As prefeituras das cidades de mineração poderiam prestar serviços de saúde de melhor qualidade se as mineradoras pagassem as dívidas e não praticassem evasão fiscal, diz o engenheiro
Na lista dos setores considerados essenciais durante a pandemia de covid-19 por oferecer insumos minerais necessários a outras cadeias produtivas, conforme determina a Portaria 135/2020 editada pelo Ministério de Minas e Energia - MME, as mineradoras também estão entre os setores que registram altos casos de contaminação de covid-19 entre seus funcionários. Segundo Bruno Milanez, apesar das campanhas de marketing das mineradoras, denúncias e relatos de trabalhadores indicam que as medidas protetivas adotadas pelo setor “não são suficientes ou são adotadas de forma inadequada”.
De acordo com ele, em Parauapebas, no Pará, o principal município em termos de operação mineral do país, “no mês de maio, o número de mortes por doenças respiratórias passou de 7 em 2019 para 45 em 2020, um aumento de 500%. Em Paragominas, outro importante polo minerador paraense, o número de mortes saltou de 12 para 35 (190%)”, informa. Além disso, pontua, “chama a atenção o fato de que, apesar de as empresas exigirem que os trabalhadores operacionais permaneçam nas minas, os executivos, em sua maioria, estão trabalhando de casa. Esse ‘duplo padrão’ é muito injusto. Se o ambiente não é considerado seguro para os gerentes, ele também não seria seguro para os mineiros”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o engenheiro comenta a relação das empresas com os governos e afirma que o pagamento das dívidas do setor poderia auxiliar no enfrentamento da pandemia. “É importante notar que a falta desses recursos impede que as prefeituras das cidades da mineração possam prestar serviços de saúde de qualidade a seus cidadãos. Essa carência abre espaço para que as empresas mineradoras promovam campanhas de propaganda na forma de doação de máscaras e álcool em gel”, conclui.
Bruno Milanez (Foto: Poemas)
Bruno Milanez é graduado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Engenharia Urbana pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar e doutor em Política Ambiental pela Lincoln University. Leciona na Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF.
IHU On-Line - A mineração é ou não um serviço essencial que não pode ser paralisado durante a crise pandêmica?
Bruno Milanez - Antes de mais nada, é preciso lembrar que quando se toma a decisão sobre a manutenção de uma atividade econômica durante uma pandemia está se colocando a vida de pessoas em risco. Aqueles que continuarão trabalhando estarão arriscando a sua saúde, bem como a de seus familiares. Portanto, essa decisão nunca deveria ser tomada de forma leviana.
A mineração produz alguns bens que são essenciais, mas isso não quer dizer que ela seja essencial em sua essência. Também não significa que esses bens essenciais serão necessários na quantidade que eram consumidos no período anterior à pandemia. Existem recursos minerais que servem de matéria-prima para produzir equipamentos de saúde e estes não devem faltar. Por outro lado, há outros que têm usos bastante supérfluos. Por exemplo, cerca de 50% do consumo de ouro está concentrado na indústria de joias, e o segundo maior uso, em torno de 30%, é para investimento e especulação financeira. Cerca de 23% do ouro exportado pelo Brasil, em 2019, foi para a Suíça, onde provavelmente a maior parte está enterrada em algum cofre. Seria importante que o setor justificasse a essencialidade dessa extração.
Ao mesmo tempo, segundo os dados mais disponíveis, aproximadamente 80% do minério de ferro, 70% do manganês e 95% do nióbio extraídos no Brasil foram exportados. Portanto, eles não estão tendo nenhum uso para o combate à covid-19 no país. Devido ao caráter global desse setor e ao volume comercializado, existem grandes estoques desse material nos pátios das empresas mineradoras, nos portos, navios e depósitos das indústrias. Não seria possível consumir parte desse estoque durante a etapa mais grave da pandemia?
A prioridade do governo e das empresas mineradoras deveria ser a proteção da vida e da saúde dos trabalhadores e suas famílias. É nisso que se deve pensar durante uma pandemia. Dessa forma, o debate sobre a essencialidade de algumas atividades minerais deveria ter sido feito com os sindicatos, as empresas do setor, os grandes consumidores, as secretarias de saúde e as lideranças comunitárias dos municípios da mineração. Isso permitiria planejar uma redução controlada e temporária da atividade mineradora baseada na definição de escalas e ritmos de extração, regulação de estoque, planos remunerados de capacitação dos trabalhadores que ficassem em casa e apoio às pequenas e médias empresas mineradoras.
IHU On-Line - Por que, na sua avaliação, o setor de mineração tem sido considerado essencial no Brasil e em outros países do mundo e não foi paralisado durante a pandemia de covid-19? O que justifica essa decisão por parte dos governos?
Bruno Milanez - As empresas mineradoras são as principais beneficiadas pela não interrupção das atividades minerais. A definição política da essencialidade dessa atividade está muito vinculada ao poder econômico e político que o setor tem e, consequentemente, na sua capacidade de influenciar os governos.
Além do Brasil, os primeiros países a declararem a mineração como atividade essencial na América Latina foram Chile, Colômbia e Equador. Esses países, além de terem uma economia de base extrativa, passaram por importantes crises políticas nos últimos anos, onde se viu a realização de vários protestos e tornou os governos extremamente frágeis. No México e na África do Sul, os governos tentaram inicialmente restringir as atividades de mineração, mas acabaram também incluindo a extração mineral entre as atividades essenciais em resposta à demanda do setor.
IHU On-Line - Recentemente, diversas entidades internacionais divulgaram o relatório “Vozes da Terra – Como a indústria da mineração global está se beneficiando da pandemia de covid-19”. Concorda com o diagnóstico de que as empresas estão se beneficiando neste momento? Quais são as evidências disso?
Bruno Milanez - O mercado está muito instável para se poder fazer afirmações genéricas. A análise depende de setor para setor e do momento em que se faz a análise. Por exemplo, desde dezembro do ano passado, o preço do ouro tem aumentado, devido à crescente busca de investidores financeiros. Por outro lado, cobre, ferro e zinco tiveram queda nos preços até abril, devido à expectativa de redução de demanda chinesa. Contudo, mesmo com a redução do consumo, as empresas desses setores se negaram a diminuir a extração. Por quê?
Em termos gerais, minérios são commodities; portanto, para uma siderúrgica, tanto faz comprar minério da Vale ou da Rio Tinto. Além disso, devido à necessidade de escala e investimento, o setor mineral global, particularmente no segmento de metálicos, é altamente concentrado em grandes empresas. Por esses dois fatores, as empresas estão sempre disputando participação de mercado. O entendimento é que se uma empresa não entregar o produto, o cliente poderá, sem muita dificuldade, comprar de um concorrente. Por esse motivo, as empresas se recusam a parar. Mesmo em um contexto de queda de demanda, elas têm receio de perder mercado para outra companhia.
Entre abril e maio, os preços de alguns desses metais voltaram a subir, não apenas pelo fato de a China parecer estar se recuperando, mas porque agora o risco maior está no lado da oferta. Como não houve paralisação das atividades no início da pandemia, a doença vem se alastrando entre trabalhadores em países fornecedores de minérios como o Brasil, Chile e Peru. Agora, em muitas minas existe a possibilidade de interrupção das atividades em decorrência do adoecimento dos trabalhadores ou por interrupções nas cadeias de suprimento.
Ainda é difícil generalizar e afirmar que todas as empresas vão se beneficiar ou o quanto elas vão se beneficiar. Mas é possível identificar que, com o objetivo de manter sua posição no mercado, elas colocaram em risco a saúde e a vida de seus trabalhadores e das comunidades próximas. Mais ainda, fizeram isso com a conivência e a colaboração dos Estados. Isso fica claro no relatório Vozes da Terra e explicita os critérios adotados por essas empresas e governos quando tomam decisões.
IHU On-Line - A Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais - FIEMG declarou que o PIB brasileiro sofreria uma redução de 8% se houvesse paralisação completa das atividades econômicas por 30 dias e a queda no PIB poderia variar de 17 a 25% se as interrupções fossem de 60 ou 90 dias. Como vê essa estimativa?
Bruno Milanez - Tentar estimar o tamanho da queda do PIB brasileiro devido à covid-19 este ano é muito difícil. De acordo com o Banco Central, as expectativas de mercado para o desempenho do PIB vêm caindo mês a mês. Elas passaram de 2,3% no começo de fevereiro, para -0,6% em abril e -6,4% no início de junho. O Banco Mundial foi mais pessimista e indicou, em junho, uma queda de 8%; o mesmo valor sugerido pela FIEMG. Porém no caso atual, além da recessão, precisamos lidar com a dor de todas as mortes e adoecimentos. O mesmo relatório do Banco Mundial indica uma redução do PIB da Argentina em 7,3%, país que seguiu as orientações da OMS e realizou um controle mais efetivo da propagação do novo coronavírus. A recessão econômica da pandemia é pior do que a da quarentena, pois ela não tem nenhum planejamento ou controle.
Se tivéssemos implantado uma política de real combate à covid-19 teríamos uma crise econômica, mas conseguiríamos exercer algum controle sobre ela. Basta ver países como Uruguai e Paraguai. Porém, na atual situação de descontrole que temos no Brasil, não sabemos nem quando a “primeira onda” da covid-19 vai acabar, e ainda veremos por algum tempo o número de mortes crescer e o PIB cair.
Como o setor mineral brasileiro tem como principal foco o consumo internacional, em um primeiro momento ele pareceu não estar muito preocupado com o impacto da crise econômica brasileira em seus resultados. Em uma matéria de maio de 2020, o Estado de Minas indicava que o setor ainda se mostrava otimista, uma vez que apostava no aumento da demanda chinesa. Porém, esse cenário tampouco se mostra positivo.
IHU On-Line - O setor mineral global será também impactado pela pandemia de covid-19?
Bruno Milanez - Sim. Porém esse impacto não se dará de forma homogênea em todo o setor. Por um lado, com a exceção do ouro, pelos motivos já explicados, haverá uma redução na demanda dos minerais metálicos, motivada pela recessão mundial. Em seu relatório de junho, o Banco Mundial estimou a redução do PIB Mundial em 5,2% para o ano de 2020. Ao mesmo tempo, analistas já começaram a estimar o tamanho da queda da produção industrial. Segundo a Associação Mundial do Aço, tendo o ano de 2019 como referência, a demanda por aço deverá ser 6,4% inferior em 2020 e 2,8% menor no ano seguinte. Essa redução impactará, necessariamente o consumo global de ferro, principal minério exportado pelo Brasil.
Porém, como mencionei anteriormente, a maior dúvida vem pelo lado da oferta. Não é possível prever, nesse momento, quais minas terão suas atividades interrompidas e qual será o impacto de seu fechamento para o fornecimento global. Em sua avaliação, do final do mês de abril, John Steen afirmou que, nesse contexto de incertezas, previsões de preços dos minérios é pouco mais um jogo de adivinhação.
Os primeiros sinais, porém, indicam que, ao menos no minério de ferro, na disputa com a Austrália, seu principal concorrente, o Brasil já perdeu. Devido ao esforço coordenado de seu governo no combate à covid-19, a Austrália já tem a pandemia sob controle. No início de junho, ela registrava uma taxa estabilizada de quatro mortes por milhão de habitantes; no mesmo período, o Brasil via sua taxa passar de 160 para 180 mortes por milhão. Com a pandemia controlada, as mineradoras australianas puderam se dedicar a aumentar a produção. De acordo com a Bloomberg, comparando as exportações de maio de 2020 com o mesmo mês no ano anterior, a vendas da Austrália foram 4% maiores e as do Brasil foram 28% mais baixas. Com o consumo em queda, a China e os demais compradores poderão escolher de quem comprar. Nesse contexto, é mais provável que eles deem preferência a fornecedores que têm mais chance de cumprir prazos e contratos, do que àqueles que não podem garantir que suas minas estarão abertas no mês seguinte, como no caso das mineradoras brasileiras.
A ironia dessa situação é que se o setor tivesse reduzido de forma coordenada suas operações no começo da pandemia, como defendido pelos movimentos sociais, a disseminação da doença entre os trabalhadores provavelmente teria sido menor e as empresas teriam condições de programar suas operações. Haveria uma queda nos resultados comerciais, mas isso seria passível de algum planejamento. Como elas insistiram em não reduzir as atividades, a doença se espalhou e agora as minas podem ser forçadas a fechar de uma hora para outra, dependendo de quando explode a infecção entre os trabalhadores.
IHU On-Line - A que atribui a explosão de casos de covid-19 em cidades onde há grandes minas como Itabira, MG e Parauapebas, PA?
Bruno Milanez - Qualquer análise sobre o comportamento da doença deve ser feita com cuidado, devido ao número incrivelmente baixo de testes para covid-19 realizados no país tanto nas pessoas doentes quanto no estudo das causas de óbitos. Além disso, como aprendemos no caso de segurança de barragens, as empresas mineradoras são muito pouco transparentes em relação à comunicação com a sociedade. Assim, é muito difícil ter informações precisas sobre o número de testes que realizam em seus trabalhadores e a quantidade de casos confirmados.
Apesar da falha no controle da covid-19, os poucos dados que há para algumas cidades da mineração são bastante preocupantes. Parauapebas é o principal município em termos de operação mineral no país. De acordo com dados do sistema de registro civil, no mês de maio, o número de mortes por doenças respiratórias passou de 7 em 2019 para 45 em 2020, um aumento de 500%. Em Paragominas, outro importante polo minerador paraense, o número de mortes saltou de 12 para 35 (190%). Em algumas cidades de Minas Gerais onde há importantes atividades minerais o padrão se repete. Em Itabira houve variação de 9 para 19 (100%) e em Ouro Preto de 6 para 14 (130%). Esses são os dados de óbitos, que são mais confiáveis. Existe uma quantidade muito maior de pessoas hospitalizadas e as que precisam ficar em casa porque estão muito doentes.
O aumento nessas cidades chama a atenção, porém para entendermos melhor a dinâmica da doença dentro dos espaços das minas, seria fundamental que as empresas tornassem públicos os dados que já coletaram para que fossem feitos estudos epidemiológicos independentes.
IHU On-Line - As mineradoras que continuam operando estão cumprindo as medidas recomendadas pela OMS? Qual é a atual situação dos trabalhadores que atuam nesta área, neste momento de pandemia? Como tem sido organizada a jornada e a rotina de trabalho deles?
Bruno Milanez - Novamente aqui temos problemas de acesso a dados e falta de transparência. Por um lado, as empresas mineradoras estão fazendo uma grande campanha de marketing para convencer a população de que as operações são seguras. Por outro lado, existem denúncias e relatos de trabalhadores e movimentos sociais afirmando que as medidas não são suficientes ou são adotadas de forma inadequada.
Nesse contexto, há dois pontos que necessitam de reflexão. Em primeiro lugar, deve-se levar em consideração a dificuldade de se garantir o distanciamento social em dormitórios, refeitórios, ônibus e no interior de minas subterrâneas. Mesmo que isso seja possível, os trabalhadores precisam chegar e sair das minas, o que os obriga a pegar ônibus, carona ou adotar outras formas de transporte não controladas pelas empresas. Em segundo lugar, chama a atenção o fato de que, apesar de as empresas exigirem que os trabalhadores operacionais permaneçam nas minas, os executivos, em sua maioria, estão trabalhando de casa. Esse “duplo padrão” é muito injusto. Se o ambiente não é considerado seguro para os gerentes, ele também não seria seguro para os mineiros.
Ainda sobre as medidas de prevenção, o caso de Itabira se mostra emblemático. De acordo com o sindicato, a Vale começou a testar largamente seus trabalhadores na cidade somente na terceira semana de maio. Nos primeiros dias de testes, mais de 80 trabalhadores apresentaram resultado positivo, trabalhadores esses que não foram detectados pelos sistemas de vigilância em saúde em operação até então.
Também na cidade estabeleceu-se uma queda de braço entre a Vale e o Ministério Público do Trabalho - MPT sobre a proteção à saúde dos trabalhadores. Em 27 de maio o MPT interditou as minas de Conceição, Cauê e Periquito por ter verificado irregularidades que possibilitavam a infecção dos trabalhadores. No dia seguinte, porém, a Vale conseguiu uma decisão liminar para continuar a operar. Todavia, dez dias mais tarde, a Justiça acabou decidindo pela interdição das minas.
O risco de infecção não se aplica apenas aos trabalhadores da mineração, havendo casos ainda mais difíceis de monitoramento e controle das empresas terceirizadas. No início de abril, a Justiça do Trabalho também ordenou a interrupção das obras na mina subterrânea da Nexa Resources (ex-Votorantim), por não garantir condições adequadas para os trabalhadores. As atividades envolviam as empreiteiras Andrade Gutierrez, Votorantim e Construcap. Depois de quatro dias de paralisação foi assinado um acordo em que as empresas se comprometiam, entre outras coisas, a garantir o isolamento em quarto individual dos trabalhadores que testassem positivo, medidas para assegurar o distanciamento social no transporte e escalonamento das refeições.
Apesar de não ser possível generalizar para todo o setor, chama a atenção o fato de as ações judiciais envolverem duas das maiores mineradoras do país. Essas são aquelas que, em teoria, apresentariam as melhores condições para seguir corretamente as normas de saúde e segurança. A identificação de falhas no sistema implantado por elas compromete a confiança da sociedade nas medidas que vêm sendo adotadas pelas empresas mineradoras em geral.
IHU On-Line - A que outras situações de precariedade os trabalhadores do setor de mineração são expostos e que tipo de doenças costumam desenvolver por conta da especificidade da atividade que desenvolvem e do modo como a desenvolvem?
Bruno Milanez - Devido à elevada exposição ao material particulado, é muito comum o desenvolvimento de doenças respiratórias entre os trabalhadores da mineração. Eles podem tanto desenvolver doenças de cunho alérgico, como bronquite, quanto outras mais perigosas, como a silicose.
Porém, esse não é o único risco ao qual os mineiros estão expostos. Existe prevalência de sobrepeso entre esses trabalhadores, assim como de risco do desenvolvimento de doenças cardiovasculares. Possivelmente, isso estaria associado a algumas ocupações específicas, como motorista de caminhão ou operador de escavadeira, em que o trabalhador fica sentado por muitas horas. Comorbidades dessa natureza podem aumentar o risco de adoecimento no caso de infecção por Sars-CoV-2.
Por fim, deve ser levado em consideração o trabalho em turnos que, em alguns casos, podem durar até 12 horas. Muitas das atividades em uma mina envolvem, além da poeira, exposição a elevados níveis de ruído e vibração. As atividades também se relacionam com muita tensão devido à operação de máquinas pesadas e do elevado risco de acidentes. A exposição prolongada a ambientes insalubres e ao elevado estresse pode também ter impactos negativos sobre o sistema imunológico dos trabalhadores.
IHU On-Line - Quanto as mineradoras devem ao Estado brasileiro, por evasão de divisas, isenção e sonegação de impostos, e como esses recursos poderiam ser aplicados no combate à pandemia?
Bruno Milanez - É muito difícil estimar o tamanho da dívida que as mineradoras têm para com o Estado. Porém já há estudos e debates sobre as formas, legais ou ilegais, pelas quais elas se apropriam de recursos que deveriam ser repassados à sociedade brasileira.
Até a reforma do Código Mineral, o cálculo dos royalties da mineração era feito a partir da receita líquida. Dessa forma, era possível, por meio de manobras contábeis, reduzir o pagamento ao Estado. Por exemplo, foi estimado que, entre 1991 e 2007, a Vale deixou de pagar R$ 5,6 bilhões ao governo. Em 2012, depois de 18 meses de negociação, acordou-se que um valor de apenas R$ 1,4 bilhão seria pago. Uma importante mudança no Código Mineral, apesar da pressão contrária das empresas, foi alterar a base de cálculo para faturamento bruto para evitar esse tipo de manobra.
Porém existem formas mais elaboradas de reduzir a transferência de recursos para o Estado. Uma delas é o subfaturamento nas exportações, pelo qual empresas exportam seus bens para subsidiárias em paraísos fiscais a preços abaixo do mercado e, de lá, revendem para os consumidores pelo preço real. Como o valor declarado no Brasil é menor, elas conseguem abater a receita declarada e, consequentemente, os impostos. De acordo com um estudo realizado pela Red Latinoamericana sobre Deuda, Desarrollo y Derechos, o subfaturamento nas exportações de minério de ferro, apenas da Vale, teria causado uma fuga de US$ 39,1 bilhões entre 2009 e 2015.
Por fim, devem ser levadas em consideração as isenções fiscais concedidas pelo Estado. Um dos casos mais emblemáticos é a Lei Kandir, que isenta de ICMS, entre outros impostos, os minérios exportados sem beneficiamento. De acordo com um ex-secretário de Fazenda de Minas Gerais, as perdas anuais do estado decorrentes da Lei Kandir seriam da ordem R$ 6,7 bilhões/ano. No caso do Pará, principal estado da mineração do país, somam-se à Lei Kandir os incentivos fiscais historicamente concedidos pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - Sudam, que representam um perdão de 82,5% do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica.
Os valores decorrentes da dívida, da evasão fiscal e dos incentivos tributários poderiam, em grande medida, auxiliar no combate à pandemia. Nesse sentido, é importante notar que a falta desses recursos impede que as prefeituras das cidades da mineração possam prestar serviços de saúde de qualidade a seus cidadãos. Essa carência abre espaço para que as empresas mineradoras promovam campanhas de propaganda na forma de doação de máscaras e álcool em gel.
IHU On-Line - Como interpreta a declaração do ministro Salles na reunião ministerial, em que ele disse que é preciso “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”?
Bruno Milanez - A fala do ministro do Meio Ambiente apenas jogou holofote em um processo que já vinha ocorrendo nos bastidores de Brasília. No setor mineral, em maio passado, a Agência Nacional de Mineração - ANM lançou o chamado Plano Lavra. Entre seus objetivos estão a “modernização de procedimentos da guia de utilização” e a “modernização de procedimentos de aprovação de relatório final de pesquisa”. Segundo superintendentes da ANM, essa modernização inclui, entre outras coisas, não apenas reduzir as vistorias in loco, como ainda substituir análises dos técnicos da Agência pela simples verificação automática de formulários. Essas alterações irão diminuir consideravelmente a capacidade de controle da ANM sobre a atividade das mineradoras.
Dentro desse contexto, a ANM assinou, em fevereiro de 2020, um contrato de 385 mil euros com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, com o objetivo de revisar a regulação mineral brasileira. De acordo com um Diretor da ANM, está em negociação com o Ibama do ministro Salles a coordenação conjunta de um projeto de gradação dos riscos ambientais das atividades minerais. Dentro desse projeto, a OCDE se ofereceu para fazer gratuitamente o ajuste da regulação dos processos ambientais na mineração, de forma a obter um enxugamento dessa regulação.
Portanto, importantes alterações da regulação já vêm ocorrendo no setor mineral. Todavia a ANM parece considerar apenas as empresas seus interlocutores legítimos e não debate essas questões com a comunidade nem com os grupos interessados.