03 Novembro 2012
Com a declaração sobre a liberdade religiosa, a Igreja Católica acolheu, depois de um prolongado atraso e inúmeras reservas e conflitos, demandas essenciais postas pelo Iluminismo na época moderna. Por isso, a Declaração foi considerada um marco na longa e turbulenta história da relação entre Igreja Católica e história moderna da liberdade.
Publicamos aqui a quarta parte do artigo do vaticanista italiano Giancarlo Zizola, falecido em 2011, que começou a sua carreira de jornalista escrevendo suas crônicas sobre o Concílio Vaticano II por indicação do próprio Papa João XXIII e de seu secretário, Loris Capovilla.
O artigo póstumo – originalmente uma conferência proferida em Assis, em 2004 – foi publicado na revista Rocca, n. 20, 15-10-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A reviravolta da Declaração sobre a Liberdade Religiosa
Para dar uma representação, ao menos em grandes linhas, do porte, mas também dos limites, da reforma conciliar, eu daria brevemente algumas indicações sobre duas deliberações. A primeiro concerne à Declaração Dignitatis humanae sobre a Liberdade Religiosa, aprovada depois de contrastes dramáticos no dia 7 de dezembro de 1965.
Com essa declaração, a Igreja Católica acolheu, depois de um prolongado atraso e inúmeras reservas e conflitos, demandas essenciais postas pelo Iluminismo na época moderna. Por isso, a Declaração foi considerada um marco na longa e turbulenta história da relação entre Igreja Católica e história moderna da liberdade.
Essa inovação custaria consideráveis conflitos dentro da Igreja. É sobre esse cume, mais do que no da reforma litúrgica, que o movimento integralista de Marcel Lefebvre se dissociou da obediência ao magistério conciliar, terminando no cisma. Na visão dos tradicionalistas, o reconhecimento da liberdade religiosa significaria a irrupção das ideias da Revolução Francesa, na Igreja e, portanto, uma grave descontinuidade com a tradição.
Mas vemos a fecundidade da passagem-chave da Declaração, onde se afirma o direito da pessoa humana à liberdade religiosa, para a qual "todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros". E acrescenta que "ninguém pode ser forçado a abraçar a fé contra a sua vontade". Certamente, todos são levados a buscar a verdade, mas essa verdade "não se impõe senão com a força da própria verdade, que se difunde nos corações com doçura e ao mesmo tempo com vigor".
É nessas passagens que se verificou a reviravolta na doutrina e na práxis da Santa Sé no que se refere às relações com os Estados: aqui, a ruptura difícil, e ainda não totalmente consumada, com os desvios do proselitismo, que produziram a crise ecumênica nas relações entre o papado e o Patriarcado de Moscou.
Mas aqui também se pode discernir as premissas teóricas daquela saída da era constantiniana, que legitimara o recurso à espada e às guerras santas, sobretudo as cruzadas e as repressões violentas dos saberes disformes, com base no axioma "Extra Ecclesiam nulla salus nec remissio peccatorum", núcleo da ideologia bonifaciana da supremacia universal e da presunção da autossuficiência regalista da Igreja.
Não é preciso lembrar como a Igreja conhecera há muito tempo uma relação notavelmente difícil com o progresso histórico da consciência da liberdade e dos ordenamentos libertários, alcançados laboriosamente. A reação de setores eclesiásticos influentes à Revolução Francesa logo tomou o nome de Restauração. Os papas do século XIX, de Gregório XVI a Leão XIII, não pouparam críticas até mesmo duríssimas à ideia moderna de liberdade, e é apenas o caso de acenar à veemência da condenação do Papa Gregório contra as liberdades modernas, especialmente de opinião e de imprensa ("deliramentum") e a dureza do Sílabo de Pio IX.
Certamente, essa resistência diante das pretensões totalizantes da razão moderna também permitiu que a Igreja defendesse a autonomia da sua própria ordem do absolutismo do século XVIII e do monopólio cultural do liberalismo no século XIX. Mas seria difícil negar que os preços desse bloqueio foram pesados, com o predomínio de uma reação somente defensiva e apologética diante dos desafios da modernidade e dos processos de industrialização: o cristianismo se retirou cada vez mais no campo intraeclesial garantista, perdendo assim, por causa desse recompactar-se em si mesmo, a própria força modeladora do mundo (F. X. Kauffman).
A crise que se produziu a partir disso já ocultava há muito tempo antes do Concílio Vaticano a despeito de certas hipóteses fantasiosas de qualquer padre politicante que insiste no lançar sobre o Concílio a responsabilidade de um desvio que já havia sido diagnosticado por ele mesmo anteriormente, durante o reino de Pio XII. O Concílio realizou, especialmente com a Declaração sobre a liberdade religiosa, mesmo na plena garantia de uma fidelidade doutrinal, uma significativa mudança de paradigma. Ela trouxe novamente a dignidade da pessoa humana para o centro e fez valer expressamente o direito de cada pessoa à autodeterminação, a agir com liberdade sem coerção, guiada pela sua consciência. O anúncio é feito pelo proêmio da Dignitatis humanae: "Da dignidade da pessoa humana estão cada dia mais conscientes os homens do nosso tempo".
Desse modo, a Igreja chegou a defender as instituições liberais na hora do perigo de erosão e da ameaça de uma devastadora crise de legitimidade derivante, ao menos em parte, de uma concepção meramente emancipatória e individualista da liberdade, dissociada da ordem ética, da qual o processo de secularização tivera a sua origem. Verdadeiramente, trata-se de uma reivindicação da natureza essencialmente cristã, embora não explícita, das raízes da qual insurge, muitas vezes com acentos seculares antagonistas, a autoafirmação da dignidade da pessoa humana, adotada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, votada pelas Nações Unidas em 1948: direitos que se fundamentam na dignidade humana, antes que na cidadania ou no pertencimento à nação e/ou ao Estado, razão pela qual a liberdade religiosa pode ser profundamente assumida como um resultado legítimo da história do cristianismo e, ao mesmo tempo, o fundamento histórico objetivo de todo outro direito humano. Como recita o Tratado Constituinte da Europa (2004): "A dignidade humana é inviolável. Ela deve ser respeitada e protegida".
De fato, reivindicar a causa da liberdade religiosa e de fé significa necessariamente defender também a liberdade de consciência em geral, de comunicação e de informação; significa proteger as diferenças, como indispensável e radicalmente legitimado e, portanto, incomprimível direito ao pluralismo não só das religiões, mas também dos saberes e das identidades: "Se o Concílio reconhece que também na busca da Verdade a dignidade da pessoa humana não pode tolerar coação – observou o professor Francesco Paolo Casavola – quanto mais deveríamos admitir a inviolabilidade da consciência por parte da sociedade e do Estado (2).
Do que foi dito, segue-se um motivo justificado para afirmar que toda lesão ou constrição administrativa desse direito religioso, nos limites em que não prejudique a ordem pública, constituiria um déficit da circulação democrática, um preanuncio e sintoma de uma crise em ação no sistema liberal; e, reciprocamente, pode-se assumir que a sociedade está ligada pela própria sobrevivência a instâncias dela independentes, a campos valoriais, transcendentes, que estão em defesa da consciência da liberdade e que encorajam a se empenhar pela liberdade de todos. Como dizia Walter Kasper, hoje cardeal, "no passado pode ter sido, às vezes, necessário combater pela liberdade contra um absolutismo teológico e clerical. Hoje, porém, surgiu uma nova situação: a religião hoje passa a pertencer às condições de sobrevivência da cultura libertária" (3). Em virtude dessa solidariedade, a Igreja manifesta a sua preocupação pelos desvios de uma civilização que se tornou liberal mediante o processo secular, vencendo o jogo antes com o absolutismo teológico e clerical, portanto, também com os absolutismos seculares do nazismo e do comunismo; uma civilização, além disso, que parece estar hoje ameaçada paradoxalmente por uma concepção que erode valores e finalidades que fundamentam o nosso ordenamento libertário.
Em virtude da decisão conciliar, a Igreja pôde se dispor sobre o campo público para denunciar criticamente alguns fatores de corrupção do sistema liberal, novas formas de absolutismo em molho democrático, chamem-se nações, povo, capital, classe, mercado ou segurança nacional; exortar a fundamentar a liberdade sobre a prioridade da pessoa, de toda pessoa, sobre as coisas, mesmo sobre o trabalho e sobre o capital; convidar a testar todos os sistemas do ponto de vista da dignidade humana e da liberdade; encorajar a solidariedade com aqueles que não têm proteções e lobby, com os fracos, com os pobres, com os oprimidos, com os discriminados, idosos, crianças por nascer.
No plano das relações da Igreja com outros sistemas religiosos ou tradições espirituais da humanidade, surgiu como consequência do Vaticano II a tendência a amadurecer do ponto de vista teológico uma certa revisão da convencional doutrina acherôntica sobre os seguidores das religiões não cristãs, a superação do antissemitismo teológico, a adoção gradual mas sólida de uma atitude de autocrítica penitencial no magistério supremo pelos erros históricos cometidos por membros da Igreja com o recurso aos meios da força, da violência armada e da coação psicológica a serviço da verdade religiosa.
Neste processo, desencadeado pelo Concílio, também pode-se integrar organicamente a doutrina conciliar, formulada na constituição Gaudium et Spes (n. 76), acerca das relações entre a Igreja e a comunidade política: um texto que afirma que a Igreja não se confunde com a comunidade política e não está ligada a nenhum sistema político, que ela, no exercício do apostolado, se apoia no "poder de Deus, o qual muitas vezes manifesta a força do Evangelho na fraqueza das suas testemunhas" e ordena aos agentes da evangelização: "É preciso que utilizem os caminhos e meios próprios do Evangelho, tantas vezes diferentes dos meios da cidade terrena". A linha é traçada: "A Igreja não coloca a sua esperança nos privilégios que lhe oferece a autoridade civil; mais ainda, ela renunciará ao exercício de alguns direitos legitimamente adquiridos, quando verificar que o seu uso põe em causa a sinceridade do seu testemunho ou que novas condições de vida exigem outras disposições".
(Continua...)
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Vaticano II: uma etapa decisiva de um caminho que deve continuar. Artigo de Giancarlo Zizola – Parte 4 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU