20 Mai 2020
O Papa Francisco poderia retomar o ponto onde a Laudato si’ parou e emitir um novo documento, exigindo que a Igreja Católica se torne neutra em carbono – e o quanto antes melhor.
A opinião é de Mark Graham, professor de Ética Teológica e diretor do Departamento de Teologia e Estudos Religiosos da Villanova University, nos EUA.
O artigo foi publicado em America, 18-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando fiquei sabendo, no outono de 2014, de uma encíclica papal que estava sendo escrita sobre as mudanças climáticas globais em antecipação à Conferência Climática de Paris no ano seguinte, eu rezei para que o Papa Francisco ajudasse a Igreja a se tornar um farol de luz ao abraçar e, eventualmente, alcançar a neutralidade de carbono.
O acúmulo de gases do efeito estufa foi reconhecido como um enorme problema ambiental há mais de meio século, mas a resposta global tem sido menos do que estelar, apesar de frequentes congressos e acordos internacionais, incluindo a Cúpula da Terra do Rio (1992), o Protocolo de Kyoto (1997) e o Acordo de Copenhague (2009).
A alarde em torno do golpe duplo de uma encíclica convocando 1,2 bilhão de católicos de todo o mundo e do mais abrangente acordo antecipado sobre mudanças climáticas da história da humanidade foi palpável. Havia a esperança de que essa convergência pudesse estabelecer o impulso político para reverter a maré nas mudanças climáticas globais e inaugurar uma nova era de declínio nas emissões de gases do efeito estufa.
A Laudato si’ do Papa Francisco foi publicado em maio de 2015 e foi seguida vários meses depois pelo Acordo de Paris, assinado por 187 países diferentes, representando mais de 87% das emissões de gases do efeito estufa anualmente. Um suspiro de alívio reverberou por todo o nosso planeta: finalmente havíamos virado a página das mudanças climáticas globais.
Esse otimismo agora parece ingênuo, pois todos os relatórios internacionais sobre as emissões de gases do efeito estufa desde então têm sido sombrios. A avaliação mais recente dos esforços de mitigação dos gases do efeito estufa, o “Emissions Gap Report 2019” [disponível aqui, em inglês], do Programa Ambiental das Nações Unidas, sugere que a Laudato si’ e o Acordo de Paris tiveram pouco efeito sobre a mitigação das emissões de gases do efeito estufa.
Durante a década passada, as emissões globais de gases do efeito estufa, na verdade, aumentaram em média 1,5% ao ano, e a redução temporária das emissões de gases do efeito estufa durante a pandemia do coronavírus nada mais é do que um pequeno adiamento do inevitável.
Isso significa que, a fim de cumprir o Acordo de Paris sobre a meta climática de manter um aumento na temperatura média global abaixo de 1,5ºC, as emissões precisarão ser reduzidas em 7,6% ao ano entre 2020 e 2030. Não apenas estamos nos dirigindo na direção oposta, mas também parece que estamos fazendo isso em um ritmo acelerado.
Mais ameaçadoramente, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas adverte que 2030 é um prazo difícil, pois as catástrofes relacionadas ao clima são uma certeza virtual se a nossa casa não estiver em ordem até então.
Uma das razões para esse histórico decepcionante é que a Laudato si’, ao contrário das minhas expectativas, acabou não sendo uma encíclica sobre as mudanças climáticas globais, mas sim uma obra mais abrangente sobre o ambientalismo católico, na qual as mudanças climáticas globais eram simplesmente um entre uma série de problemas ambientais pedindo atenção.
O Papa Francisco abordou os organismos geneticamente modificados, a perda de biodiversidade, a diminuição da oferta de água potável, a desigualdade econômica global e uma série de outras questões. Nenhum documento papal anterior sobre o ambiente jamais chegou perto da amplitude da encíclica. Mas aí residem os pontos fracos da Laudato si’: nem todas as questões ambientais são iguais.
As mudanças climáticas globais são um monstro adormecido, uma força malévola que ameaça tudo em seu caminho quando despertada, pois afeta todos os ecossistemas e todos os seres vivos em nosso planeta. Dos cinco principais eventos de extinção na Terra, quatro foram causados diretamente por rápidas mudanças climáticas, e há todos os motivos para suspeitar que a atual taxa de mudança nos situa diretamente dentro da zona de perigo para outro evento de extinção (veja-se o livro “A sexta extinção: uma história não natural” [Ed. Intrínseca], de Elizabeth Kolbert, vencedora do Pulitzer).
Muitos outros males ambientais de larga escala prejudicam a saúde da Terra e de seus habitantes, mas esses problemas empalidecem diante da magnitude da destruição prometida pelas mudanças climáticas globais no seu ritmo atual, que têm o potencial de induzir um holocausto biológico mundial, incluindo os seres humanos. Na ordem das prioridades, as mudanças climáticas globais estão no topo da hierarquia, incontestáveis e ameaçadoras.
Há duas estratégias possíveis para lidar com as mudanças climáticas neste momento. Uma é continuar concentrando-se nos esforços de mitigação, mas a janela para que a mitigação seja bem-sucedida está se fechando rapidamente, de modo que essa estratégia requer muito mais foco e recursos se quiser ser bem-sucedida na estabilização das emissões de gases do efeito estufa.
A alternativa é a adaptação, baseada na crença de que as mudanças climáticas globais não podem ser evitadas. Portanto, a próxima melhor coisa a ser feita é transferir energia e recursos para projetos – por exemplo, proteger as linhas de transmissão e os túneis contra tempestades – que nos isolem de seus efeitos mais nefastos.
No entanto, quando se leem os relatos de prováveis cenários de mudanças climáticas, o efeito cumulativo é vertiginoso e exaustivo (você pode ter uma ideia disso no livro de David Wallace-Wells, “A terra inabitável: Uma história do futuro” [Ed. Companhia das Letras]). Ninguém fica entusiasmado por simplesmente aparar as arestas das múltiplas catástrofes que nos aguardam.
O curso de ação preferível é evitar as catástrofes climáticas e o sofrimento indizível que elas causariam, e um passo seria que o Papa Francisco retomasse o ponto onde a Laudato si’ parou e emitisse um novo documento, exigindo que a Igreja Católica se tornasse neutra em carbono – e o quanto antes melhor.
O mundo precisa de uma liderança audaz e de um desencadeamento de forças criativas para empreender os esforços de mitigação mais difusos e eficazes possíveis. Obviamente, as iniciativas locais também serão vitais na geração de modelos que possam ser experimentados, testados e adaptados para uma ampla variedade de biorregiões.
Temos cerca de uma década para alcançar reduções substanciais nas emissões de gases do efeito estufa. Por isso, a minha esperança é de que o Papa Francisco encoraje os católicos em todo o mundo a superarem a pandemia e a colocarem as mudanças climáticas globais na frente e no centro da tela do seu radar moral.
Se, como o papa diz, a misericórdia constitui a própria existência da Igreja e é uma profunda expressão do amor de Deus, não poderia haver maior misericórdia que a Igreja poderia oferecer ao mundo do que prover seus consideráveis recursos e se decidir a enfrentar a mais temível ameaça que os humanos testemunharam desde o início do cristianismo.
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“A Laudato si’ não foi suficiente. Vaticano precisa priorizar as mudanças climáticas” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU