15 Abril 2024
Os quadros de Velázquez oferecem um vislumbre de uma realidade transcendente, na qual não só o Senhor estava entre as panelas, como dizia Teresa d’Ávila, mas também na qual a dignidade humana era revelada diante dos olhos do espectador: objetos, corpos, pessoas. Aquilo que tocamos e aquilo que sentimos.
O comentário é do historiador da arte Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado na revista Vita Pastorale, de abril de 2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Minhas filhas, não desanimem se a obediência as leva a se preocuparem com coisas exteriores. Saibam que até na cozinha se encontra o Senhor e entre as panelas Ele lhes ajuda nas coisas interiores e nas exteriores.” Assim escrevia Santa Teresa d’Ávila em seu livro das “Fundações”. Era o ano de 1573, e essa ideia do Senhor entre as panelas, que inspirou uma das famosas performances de Marina Abramović, é uma ideia que foi evocada a propósito dos quadros da primeira produção de Diego Velázquez, em que a vida cotidiana, a vida das cozinhas, é associada, de uma forma engenhosa, a dimensão do transcendente.
“Cristo e a Casa de Marta e Maria”, Diego Velázquez, 1618, Londres, National Gallery (Foto: Wikimedia)
Uma das pinturas mais impressionantes, desse ponto de vista, retrata o interior da casa de Betânia, a casa onde Cristo se refugia como que em família com as duas irmãs, Marta e Maria. É um quadro que se encontra na National Gallery de Londres e que provavelmente data de 1618.
À direita, vemos a cena evangélica, confinada naquele que pareceu a alguns espectadores e a alguns leitores uma pintura, mas que muito mais provavelmente é uma janela de serviço. E nós estamos na cozinha e vemos o que acontece na sala grande, na sala importante da casa.
Vemos Jesus na cátedra, sentado na posição de mestre, dirigindo-se às duas irmãs: Maria, agachada a seus pés, completamente absorta pelo ensinamento do mestre; e, por sua vez, Marta, que está de pé atrás dele, pronta para correr na nossa direção, para a cozinha, para pegar o peixe e servi-lo a seu Senhor. É um discurso sobre a vida ativa e sobre a vida contemplativa, sobre a relação entre as coisas deste mundo e as coisas transcendentes. Diego teve a ideia de compor o quadro assim provavelmente a partir de algumas gravuras holandesas, que já haviam literalmente posto o transcendente em perspectiva dentro daquilo de que os holandeses mais gostavam, daquilo que se pode tocar, os acontecimentos da vida deste mundo.
Velázquez confere a essa cena uma dignidade muito elevada, é verdadeiramente o caravaggismo mais direto, mais ligado à figura do mestre, do iniciador, daquele Caravaggio que Diego nunca conheceu, que é posto o serviço da representação das coisas mais humildes. A natureza morta do primeiro plano contém todos os ingredientes de um prato da culinária espanhola (peixe, alho, pimenta, ovos, especiarias), que são triturados no pilão em primeiro plano por uma servente muito jovem que olha diretamente para nós, enquanto ouve as instruções da governanta.
Essa inversão de perspectiva (o que é mais importante, a cena sagrada confinada em segunda plano e pintada sumariamente, e o que é aparentemente menos importante, a vida ativa, no proscênio) traduz na pintura a hierarquia que realmente era cara aos artistas: a olhar de Santa Teresa ou o olhar de um pintor que, como tal, não viu o que acontecia naquela casa distante da Palestina de tantos séculos antes, mas, pelo contrário, revê perfeitamente o que acontece nas cozinhas andaluzas de sua Sevilha? Onde devemos colocar a ênfase?
Outro quadro construído de uma forma muito semelhante está conservado em Dublin. Em primeiro plano, ele nos mostra uma mesa ou, melhor, a mesa de trabalho de uma cozinha, uma cozinha em que, desta vez, já se acabou de cozinhar, em que até a louça já foi lavada, e em que a empregada, que é negra, é uma modelo escolhida por Velázquez entre os mouros ou entre os mouriscos da Espanha. Ela está distraída, absorta em seus pensamentos, totalmente voltada àquela vida interior, àquela vida espiritual, como se até mesmo o elo mais baixo, a pessoa mais humilde da escala social, naquele momento, pudesse voltar sua atenção para algo que está nas profundezas de sua alma, porque talvez tenha ouvido uma palavra, uma palavra de vida, uma palavra da salvação, que também provém, neste caso, da janela de serviço da cozinha, que está aberta para a sala da taberna, onde três personagens estão jantando; na verdade, vemos dois deles, porque o quadro foi cortado nas laterais, mas isso basta para reconhecer outra cena sagrada.
“A serva e a ceia em Emaús”, Diego Velázquez, 1618, Dublin, National Gallery of Ireland (Foto: Wikimedia)
É a ceia em Emaús, um episódio-chave da vida de Jesus depois da ressurreição, um episódio que Velázquez havia pintado nos mesmos anos, talvez um pouco depois, de um quadro que está conservado no Metropolitan Museum de Nova York e que parece replicar, a partir de outro ponto de vista, a invenção da ceia de Emaús que Caravaggio pintou duas vezes. Não sabemos o que Velázquez sabia dessa invenção, das cópias, dos desvios, mas a ligação é evidente.
A diferença entre essas duas pinturas, um quadro muito tradicional embora impregnada de caravaggismo, em que a cena sagrada preenche completamente o espaço da terra com as figuras monumentais, uma cena que, apesar de ter o mesmo título, porque o que importa em todo o caso é a ceia de Emaús ao fundo, é, de fato, um grande quadro de natureza morta.
Essa diferença leva a entender entre quais polos aparentemente opostos, mas intimamente conectados, se movia a pintura de Diego nesses primeiros tempos em Sevilha.
Temos outra versão dessa pintura, uma versão que se encontra em Chicago, em que a cena sagrada desapareceu totalmente. E mesmo em Dublin a visão da ceia em Emaús foi recuperada a partir de uma restauração do quadro apenas recentemente. Demonstrando que essas pinturas tinham uma vida autônoma também como cenas de gênero, como cenas em que o que importava eram os objetos e aqueles a quem as condições de vida haviam imposto uma dignidade não superior à dos próprios objetos.
Mas, tal como em uma revelação, podia se abrir um vislumbre de uma realidade transcendente, na qual não só o Senhor estava entre as panelas, como dizia Teresa d’Ávila, mas também na qual a dignidade humana, a dignidade daqueles corpos destinados à ressurreição – porque é disso que Jesus fala em Emaús – era revelada diante dos olhos do espectador: objetos, corpos, pessoas. Aquilo que tocamos e aquilo que sentimos.
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Transcendência e vida real. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU