22 Março 2022
"As teocracias de ontem e de hoje não deixam Deus ser Deus, na medida em que reduzem às dimensões da história, à imagem e semelhança do líder ao tamanho limitado de suas promessas. As teocracias são sempre idolátricas, exclusivistas e violentas. Ainda mais, as teocracias atuais oferecem a fundamentação para as tiranias do medo e do capital mundializado", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro de João Décio Passos, No lugar de Deus: ensaios (neo)teocráticos. [São Paulo: Paulinas, 2021, 240 p. (Coleção Kairós). ISBN 9786558081050].
Um território tão antigo quanto novo: “a do poder exercido como autoridade provinda de Deus”. O nome clássico desta postura e dos regimes políticos implantados por Deus, em seu lugar ou em seu nome é “teocracia”. Onde houver afirmações do poder de Deus sobre a terra haverá teocracia, tanto em espaços estritamente eclesiais quanto naqueles estruturados politicamente como regimes, narrativas e governos. Se, por um lado, a consciência política moderna não suporta esses regimes, por outro lado, tem convivido com a postura que, de tempos em tempos emerge com forte ímpeto de encarnação em governos concretos, particularmente em regimes ditatoriais e governos de ultradireita. Contudo, mais forte que esses resquícios politicamente inoperantes, a sobrevivência de uma consciência teocrática se mostra viva e em nossos dias adquire expressões que, até bem pouco, seriam desacreditadas como coisa definitivamente superada. Deste assunto se ocupa a obra: No lugar de Deus: ensaios (neo)teocráticos (Paulinas, 2021, 240 p.), escrita por João Décio Passos, doutor em Ciências Sociais e livre-docente em Teologia pela PUC-SP.
Reprodução da capa do livro
Nesta obra estruturada em sete (7) reflexões o termo teocracia é adotado para designar a postura que entende a origem e a organização do poder a partir de um fundamento religioso, mesmo que isso não resulte em um regime teocrático. Cada uma destas análises oferece aproximações que sugerem perspectivas analíticas que desvelam o que o senso comum e as igrejas encaram com certa naturalidade e destacam aspectos a serem levados a sério a partir da categoria “neoteocracia”. O termo neoteocracia é adotado como designação das atuais expressões de exercício do poder a partir de fundamentos religiosos. Décio Passos (p. 7-19) salienta que as análises desta obra circulam entre os fragmentos visíveis nas posturas e nos discursos do governo atual em conexão com os seus pares de outras partes do planeta e as referências teóricas e históricas dos regimes e das ideias teocráticas. Assim sendo, as temáticas oferecem distintas aproximações conceituais que permitem perceber rupturas e continuidades entre os modelos do passado e os do presente, construir analogias entre eles e fazer discernimentos políticos e éticos.
Na primeira reflexão: O retorno do poder de Deus (p. 21-45) destaca-se que o retorno político do poder de Deus faz parte de um ciclo de retornos de uma concepção de poder de longa temporalidade da história ocidental, senão da história humana. Deus ainda não foi desbancado como origem dos poderes, mesmo que, desde a chegada do Estado laico, tenha permanecido na retaguarda religiosa e cultural como origem primeira de todos os poderes, quando não da origem inaudita das forças da natureza. No subsolo da cultura, nos bastidores dos poderes políticos e no comando das comunidades confessionais, o poder de Deus subsiste como causa e como força disponível a todos os que dele necessitarem e a ele recorrerem. Assim, na volta aos fundamentos mais antigos do poder de Deus da ordem social e política (p. 23-27), o autor chama a atenção para os poderes paralelos (p. 27-29), suas confluências históricas (p. 29-32), para as configurações teocráticas atuais (p. 32-36), nacionais (p. 36-38), discursos/palavras que explicitam a visão religiosa do governo atual (p. 38-45).
A questão das novas teocracias (p. 47-70) é o assunto abordado no segundo capítulo. Distinguindo regime teocrático como sistema político antigo exercido no seio da cristandade, como cosmovisão que se perpetua pela história em imagens e ideias que afirmam o religioso como fundamento de todo poder e como governos que adotam de algum modo essa perspectiva, ainda que por dentro de estruturas modernas laicas, Décio Passos destaca que a teocracia se apresenta como uma questão a ser examina nestas dinâmicas de superação e de sobrevivência, tendo-se em conta que a perspectiva supostamente superada reaparece nos regimes de ultradireita que hoje emergem pelo planeta afora; reaparece sem muito disfarce, ainda que se utilize de uma mistura de símbolos antigos e novos, mistura de confissões e cosmovisões religiosas distintas que até bem pouco se posicionavam como opostas. Essas novas manifestações podem ser denominadas neoteocracias tanto por não se constituírem como regimes como aqueles do passado, alojando-se dentro dos regimes democráticos, quanto pelas configurações que vão construindo com dinâmicas hibridas próprias das dinâmicas culturais modernas. Desta forma, este capítulo explicita os novos desenhos/novas expressões teocráticas suas facetas e estratégias (p. 55-60), os fôlegos teocráticos/ longa temporalidade/sobrevivência dos regimes teocráticos (p. 60-66), as emergências teocráticas: crise e poder divino; poder divino e projeto populista (p. 66-70).
Na terceira reflexão: Pátria amada, idolatrada (p. 71-102), mostra-se que as aproximações entre pátria e religião não são coincidências ou parte integrante das estratégias legitimadoras dos poderes autocompreendidos como enviados por Deus. Elas revelam a relação mútua entre os poderes de Deus e os poderes dos líderes. Essa equação simples compõe a própria formulação da imagem da pátria, fonte que sustenta a pertença comum da mesma nação, do mesmo povo e do mesmo aparelho governamental. Mas é na forma explícita que essa fonte é retomada e reconstruída regimes autoritários no decorrer da história. Na gramática teológica dos poderes fortes e absolutos, Deus e líder se relacionam como causa primeira e causa segunda de um projeto salvador e, por conseguinte, a pátria é privatizada no projeto do líder; resgatar e domesticar a pátria significa, desde então, apresentar-se como portador de um projeto que historiza o mito do sentimento comum no tempo e no espaço e exercer um controle sobre seu dom, bem como administrar seu conteúdo imagético agregador. Décio Passos focaliza, por isso, as imagens da pátria no mito fundador do Brasil, os meios para justificar as posturas, as linguagens legitimadoras (p. 73-83), as afinidades entre poder de deus e poder autoritário (p. 90-92), o retorno do tripé Deus-pátria-família na pátria no atual governo (p. 92-95), as dinâmicas teológicas da pátria; dom da unidade, reino transcendente, igualdade dos filhos (p. 95-102).
O Deus pantocrator no comando da pátria amada (p. 103-125) é o objeto de reflexão do quarto capítulo. O autor observa que as percepções de Deus não são fixas, ao contrário, adaptam-se a cada grupo religioso e, neste sentido a história do Ocidente narra a construção de modelos teocráticos no decorrer do tempo. As formas originais e até mesmo exóticas desses modelos se fizeram presentes em diferentes governos que justificavam seus mandatos de poder divino por ele representados. Os poderes fundamentados e fundados em Deus retiram dele não uma inspiração sobrenatural, uma mera mística política, mas as imagens de poder onipresente. Trata-se de uma teologia de poder: Deus todo-poderoso que implantar seu Reino por meio de um eleito investido de poder para tal missão. Décio Passos mostra então quais são as configurações possíveis do poder de Deus (p. 104-110), os marcos do imaginário dominante do poder de Deus (p. 110-115), a estruturação do poder de Deus (p. 115-118), a imagem pré-moderna do todo poderoso (p. 118-125).
No quinto capítulo: Panorama modelos de teocracia (p. 127-156), especifica que a compreensão das sobrevivências teocráticas em novos formatos pode ser mais acurada mediante uma retomada das construções teocráticas do passado, sobretudo do mundo antigo e medieval, onde essa visão e práxis políticas assumiram modelos bastante regulares, esmo conhecendo variações no tempo e no espaço: fase antiga (p. 132-133); fase cristã cesaropapista (p. 133-137); fase da cristandade medieval (p. 137-141), fase das adaptações modernas (p. 141-145); fase das retomadas contemporâneas (p. 145-146). Este capítulo conclui-se destacando os tipos de teocracia (p. 146-156).
A categoria mito é analisada no sexto capítulo (p. 157-185). Décio Passos observa que os mitos políticos são de algum modo expressões teocráticas, uma vez que as teocracias podem ser a encarnação de deuses, como nas teocracias do mundo antigo, representantes de uma revelação divina que institui uma linhagem monárquica ou presença de um personagem que engendra uma missão em um determinado momento histórico marcado por crises agudas. Esse personagem representa e sintetiza em sua pessoa a própria promessa; encarna um ideal restaurador que se apresenta como promessa de imediata solução histórica. O mito realiza o que promete e oferece as energias e o sentimento seguro de uma superação das crises históricas, obtendo a adesão dos seguidores para exercer seu poder e vencer o inimigo. Ele se impõe como portador de uma verdade que desvela a totalidade da realidade e relativiza tudo o mais como inferior ou como inimigo produtor do caos e que deve ser eliminado. Por se identificar com o próprio bem, o mito político está posicionado acima dos bens e dos males que regem a vida cotidiana, acima das normas e das leis que regulam, a vida coletiva e, por essa razão, tem o direito de eliminar tudo e todos os que se opõem ao seu projeto salvador. A luta contra o bem e o mal é inerente aos mitos políticos. Décio Passos mostra, por isso, como os mitos são historizados (p. 161-173), a historização do mito como um problema (p. 173 -181), a resistência dos mitos políticos (p. 181-184), o lugar do mito (p. 184-185).
Por fim, no sétimo capítulo explora-se a relação entre mito político e consciência fanática (p. 187-216). A consciência fanática é descrito por Décio Passos como um tipo de consciência que nega valores fundamentais das sociedades modernas estruturadas sobre as bases antropológicas do indivíduo consciente, autônomo e ativo, ou seja, na postura e noção de sujeito, princípio, caminho e meta das sociedades democráticas, assim como dos processos de formação da cidadania por meio da aquisição de parâmetros científicos e éticos de interpretação da realidade. Nesse sentido, esclarece o autor, tratar-se da consciência antitética à consciência crítica, precisamente por negar a necessidade das ciências como parâmetro de interpretação do mundo e da história, a liberdade de expressão, a legítima pluralidade social, política, cultural, os direitos iguais de todos os cidadãos, a necessidade das instituições democráticas e burocráticas do estado de direito. A consciência fanática é, ao mesmo tempo, a expressão e a condição da irrupção do fim da história ou da síntese final oferecida pelo líder investido de forças sobrenaturais e destinadas a salvar a nação da grande ruína (p. 189-192) Nessa perspectiva, os traços da consciência podem facilitar a compreensão da mesma, nas quais as características de crentes, alienadas, segregadas, gregárias, heterônomas, reprodutivistas, servis e militantes (p. 193-212). Concluindo, o autor pontualiza os processos do fanatismo (p. 212-216).
João Décio Passos esclarece nesta obra a seguinte pergunta: Em um Estado laico quais são os limites entre política e religião, mostrando como as teocracias encenam as antigas performances políticas dos líderes que governam no lugar de Deus. Os teocráticos se alimentam de poder divino absoluto e se fazem igualmente absolutos. As teocracias de ontem e de hoje não deixam Deus ser Deus, na medida em que reduzem às dimensões da história, à imagem e semelhança do líder ao tamanho limitado de suas promessas. As teocracias são sempre idolátricas, exclusivistas e violentas. Ainda mais, as teocracias atuais oferecem a fundamentação para as tiranias do medo e do capital mundializado.
Cada capítulo desta obra contribuirá e ajudará o leitor/a encontrar elementos que o/a ajudem compreender o que se passa na política atual: a fé no poder de Deus, a promessa do líder redentor na história, o mito da pátria agregada, a promessa de salvação, a verdade infalível, os modelos de governo teocrático, a consciência fanática.
Por fim, concordamos com o autor quando diz que o retorno a fundamentos pré-modernos da política, da sociedade e da cultura busca legitimidade em narrativas religiosas de viés fundamentalista e tradicionalista em pleno Estado laico. E, em tempos de pós-verdade, as relações entre política e religião assumem novas dinâmicas no conjunto da sociedade e, de modo caricatural, nas chamadas bolhas virtuais. Essas novas pólis exercitam regularmente políticas sectárias e intolerantes que descartam os parâmetros éticos da sociedade civil moderna, assim com a ética do respeito e do amor ao próximo, fundante do cristianismo. O uso interno de fundamentos religiosos para justificar posturas político-ideológicos e políticas públicas em governos de vários pontos do planeta desafia os cristãos crentes e de boa vontade a discernirem os significados e as consequências humanas dessas posturas. A tradição cristã-católica nos convida a discernir as realidades históricas com a fé e a razão e a assumir de novo a cada geração os valores que sustentam a convivência humana.
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No lugar de Deus: ensaios (neo)teocráticos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU