31 Março 2014
Francisco e Obama são espiritualmente dois cristãos "liberacionistas", de formas diferentes, filhos da teologia da libertação, e politicamente herdeiros do mundo pós-Reagan e pós-Thatcher.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado no jornal Europa, 28-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Para os nostálgicos da Guerra Fria, despertados pela crise ucraniana, Obama que encontra o papa representa pouco mais do que um anacronismo. Mas Francisco e Obama sabem bem que há guerras que nunca cessaram: as "culture wars" lançadas pelo catolicismo norte-americano nos anos 1980 e, especialmente, pelos bispos nomeados em trinta anos por João Paulo II e por Bento XVI.
A consequência foi a polarização da Igreja em dois partidos e uma dramática reductio da mensagem moral do catolicismo e do cristianismo à questão do aborto e do casamento. O Papa Francisco chegou a desmontar essas trincheiras, e o choque de muitos católicos (e de grande parte dos bispos) norte-americanos trouxe à tona a situação de rachadura dentro daquela Igreja e daquele país.
Obama sabe bem disso e, como político, tentou se inserir nessa rachadura. Também o sabem muito bem os spin doctors norte-americanos, tanto nos EUA quanto no Vaticano, que tentam sistematicamente "vender" ao público norte-americano um inverossímil Papa Francisco em molho neo-con.
A audiência representa um momento importante para ambos. O presidente tem um "problema católico" que deriva da natureza da oposição católica republicana.
Para cada católico (especialmente leigos e irmãs) entusiasta da reforma da saúde de Obama, há outros tantos católicos (especialmente o bloco representado pelos bispos) que viram no governo Obama uma cultura política anticatólica, voltada a reduzir a "liberdade religiosa" dos católicos norte-americanos "forçados" pela reforma a ter um seguro de saúde e, portanto, a negociar com o seu empregador (que dá como benefício a apólice do seguro de saúde) o acesso a práticas médicas relacionadas à contracepção e ao aborto.
O "problema norte-americano" de Francisco, ao invés, deriva das camadas de oposição contra o novo pontificado, oposição em grande parte proveniente do catolicismo conservador dos EUA, que vê um papa que sucedeu a Ratzinger um perigoso pacificador no fronte das "culture wars".
Até aqui as possíveis convergências entre Obama e Francisco. Mas há também evidentes diferenças quanto a visões de mundo. Os EUA são um lugar crucial para o pontificado da "Igreja-mundo", por estarem situados na intersecção de dois mundos – entre o Ocidente cristão de pensamento e fé fracos, e o restante do mundo, onde se recomeça a "crer ferozmente" (como escreveu com eficácia o teólogo Pierangelo Sequeri).
Dentro do catolicismo no mundo anglófono, o advento do Papa Francisco coincide e contribui para desenhar um novo mapa das linhas de falha, das autodefinições e das definições recíprocas com respeito à relação entre Igreja, mundo e política.
Mas também existem origens comuns e trajetórias divergentes. Francisco e Obama são espiritualmente dois cristãos "liberacionistas", de formas diferentes, filhos da teologia da libertação, e politicamente herdeiros do mundo pós-Reagan e pós-Thatcher.
Francisco permaneceu mais fiel do que Obama àquelas raízes "antagônicas" e representa um lembrete a Obama não só da importância para a Igreja do ensino moral sobre o aborto, mas também das consequências da teologia da libertação, especialmente no sentido da rejeição do excepcionalismo norte-americano – excepcionalismo que Obama, ao invés, abraçou e não só por questões de conveniência política.
Obama deixou para trás o South Side de Chicago e aquela espécie de "antiamericanismo" da black liberation theology do reverendo Jeremiah Wright. Mas se deparou pelo caminho com um jesuíta latino-americano eleito papa e que assumiu o nome de Francisco: livrar-se dele será muito mais difícil, para Obama e para quem o suceder.
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As muitas ''Américas'' de Francisco. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU