01 Novembro 2012
O Concílio, graças à mediação do papa e das suas arbitragens, foi muito além das expectativas mais razoáveis.
Publicamos aqui a terceira parte do artigo do vaticanista italiano Giancarlo Zizola, falecido em 2011, que começou a sua carreira de jornalista escrevendo suas crônicas sobre o Concílio Vaticano II por indicação do próprio Papa João XXIII e de seu secretário, Loris Capovilla.
O artigo póstumo – originalmente uma conferência proferida em Assis, em 2004 – foi publicado na revista Rocca, n. 20, 15-10-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O projeto de reforma de João XXIII
No entanto, essa experiência pessoal pode ser validada objetivamente, nas suas grandes linhas, pelos resultados da análise historiográfica. Sob o microscópio da ciência histórica, que versou dez anos de pesquisas sobre a investigação sobre os trabalhos conciliares, o Concílio Vaticano II se revela como um complexo empreendimento de transformação cultural, vivido dentro de um sistema aparentemente petrificado sobre o dogma, em um clima de liberdade progressivamente mais ampla.
Os protagonistas haviam entrado tridentinos na primeira sessão de 1962, sob o Papa João XXIII, e na última, a quarto de 1965, não eram os mesmos. Mas só depois dos primeiros dois meses de trabalho começaram a assimilar o valor da alocução inaugural Gaudet Mater Ecclesia com a qual o Papa Roncalli, no dia 11 de outubro de 1962, havia lançado o seu alto projeto de reforma da Igreja, enquadrando-o em uma visão filosófico-teológica fundamentalmente unitária da história humana, segundo a ótica específica da patrística cristã e da grande teologia da alta Idade Média.
Ele havia declarado que queria liquidar a temporada dos anátemas e traçara as perspectivas teológicas e históricas para a missão da Igreja no mundo moderno: naquele texto, era basilar a noção de "sinais dos tempos", cuja consideração implicava a mudança do estatuto cognitivo vigente na teologia e no magistério, para os quais, por muito tempo, o mundo era tratado quase somente como destinatário de mensagens de autoridade e de conversões, nem sempre livres, muito menos como sujeito do qual se podia receber, e não apenas ao qual se podia dar.
Era decisiva no Papa Roncalli a convicção de que a fé cristã não é somente um fato de convicção de fé, mas sobretudo de testemunho de amor, e mais, que a fé cristã não seria nada se não fosse sobretudo amor.
"A Igreja – dizia o papa – prefere hoje fazer uso do remédio da misericórdia em vez da severidade. Ela leva em consideração o fato de ir ao encontro das necessidades de hoje mostrando a validade da sua doutrina, em vez de que com a condenação". Dissociando-se dos "profetas da desgraça", João XXIII reafirmava a intencionalidade positiva do Concílio, ou seja, a recuperação do primado pastoral na Igreja, o diálogo com o ser humano moderno e as culturas contemporâneas, a contribuição da Igreja para a construção de uma nova ordem de relações humanas" e o processo de "unidade do gênero humano", um processo que ele considerava como parte de um desígnio providencial, portanto positivo, apesar das contradições e dos trágicos episódios do século mais criminoso da história humana, o século XX.
Fundamental nessa perspectiva foi a abertura da Igreja ao diálogo com os cristãos separados do Oriente e do Ocidente, com as religiões não cristãs, com os homens e as mulheres de boa vontade. Brotava daí o compromisso da Igreja com a promoção da paz mundial. O Papa João XXIII deu um exemplo disso imediatamente, com um apelo radiofônico nas horas dramáticas da crise dos mísseis soviéticos destinados a Cuba, um apelo graças ao qual os norte-americanos e soviéticos, já à beira da Terceira Guerra Mundial, foram postos sob as condições políticas para deliberar de parar antes do abismo e de retomar o diálogo.
A partir dessa experiência, o Papa João XXIII tomou a decisão de consagrar à questão da paz uma encíclica dirigida pela primeira vez a todos, e não só aos católicos, a Pacem in Terris. Como eu dizia, as orientações propostas pelo Papa João XXIII tardaram a ser recebidas, e talvez nunca o foram completamente, não somente durante os trabalhos em andamento, mas nem mesmo em seguida.
No entanto, deve-se admitir que os padres se submeteram a um duro trabalho teológico, muitas vezes abordado com sofrimento pessoal. Junto com esse empenho intelectual, foi a experiência vivida da comunidade e da comunicação entre diferentes no serviço da verdade que produziu a mudança. Os próprios conservadores eram culturalmente derrotados pelos novos paradigmas, e algumas frases na boca do cardeal Ottaviani, o seu líder, atestam uma resignação que também é, nos mais lúcidos, a descoberta de que a história é mais forte do que os manuais. Finalmente, eles se aproximaram de entender que a Igreja não poderia prosseguir o seu caminho evangelizador se se reduzisse a um instrumento de uma forma de cristianismo bloqueada no romanismo, na Contrarreforma e na rejeição do Iluminismo.
Mesmo sabendo que o Concílio havia subvertido os seus esquemas mentais, eles continuavam, porém, a combater com o desespero de uma batalha de retaguarda. Nem sempre os meios aos quais recorriam eram dignos da sua virtude intelectual e do seu heroísmo espiritual. O problema de método ocultava um problema político decisivo para aquilo que seria a concepção e a organização do pós-Concílio: se a tentativa de coagular o máximo consenso em torno dos núcleos qualificadores da reforma católica, sob a direção papal, não corresse o risco de oferecer um espaço ao partido tradicionalista a tal ponto de reduzir o porte de algumas conquistas e pré-constituir as condições de um minimalismo interpretativo e aplicativo, fonte de dilacerações mais graves.
Esse era o drama de Paulo VI, mas as cartas já publicadas parecem suficientes para confirmar que, diante do Concílio, ele reivindicava uma posição autônoma, apelando até à própria consciência, o que rasga a desculpa de um papa fraco e, no entanto, obrigado a pactuações diplomáticas diante das chantagens da direita.
O balanço do Concílio, cujos esforços internos já estão ao alcance do público graças ao empenho da equipe internacional de estudiosos mobilizada pelo Instituto de Ciências Religiosas de Bolonha para produzir os cinco volumes da Storia del Concilio Vaticano II, autoriza a hipótese interpretativa proposta pelo líder da obra, Giuseppe Alberigo. Ele critica a pretensão de um continuísmo plano entre o Vaticano I e o Vaticano II, assumindo a prevalência dos fatores dinâmicos sobre os parasitariamente repetitivos neste último.
No entanto, o seu convite a avaliar em profundidade o peso de longo prazo dos sacrifícios arranjados no último momento, sob as forças do término, já introduz a chave hermenêutica dos conflitos e das involuções subsequentes.
Merece ser notado, contudo, que, em comparação com as posições críticas expressas por alguns historiadores e teólogos – como Hans Küng – nota-se nas avaliações historiográficas mais maduras uma melhor consideração do valor dos esforços de mediação desenvolvidos por Paulo VI, reconhecendo que, na realidade circunstancial, não era possível obter mais e que o Concílio, ao contrário, havia ido, graças à mediação do papa e das suas arbitragens, muito além das expectativas mais razoáveis.
(Continua...)
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Vaticano II: uma etapa decisiva de um caminho que deve continuar. Artigo de Giancarlo Zizola – Parte 3 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU