21 Janeiro 2019
“Como nos mostra a sabedoria narrativa das Escrituras, a violência contra as mulheres não é simplesmente uma questão circunscrita a situações episódicas. O sonho de Deus é o de uma humanidade à sua imagem e semelhança, capaz de evitar a tentação de usar Deus – de nomeá-lo em vão – para fins injustos.”
A reflexão é da pastora batista italiana Lidia Maggi, publicada na revista Esodo, n. 4, de outubro-dezembro de 2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma cadeira vazia, com uma roupa feminina vermelha e uma bolsa apoiadas nela, ocupa um lugar central em muitas igrejas protestantes. Um gesto simbólico, chamado de “o lugar ocupado”, pensado por irmãs e irmãos da Igreja, cientes de que o fenômeno da violência contra as mulheres também diz respeito às nossas Igrejas.
São também os nossos homens que maltratam, ao ponto de matar. Um exagero provocativo? A violência é um ingrediente que não gostaríamos de encontrar no espaço da fé: diz respeito aos outros; nós estamos protegidos pelo anticorpo da fé.
Porém, a Bíblia, precisamente ao narrar a fé de um povo chamado a habitar a terra, coloca-a em cena insistentemente, como contracanto à história da salvação.
Há temáticas indigestas, que as comunidades de fé gostariam de censurar, apagar da gloriosa epopeia da sua libertação, realizada pelo seu Deus. Entre todas, a violência: aquela sofrida por um povo nômade, precário, chamado continuamente a fazer as contas com a hostilidade e a desconfiança dos povos que encontra no seu peregrinar; mas também a violência posta em prática pelos próprios filhos de Israel.
A Bíblia ousa narrar essas histórias de violência, que têm como protagonistas os pais fundadores, os heróis do futuro povo de Israel. Não são admitidos nem o esquecimento nem a idealização dos tempos fundadores. A violência é uma “verdadeira presença” na vida do clã, dos homens abençoados por Deus.
A Escritura não considera que basta negá-la, removê-la para poder superá-la. Pelo contrário, ela deve ser narrada, lembrada, denunciada, para permitir que quem lê a reconheça e a elabore.
Passar por cima das páginas violentas da Bíblia, para frequentar apenas aquelas que narram histórias edificantes, significa banalizar o mal, subtraindo-se àquela radical inteligência do humano, que ousa olhar para o abismo do coração.
Isso significaria não ter olhos para ver um problema social, que marca todas as relações, até mesmo as mais íntimas.
A história de Dina, uma das filhas de Jacó, acabaria no esquecimento se o narrador bíblico não a tivesse recolhido, conservado, interrogado e narrado, provocando desgosto e perplexidade em quem a escuta.
Dina é uma peã, mercadoria de troca do poder masculino. Sua pessoa desperta paixões, vinganças, mas ninguém está interessado no seu bem. A sua história, ambientada em um contexto patriarcal, não é diferente da de milhões de mulheres que, em todos os cantos da terra, são agredidas, sequestradas e violentadas.
Dina, uma das filhas de Jacó, sai de casa para se encontrar com as outras moças do vilarejo. O momento de lazer se transforma em um pesadelo, que mudará para sempre a sua vida. Ela é vista, sequestrada e estuprada por um rapaz. Não é um jovem qualquer: é Siquém, o filho do chefe da aldeia.
Ele, depois de abusar dela, se apaixona perdidamente por ela: a sua alma se ligou a Dina, filha de Jacó; ele amou a menina e falou ao coração da moça (Gênesis 34, 3).
Diante dos gestos e das palavras de Siquém, o silêncio ensurdecedor de Dina permite pressagiar o pior. Os irmãos da moça, diante do pedido de casamento, agem com astúcia. Para consentir o casamento entre um cananeu e uma filha de Israel, eles pedem que todos os homens da aldeia sejam circuncidados. O rei e o povo consentem. Vivem esse gesto como sinal de reconciliação e aliança entre dois povos.
No terceiro dia, quando os homens ainda estão doloridos, os filhos de Jacó atacam Siquém e o seu vilarejo. Matam todos os homens, levam Dina de volta para casa, saqueiam, sequestram mulheres e crianças, estupram. De acordo com a lógica do poder masculino, Dina foi vingada: “Por acaso nossa irmã pode ser tratada como uma prostituta?” (Gênesis 34, 31).
Concluiu-se com essa pergunta um dos capítulos mais duros do Gênesis. Dina sai de cena, caindo no esquecimento. Mercadoria de troca entre mundos masculinos, peã das suas relações de força. Abusada por Siquém e pela sua própria família, que, não se preocupando com os seus desejos, primeiro a usou para estreitar uma aliança e, depois, como pretexto para saquear e estuprar.
Quem lê fica perplexo: para vingar a “honra” de Dina, violou-se a de centenas de mulheres anônimas. O silêncio delas, junto com o de Dina, também grita: denuncia uma história de violência masculina, feita de estupros, enganos e pretextos para matar.
É preciso ter estômago para ouvi-la. Tudo é subvertido: os afetos, a religião, a política, em uma corrente de violência que tem como ápice o saque e o genocídio.
Onde está Deus nessa história? Ele não fala, não age. Está silente. Como Dina, Deus também é usado, abusado por Israel para cometer a sua vingança. A circuncisão, na linguagem bíblica, representa o pacto com Deus esculpido na carne. Na astúcia dos irmãos de Dina, torna-se a arma para matar e saquear o inimigo.
O rosto de Deus tem traços semelhantes aos de Dina: é violentado e silente. Outros o usam, falando e agindo em seu nome. Cena-mãe de infinitas cenas-filhas, que reúnem as diversas experiências religiosas. Para defender o nome de Deus, cometeram-se guerras e genocídios. E se continua fazendo isso. Não pela mão de bárbaros, mas como medida astuta do povo eleito; não em outro lugar, mas aqui entre nós, em nome da nossa fé.
A segunda história, que pode nos ajudar a compreender como a Escritura tematiza a violência contra as mulheres, é tirada do livro dos Juízes. Um livro trágico, que narra um dos períodos mais sombrios da história de Israel, marcado pela justiça sumária, desordens e violências.
O relato transmite uma história da salvação ao contrário, em que Deus mesmo se cansa de um povo que reproduz na terra prometida os mesmos mecanismos opressivos experimentados no Egito. E não por acaso, para descrever a degradação social alcançada por Israel às vésperas da monarquia, o narrador concentra a própria atenção na parte mais fraca da sociedade: as mulheres.
Elas se tornam, apesar de si mesmas, protagonistas da cena da violência que narra os horrores de um povo esquecido da Torá. Elas são a medida, o teste decisivo que evidencia a corrupção e a decadência. De fato, no livro dos Juízes encontramos muitas figuras femininas.
“No tempo em que o povo não tinha um rei”: é a localização temporal e, ao mesmo tempo, o marco dentro do qual é possível narrar a traição da libertação divina e a violência desenfreada operada pelo povo eleito; um relato amargamente irônico, corajosamente autocrítico, que tenta tornar compreensível o incompreensível.
Porém, esse marco não é suficiente para eliminar o sentimento de desconforto que se sente ao ouvir essas narrativas, que tematizam uma reflexão sobre a justiça humana que não admite descontos.
Sem um governo, os abusos estão na ordem do dia; no entanto, não bastará um rei para garantir a justiça. Em um clima de violência e degradação, as mulheres são o sujeito oprimido. Sujeitas a estupros e violências, sucumbem silentes.
Assim, o livro dos Juízes, embora oferecendo algumas figuras femininas de traços fortes e coloridos – como Débora, a mãe de Sansão, Dalila e, mesmo na tragédia, a filha de Jefté –, lista centenas de mulheres silentes que sucumbem sob o jugo da dominação masculina. Massacradas junto com os idosos e as crianças para vingar um crime primorosamente masculino, como o estupro contra uma inominada concubina de um levita.
Detenhamo-nos nessa história, ápice de todo o livro e paradigma de uma violência louca: uma das histórias mais brutais de toda a Escritura. “Nunca aconteceu, nem se viu coisa igual, desde o dia em que os israelitas saíram do Egito até hoje” (Juízes 19, 30). Esse é o comentário do narrador sobre a história que estamos prestes a enfrentar.
Uma mulher é estuprada e esquartejada. O protagonista é um levita, um homem religioso, que viaja para ir recuperar a sua concubina. A mulher o havia deixado, retornando à casa paterna. O único ato de autonomia na sua breve vida. O homem parece interessado em reavê-la para si; decide, portanto, partir com a intenção de “falar ao seu coração” – como fez Siquém com a pobre Dina, depois do estupro, quando se deu conta de que a amava.
As assonâncias entre os dois textos não são casuais: não só pela violência sofrida, mas também porque ambas as histórias serão usadas como pretexto para fazer guerra contra os vizinhos. Mais do que falar ao coração dela, porém, o levita se entretém com o pai da mulher.
Boa parte da história é dedicada ao teste de força entre esses dois homens, que, por trás da aparente questão da hospitalidade, se confrontam e medem a própria capacidade de impor decisões. A mulher é silente, invisível.
No fim, a levita a toma e consegue viajar com a mulher. Sendo já tarde, é preciso parar para a noite. Não é bom, no entanto, parar em um vilarejo estrangeiro, como o servo sugere. Convém chegar até Gabaá, cidade de Benjamim, uma das tribos de Israel.
A mulher não é consultada. Continua sendo passiva. Ninguém parece mais interessado em falar ao seu coração, nem aos seus ouvidos. Ironicamente, a terra que devia protegê-los – terra prometida, onde deveriam correr o leite e o mel das relações livres – torna-se terra perigosa, hostil, estrangeira.
O levita com o servo e a concubina são, sim, hospedados na casa de um ancião; mas, enquanto desfrutam da hospitalidade, eis que alguns pervertidos cercam a casa. Nada de novo debaixo do sol: o esquema narrativo reforça o anteriormente utilizado no Gênesis: os pervertidos de Sodoma, que sitiam a casa de Ló e assediam os mensageiros do Senhor (Gênesis 19). Essa referência narrativa torna a história ainda mais trágica: a violência habita o povo eleito; e não há ninguém que salve a concubina do levita, oferecida como refeição aos seus carnífices; nenhum anjo para cegar os profanadores.
Os homens do lado de fora da casa querem abusar do levita. O velho que os hospeda intervém, apelando ao sagrado vínculo da hospitalidade. Como Ló, ele propõe oferecer em troca duas mulheres: a sua jovem filha e a sua concubina. Enquanto o dono da casa ainda está barganhando com os mau-intencionados, o levita, rapidamente, empurra para fora a concubina, que é agarrada e violentada durante toda a noite.
Ao amanhecer, quando os pervertidos desaparecem, a mulher se arrasta até a soleira da casa e, com a mão estendida para a porta, cai no chão exausta. Passarão algumas horas até que alguém se preocupe em socorrê-la. O levita, ao acordar, quando o sol já está alto, encontra-a na soleira. Como se nada tivesse acontecido, ordena que ela se levante: são as primeiras palavras que ouvimos dele. Estranho modo de falar ao seu coração!
A mulher não responde, não pode responder. Não há ninguém que a socorra, nenhum samaritano que se faça próximo, ungindo-a e enfaixando as suas feridas. O levita não a socorre, mas nem passa para o outro lado da estrada: carrega-a como peso sobre o burro e retoma a viagem para casa.
Se não foi o estupro coletivo que a matou, nem aquela absurda viagem de volta, foi a faca do levita que, em nome da justiça, corta o corpo da mulher em 12 pedaços a serem enviados para as 12 tribos de Israel: “Vejam o que eles fizeram comigo!”.
A justiça reivindicada pelo levita é aquela que pretende fazer valer os próprios direitos sobre uma propriedade violada. Esse será o pretexto para uma guerra civil, para outros estupros e assassinatos. Uma mulher tratada como carne para ser explorada e abatida. Uma mulher sem nome, para que o seu nome se sobreponha ao das tantas mulheres mortas pelos seus companheiros para satisfazer uma justiça parcial própria.
O seu corpo cortado em pedaços é uma carta viva que ainda espera resposta; é um pedido de justiça para todas as mulheres abusadas, mortas e esquartejadas. Nessa macabra liturgia, as palavras da ceia eucarística – “Isto é o meu corpo” – ecoam novamente, subvertidas pela violência, enquanto nos perguntamos: onde está Deus? Por que não parou a faca do levita, como fizera com Abraão?
Nessa história, o personagem Deus não está lá. No entanto, podemos entrever a presença divina no modo como essa história é contada, a fim de provocar em quem lê indignação e desalento. O corpo de uma mulher foi estuprado e esquartejado; mas cada parte do seu corpo grita entre as linhas do relato. Grito de denúncia que se torna “palavra de Deus”, presença real no corpo partido e dilacerado pela besta do patriarcado.
O que essas histórias nos dizem não tem a ver apenas com o poder masculino, mas também com a mistura de poder civil e religioso, entre violência e fé. Não existe espaço de fuga para uma mulher. Por trás das histórias de Dina e da concubina, há a necessidade de revisitar o sagrado e desnudá-lo do poder patriarcal. Em nome de uma suposta conversão ao Deus de Israel, para poder entrar na aliança, os siquemitas foram circuncidados e tornados vulneráveis para poder dominá-los. Na história da concubina, por uma ideia deformada de hospitalidade, uma mulher foi dada como refeição aos seus carnífices e, depois, esquartejada por um senso de justiça igualmente deformado. E o sagrado e o justo deformados são os do povo eleito, dos fiéis chamados a viver a “diferença” que reivindicam em nome da fé abraçada.
A referência ao povo dessas histórias, além disso, evoca a dimensão comunitária, que interroga as próprias Igrejas. O problema não é apenas a pouca atenção nas comunidades cristãs a promover caminhos de conscientização masculina sobre a violência cometida pelos homens contra o corpo das mulheres. É também a insuficiente revisitação crítica de um modo de fazer teologia, de discernir o sentido da Palavra na história, incapaz de desarmar a violência, até mesmo aquela perpetrada pelos fiéis.
Como nos mostra a sabedoria narrativa das Escrituras – surpreendentemente amadurecida no regime patriarcal, aliás – a violência contra as mulheres não é simplesmente uma questão circunscrita a situações episódicas. Pelo contrário, ela tem a ver com o caso sério do canteiro de obras “humanidade”, com o sonho de Deus de uma humanidade à sua imagem e semelhança, capaz de habitar a terra de uma maneira diferente e de evitar a tentação de usar Deus – de nomeá-lo em vão – para fins injustos.
Junto com a narrativa utópica do jardim – do Éden, do Cântico dos Cânticos, da ressurreição – a Bíblia oferece a narrativa distópica do sonho traído e violentado, em que as mulheres, brutalmente silenciadas, reencontram a voz perdida e gritam aos ouvidos dos leitores-fiéis a tragédia de que são vítimas, perpetrada até mesmo em nome da fé.
Se isso é uma mulher!
Se isso é um homem!
Se isso é fé!
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Se isto é uma mulher. Artigo de Lidia Maggi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU