29 Mai 2015
"E agora? As eleições foram a primeira etapa superada num processo incerto, mas a governabilidade ainda não está dada. A atomização da maioria de parlamentos regionais e prefeituras leva a Espanha à situação de refletir sobre pactos insólitos com atores emergentes, tendendo a um debate mais plural e com propostas menos rígidas", afirma Esther Solano Gallego, espanhola, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora da Universidade Federal de São Paulo, em artigo publicado pela revista CartaCapital, 28-05-2015.
Eis o artigo.
O sismo eleitoral é a resposta explícita de um país que não suportava mais sua política. Não foi só a crise financeira, mesmo que tortuosa. Foi a indecência dos representantes políticos o que provocou uma ferida intolerável, uma vontade social de explodir no voto.
Raiva pelos inúmeros escândalos de corrupção que impediram qualquer dignidade institucional. Mágoa com as velhas estruturas partidárias que demostraram ser monstros insensíveis, discursando para suas plateias de bufões, batendo palmas entre eles numa pantomima continua de louvores mútuos, alheios a uma cidadania cada vez mais irritada. E, cuidado, porque quando uma população cansada, exausta do mesmo desrespeito, leva seu desprezo pelo velho e sua necessidade do novo às urnas, muitas coisas podem mudar, e mudaram.
O modelo bipartidarista, que sempre repartiu as rédeas do poder ente duas máquinas esgotadas e caducas, Partido Popular (PP) e o Partido Socialista (PSOE), entrou em declínio imparável. Só 52% dos eleitores votaram em algum dos dois partidos, num país acostumado à inercia de uma bipolaridade apática.
O Partido Popular que arrebatou de forma drástica as eleições ao PSOE em 2011, numa Espanha apavorada em plena convulsão da crise financeira, perdeu sua hegemonia, com a que governava quase em solitário desde as cadeiras do Congresso. Continua sendo a força mais votada, mas diminuiu em 2.444.103 milhões de votos respeito a 2011 e perdeu suas maiorias absolutas inclusive em feudos tradicionais como Valência ou Madri.
Se alguém pode se declarar veementemente vencedor, são as candidaturas cidadãs de unidade popular que integra Podemos, Barcelona em Comú e Ahora Madrid. Tudo indica que a ativista antidespejo Ada Colau será a nova prefeita de Barcelona, assim com a juíza aposentada Manuela Carmena próxima prefeita de Madri. Pensem na transmutação, na metamorfose da ordem política que isso supõe. As duas maiores cidades espanholas governadas por movimentos cidadãos, derivados do 15M e institucionalizados em menos de um ano.
E agora? As eleições foram a primeira etapa superada num processo incerto, mas a governabilidade ainda não está dada. A atomização da maioria de parlamentos regionais e prefeituras leva a Espanha à situação de refletir sobre pactos insólitos com atores emergentes, tendendo a um debate mais plural e com propostas menos rígidas. As cabeças pensantes dos partidos já estão ponderando estratégias de ação tendo em vista que as eleições nacionais de novembro, que prometem nos levar ao enfarte agudo do miocárdio coletivo, repetirão o mesmo padrão das atuais.
A possibilidade mais natural, se em política a linha reta alguma vez fosse o caminho mais curto unindo dois pontos, seria que as plataformas cidadãs pactuassem com o PSOE, com maiores semelhanças ideológicas, assegurando assim as prefeituras de Barcelona, Madri e outras cidades menores. Mas, cautela, porque os socialistas correm o risco de serem mastigados abruptamente, engolidos pelo tsunami de Podemos e acabar relegados à terceira força política nacional. Isto deixa outra alternativa, surrealista por natureza, mas já anunciada por algumas lideranças: um pacto entre PSOE e PP, um antagonismo partidário que sempre pareceu irreconciliável, para anular Podemos.
Uma vez decidido o tabuleiro das coalizões e imaginando que Barcelona em Comú e Ahora Madrid chegassem efetivamente ao poder, quais seriam as reais capacidades de instaurar uma agenda de esquerda nos municípios? O programa de Colau e Carmena inclui lutar contra a pobreza urbana e a desnutrição infantil, evitar os cortes de agua, luz e eletricidade dos mais afetados pela crise, parar os despejos, estabelecer uma fiscalização maior nas contas públicas, utilizar imóveis vazios para famílias com poucos recursos financeiros, revisar privatizações e contratos... Possível? Impossível? Uma empreitada que não será fácil.
O momento é de otimismo, mas também de precaução. A população conseguiu canalizar sua indignação pela via do voto. Espanha precisava de uma sacudida, um estremecimento, para manter sua saúde democrática. O novo traz expectação, perspectivas, anseios. Oxigena. Por outro lado governar não é um assunto banal, sobre tudo para atores principiantes, e ainda estamos no começo da caminhada.
Espanha mudou e toda mudança conduz a incertezas, mas prefiro estas incertezas a uma estabilidade perversa e artificial.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Espanha é um país diferente depois das eleições - Instituto Humanitas Unisinos - IHU