma vez que ocorre proselitismo e certa conversão impositiva, mediante o uso de recursos públicos. Há, por fim, combinação de prática assistencial com a econômica lucrativa em face do pagamento das famílias pelo serviço prestado.
IHU – A propósito, considerando que o Estado brasileiro é laico, não há, aí, uma contradição em repassar recursos públicos a entes ligados a igrejas evangélicas ou católicas ou grupos ligados ao espiritismo?
André Ricardo de Souza – O repasse de recursos públicos a organizações religiosas, assim como a entidades laicas, para a realização de trabalho assistencial, é algo relevante, em termos do benefício social propiciado. Não se trata de algo contraditório com a laicidade do Estado, desde que isento de proselitismo ostensivo, sobremaneira a indivíduos que não podem, efetivamente, recursar isso, como é o caso dos internados em instituições.
IHU – Como o senhor vê a isenção de impostos às igrejas? Há algum sentido lógico nisso? Qual?
André Ricardo de Souza – Parte-se do princípio de que as igrejas e demais instituições religiosas se pautam pela gratuidade em suas práticas e realizam atividades assistenciais desinteressadas economicamente. Entretanto, como visto no caso das igrejas ligadas a negócios bastante lucrativos, com destaque para a IURD, essa não é, nem de longe, a realidade. Daí a necessidade de um franco debate púbico a respeito, embora a grande representação de igrejas no Congresso Nacional e o peso eleitoral dos evangélicos, por ora, impeçam isso, infelizmente.
IHU – Nos últimos anos, testemunhamos uma ascensão de representantes políticos ligados a igrejas neopentecostais. Tal fato é atestado pelo que se chama “bancada da Bíblia”. Como essa politização eleitoral entrou no cristianismo brasileiro e quais suas consequências sociais mais imediatas?
André Ricardo de Souza – Vemos, desde a eleição para a Assembleia Constituinte de 1986, a grande participação de evangélicos pentecostais na política partidária, formando grandes bancadas nas casas legislativas. A mobilização do ativo eleitoral evangélico foi muito importante para a eleição presidencial de Jair Bolsonaro em 2018 e tem sido também em outros pleitos majoritários para cargos executivos. Entretanto, os evangélicos, assim como demais segmentos religiosos, têm o pleno direito democrático de participarem da vida política, cabendo, a meu ver, aos partidos de esquerda e aos políticos progressistas desenvolverem, efetivamente, o modo como se comunicam com os evangélicos e demais segmentos religiosos conversadores, como os católicos carismáticos, por exemplo.
IHU – Na década de 1980 setores importantes do Partido dos Trabalhadores - - PT foram construídos a partir de movimentos de base da Igreja Católica. Mais recentemente temos algumas igrejas pentecostais servindo como base eleitoral e política à extrema-direita. Apesar das vicissitudes do PT a sigla sempre teve como paradigma um projeto civilizatório de respeito à democracia. Não se pode dizer o mesmo da extrema direita, que não raras vezes descamba em um discurso, a rigor, anticristão e antidemocrático. Isto posto, como compreender o cristianismo brasileiro à luz desses dois momentos históricos?
André Ricardo de Souza – De fato, o cristianismo da libertação gerou, nos anos 1980 e em grande medida, o novo sindicalismo do ABC Paulista, o PT e relevantes movimentos sociais, principalmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), dando, portanto, importante contribuição para a democracia brasileira. Naquela mesma década, como visto, os evangélicos pentecostais se engajaram na política partidária, exercendo seu direito democrático. Mas, infelizmente, no meio evangélico dos últimos anos, não apenas pentecostal, mas também de algumas igrejas protestantes históricas, cresceu o posicionamento político de extrema-direita, enquanto algo que desafia a democracia os avanços civilizatórios. O complexo e heterogêneo cristianismo no Brasil abrange ambos os polos.
IHU – Deseja acrescentar algo?
André Ricardo de Souza – Queria chamar atenção para dois fatos. O primeiro de que, no Brasil, em vez de um pluralismo religioso, que pressupõe não só a existência de uma diversidade de tradições de fé, mas também de assegurada liberdade religiosa, nós temos, uma pluralidade cristã, dado que, além de haver uma ressaltada minoria não cristã no país (3%, segundo o censo de 2010), parte dela, fundamentalmente, os adeptos dos cultos afro-brasileiros, sofre grande perseguição religiosa. Já o segundo fato é que, a meu ver, uma expressão genuinamente cristã, porque caritativa, é exatamente a de solidariedade ecumênica aos discriminados e vitimados por intolerância étnico-racial, sexual e religiosa, inclusos os ateus e agnósticos.