22 Janeiro 2012
Hoje é o meu aniversário, então eu acho que isso significa que eu posso chorar se quiser. Embora eu não esteja exatamente chorando, estou lamentando um pouco a forma como as recentes histórias do Vaticano estiveram em jogo em grande parte da cobertura jornalística.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 20-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É o "jornalismo 101" que equivale a uma "notícia" [novidade, news], algo que supostamente é desconhecido previamente, fora do comum ou não muito familiar – isto é, "novo" [new]. Aí é onde o contraste entre "o cachorro que morde o homem" versus "o homem que morde o cachorro" entra em cena.
No entanto, em duas recentes histórias de Roma, vimos uma cobertura notavelmente "cachorro que morde o homem", ao minimizar ou ignorar o que era novo.
O discurso do papa
Um desses casos é discurso do Papa Bento XVI aos diplomatas, no dia 9 de janeiro, considerado em geral como o principal discurso do papa sobre política externa do ano. A cobertura nos meios de comunicação em inglês se focaram na declaração do pontífice de que "as políticas que atentam contra a família", interpretada como uma referência ao casamento gay, "ameaçam a dignidade humana e o próprio futuro da humanidade".
No mesmo parágrafo, o papa se referiu ao casamento como um ato entre um homem e uma mulher, de modo que o ângulo do casamento gay era uma espécie de "vale tudo" – apesar do fato de Bento XVI nunca ter usado essa frase e apesar do fato de que dificilmente esse foi o ponto principal do discurso, que variou entre crise econômica, meio ambiente, liberdade e educação religiosas, além de um levantamento de uma grande variedade de questões globais candentes.
No entanto, assumindo que esse foco é defensável, ele ainda é discutível em termos de valor noticioso. Afinal de contas, onde você colocaria a notícia "Papa objeta ao casamento gay" no medidor de choque jornalístico?
A título de contraste, realmente houve algo novo sobre o discurso, um ponto com importantes consequências para a interseção entre fé e política.
Em sua discussão sobre a defesa da vida humana, Bento XVI citou dois desdobramentos que ele considerou encorajadores no ano passado:
- Uma decisão de outubro pela Corte de Justiça da União Europeia proibindo o patenteamento comercial de células-tronco embrionárias;
- Uma resolução adotada no mesmo mês pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa condenando a seleção pré-natal com base no sexo.
A novidade é que, em ambos os casos, o apoio político a essas medidas veio da esquerda, não da direita. A queixa legal que levou à proibição do patenteamento de embriões foi apresentada pelo Greenpeace, enquanto a resolução parlamentar sobre a seleção pré-natal foi introduzida por uma socialista e feminista suíço chamada Doris Stump. É desnecessário dizer que esses não são exatamente os companheiros de viagem que ordinariamente associamos com a agenda política de Bento XVI.
Com efeito, o discurso do papa foi uma lição naquilo que Jeremy Rifkin chamou de "nova biopolítica", em que os inimigos de outrora de repente estão do mesmo lado.
Em um crescente número de debates de biotecnologia, incluindo o patenteamento de embriões, a engenharia genética e os híbridos animal-humanos, a Igreja Católica e o movimento pró-vida se encontram como aliados com elementos da esquerda secular, incluindo ambientalistas, feministas e ativistas anticorporativistas. Seus pontos de partida obviamente são diferentes, mas eles chegam ao mesmo lugar. Do outro lado, está uma constelação de conservadores pró-negócios, o sistema dominante médico e científico, e libertários opostos a qualquer forma de regulamentação do governo.
Até certo ponto, essas areias movediças continuam sendo difíceis de ver, porque biodebates mais antigos, como o aborto e o casamento gay, ainda preponderam. Com o desdobrar do século XXI, porém, as linhas de batalha das guerras culturais podem se redefinir cada vez mais, e discurso do papa ofereceu a prova disso.
Agora, há algo digno de nota.
Os novos cardeais
A outra grande história foi o anúncio do Papa Bento XVI, no dia 6 de janeiro, dos 22 novos cardeais, incluindo 18 com menos de 80 anos e, portanto, possíveis eleitores do próximo papa. Dado que a maior parte são autoridades do Vaticano (10), italianos (sete) e europeus (13), as reportagens definiram o fato como uma safra que reforça o domínio conservador e curial no Colégio dos Cardeais.
"Mais romano, menos católico" foi uma concisa manchete para a história.
Mais uma vez, mesmo se for verdade, onde está a notícia? No entanto, nesse caso, ela é menos verdadeira do que pode parecer.
Em primeiro lugar, esse provavelmente não será um consistório celebrado pela direita católica. Essa não é a safra de novembro de 2010, que apresentou leões conservadores como os cardeais Raymond Burke, dos Estados Unidos, e Malcolm Ranjith, do Sri Lanka. Ao contrário, este grupo é composto principalmente por equivalentes eclesiais de Mitt Romney, ou seja, pragmáticos de centro-direita que inspiram pouco fervor ideológico.
Consideremos o arcebispo Dominik Duka, de Praga, dominicano e biblista. Duka supostamente chamou a antiga missa em latim de "um artefato barroco para tempos barrocos" e sinalizou abertura para a fertilização in vitro se a destruição dos embriões puder ser evitada. O arcebispo Giuseppe Betori, de Florença, tentou curar a separação histórica entre os campos progressista e conservador entre os leigos italianos e, para seu problema, um comentarista tradicionalista rotulou Betori de "paleoliberal", acusando que ele faz parte de um bloco subterrâneo de cardeais opostos a Bento XVI. Há também o arcebispo brasileiro João Braz de Aviz, da Congregação para os Religiosos, um amigo do Movimento dos Focolares que teve um bom relacionamento ao longo dos anos com o movimento da teologia da libertação na América Latina.
Esses homens podem não ser a ideia que se tem de um liberal flamejante, mas também não são conservadores incondicionais.
Em segundo lugar, a suposição de que nomear um monte de italianos e de autoridades vaticanas automaticamente torna o Colégio dos Cardeais mais "romano" – no sentido de ser mais isolado e estar menos em contato com o resto do mundo – é uma questão em aberto.
Tomemos, por exemplo, o arcebispos italiano Fernando Filoni, prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, e Giuseppe Bertello, presidente do governo do Estado da Cidade do Vaticano. Ambos são diplomatas veteranos que atuaram em todo o mundo. Filoni foi nomeado para vários pontos do Sri Lanka, Irã, Brasil, Jordânia, Iraque e Filipinas, além de ter passado os anos de 1992 a 2001 em Hong Kong, à frente de uma missão de estudos na China. Bertello atuou no Sudão, Turquia, Venezuela, México, Gana, Togo, Benin e Ruanda.
Na verdade, esses não foram cruzeiros de lazer. Filoni estava em Bagdá em abril de 2003, quando começou a invasão liderada pelos EUA, enquanto Bertello estava em Ruanda em 1994, no auge do genocídio. Como a maioria dos diplomatas ocidentais fugiu, Filoni e Bertello permaneceram no trabalho, insistindo que não podiam abandonar a Igreja ou os missionários locais. Ambos receberam notas altas por seus esforços humanitários e diplomáticos, embora ambos tenham sido impotentes para frear o derramamento de sangue que se desdobrava ao redor deles.
Abstratamente, será que os italianos e as autoridades vaticanas como Filoni e Bertello são obrigados a ter uma visão mais estreita do que, digamos, um prelado residente da América do Norte ou da África que raramente viajou para fora de sua zona de conforto?
Se você quiser uma verdadeira notícia de última hora desse consistório, Filoni e Bertello dão a dica da manchete: "O triunfo dos diplomatas".
Cinco dos 18 novos cardeais eleitores nomeados por Bento XVI – notavelmente, os cinco primeiros nomes da lista – vêm do corpo diplomático do Vaticano. Além de Filoni e Bertello, o ex-diplomatas incluem:
- o arcebispo português Manuel Monteiro de Castro, agora dirigindo um tribunal vaticano, que atuava anteriormente nas Antilhas, El Salvador, Honduras e África do Sul;
- o arcebispo espanhol Santos Abril y Castelló, que substituiu o cardeal Bernard Law como arcipreste de Santa Maria Maior, depois de passar boa parte de sua carreira em Camarões, Bolívia, Argentina e Eslovênia; e
- o arcebispo italiano Antonio Maria Vegliò, atualmente dirigindo o Conselho Pontifício para os Migrantes e Refugiados, que passou um tempo em Papua Nova Guiné, Ilhas Salomão, Senegal, Guiné-Bissau, Mali, Líbano e Kuwait.
Tudo isso é surpreendente, tendo em vista a tradicional rivalidade vaticana entre os dois departamentos pesos-pesados que tendem a dominar o local, a Secretaria de Estado e a Congregação para a Doutrina da Fé. Em termos simplistas, é um contraste entre diplomatas e teólogos – entre figuras extrospectivas focadas na geopolítica e no diálogo e figuras mais introspectivas preocupadas com a identidade católica e a fidelidade doutrinal (teoricamente, é claro, esses dois instintos podem ser complementares, por isso a tensão é geralmente uma questão de onde se coloca a ênfase).
A eleição de Bento XVI, em 2005, cuja atividade anterior tinha sido presidir a Congregação para a Doutrina da Fé por um quarto de século, era visto como uma grande vitória para os teólogos. Quando o novo papa indicou um ex-assessor do escritório doutrinal, o cardeal Tarcisio Bertone, como seu secretário de Estado, ele parecia destacar essa conclusão.
A essa luz, o consistório de 2012 se apresenta como uma boa ocasião para os diplomatas – e, talvez, para a mentalidade cosmopolita, prática e orientada ao diálogo há muito tempo associada com o mais antigo corpo diplomático do mundo. Resta ver como isso irá se desdobrar na prática, mas é, pelo menos, uma nova questão para se ponderar.
Caveat emptor
Com toda a franqueza, grande parte do que eu esbocei aqui equivale a questões internas, quer em termos de política europeia ou de cultura vaticana. Pode ser irreal esperar que publicações midiáticas não especializadas trabalhem esse tipo de coisa em suas histórias cotidianas, especialmente levando-se em conta as pressões dos prazos finais de um ciclo de notícias de 24 horas por dia, sete dias por semana.
Além disso, não é que os jornalistas tenham tido muita ajuda.
Imagine, por exemplo, se o Vaticano tivesse organizado uma coletiva de imprensa depois do discurso do papa aos diplomatas, em que os representantes do Greenpeace e os socialistas tivessem dito algo como: "Nós temos um caminhão cheio de diferenças com a Igreja Católica, mas, com relação à urgência de proteger a vida contra a exploração científica e comercial, estamos do mesmo lado".
Ou imagine se o Vaticano tivesse preparado uma entrevista coletiva com Filoni e Bertello depois que as suas nomeações a cardeais tivessem sido anunciadas, em que eles poderiam falar sobre como as suas experiências no Iraque e em Ruanda moldaram o seu senso dos desafios perante a Igreja e o mundo.
Tais esforços teriam dado um grande impulso à compreensão pública na direção certa. É desnecessário dizer que isso não aconteceu.
O que tudo isso sugere, talvez, é uma lição básica sobre caveat emptor ["cuidado, comprador", em latim]. Dada a dinâmica das empresas de mídia e das comunicações do Vaticano, é improvável que o aspecto inovador da maioria dos desdobramentos que vêm de Roma – assumindo que haja um – irá se destacar nas primeiras rodadas da maior parte das notícias e dos comentários.
Em termos de encontrar o "novo" nas notícias sobre o Vaticano, a linha de fundo, portanto, é: alerte o comprador.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Algo se move no Vaticano, mas passa desapercebido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU