Impeachment, Estado laico e responsabilidade civil: um recorte

Foto: Lula Marques

24 Março 2021

 

"Será que a afirmação do Estado laico serve apenas de critério para os governantes e não para as reivindicações dos cidadãos/ãs? Teriam os religiosos um poder maior fundado numa lei ética maior que todas as leis? Não podemos fugir dessas questões, mas tentar enfrentarmo-nos a elas pessoal e coletivamente para que nossas convicções tenham crédito aos nossos próprios olhos", escreve Ivone Gebara, filósofa, teóloga e religiosa pertencente à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, que lecionou por 17 anos no Instituto Teológico do Recife (Iter).

 

Eis o artigo. 

 

Podem, em nome de uma religião ou uma Igreja, fiéis pedirem o impeachment de um chefe do poder executivo? Pediriam este impedimento como cidadãos/cidadãs de uma república ou como fiéis de uma religião? Se a república é constitucionalmente religiosa, apesar das dificuldades deste procedimento seria mais facilmente compreensível, caso o presidente ou o monarca tivessem rompido seu contrato de servir o povo na sua diversidade de composição. Porém, se a república é laica, problemas da ordem do direito e da governabilidade se interpõem e convidam a um discernimento mais cuidadoso e ponderado apesar das situações de urgência.

Tento percorrer brevemente os caminhos tortuosos de argumentações e posições possíveis para convidar-nos a pensar sobre nossas coerências e incoerências no atual e confuso momento da história nacional. É apenas um pensar alto, sem nenhuma pretensão de ter razão ou dar a melhor resposta a essa questão. Escrevo inspirada por muitas perguntas que ouço aqui e acolá sobre o tema ou o problema, além do fato de ter recebido em meu correio um número grande de petições em nome de Igrejas a favor do impeachment. Tudo isso ressoa em nós e nos convida a buscar uma melhor compreensão da situação a fim de nos ajudar-nos a fazer frente a este momento difícil de nossa vida coletiva. Não proponho soluções ou posições definitivas, defensíveis de forma unânime, mas apenas um esboço de reflexão para melhor compreender a nós mesmos/as e a nossos argumentos atuais.

Um caminho argumentativo se nos impõe como tentativa de elucidar algumas de nossas ações e suas prováveis consequências:

- Devemos admitir que cidadãos/as religiosos são em primeiro lugar cidadãos de um país. Do ponto de vista político pertencem a uma nação e submetem-se à suas leis. Nesse sentido, sou primeiro brasileira e depois católica ou primeiro brasileira e depois do candomblé ou primeiro brasileira e depois luterana ou muçulmana. O ‘depois’ não é um depois temporal, mas legal, constitucional, de identidade nacional, ou seja, um ‘depois’ segundo uma pertença legal a um país que me fornece uma identificação, um pertencimento público a uma nação. Isto significa que ser católica ou do candomblé não define em primeiro lugar a minha pertença a uma nação ou a um Estado. Da mesma forma dizer sou mulher ou sou transexual não definem minha identidade nacional. Sem dúvida seria preciso lembrar também da existência de nações indígenas dentro do que chamamos nação brasileira o que aumenta a complexidade da questão. Tal situação, sem dúvida levanta um sem número de questões colonialistas, nacionais e internacionais que não posso abordar no momento.

- Em relação à pertença ou ao fato de ser um membro ou parte de um grupo de cidadãos/as de um país, a religião e a sexualidade são ‘segundas’ embora não secundárias. A primeira identificação constitucional legal é ‘brasileira’. Assim não é como católica ou protestante que voto ou que posso pedir o impeachment de um governante ou de um soberano qualquer, mesmo quando ele não garante mais a paz, a saúde, o bem-estar e a justiça em relação à vida de todos/as os cidadãos. Peço, exijo, luto porque tenho direito a isso como cidadã.

- Não é pela interpretação da Bíblia, do Alcorão ou pela vontade de algum orixá ou da Mãe-Terra que exerço meu direito político. Estas figuras religiosas e estes livros chamados sagrados podem me dar uma sustentação pessoal e até coletiva limitada, porém não são elas que legitimam publicamente minhas ações e manifestações políticas nesta contraditória república laica chamada Brasil. Porém, é pelo fato de ter uma identidade brasileira ou de ser reconhecida como habitante ou imigrante legal que posso exercer o poder político de votar, de solicitar ou propor uma deposição ou um impeachment a um governante. Sem dúvida a interpenetração entre crenças religiosas e políticas à nível pessoal são inevitáveis, porém há que tentar a distinção entre elas para podermos avançar.

- Olhando a questão a partir da perspectiva religiosa, o Estado democrático laico não pode por sua vez interferir no conteúdo das crenças de uma determinada religião, a não ser quando estas crenças levem a atos atentatórios à vida dos fiéis ou de outras pessoas através de comportamentos que destruam sua vida ou a ameacem.

- Numa democracia laica o Estado é a salvaguarda da inviolabilidade da vida de cada cidadão e deveria garantir-lhe ampla proteção. O Estado pode interferir não no conteúdo da religião e nem em sua organização interna, mas apenas nas ações ou crimes cometidos por membros dessa religião a partir de algumas crenças e práticas religiosas prejudiciais à vida. O Estado interfere não em nome de alguma outra religião ou de uma fé religiosa, mas em nome da Constituição do país que não só garante, mas exige tal medida protetiva.

- Alargando a questão, pode suceder que o Estado persiga uma religião por motivo fútil, por preconceitos de muitas ordens inclusive racistas. Nesse caso a comunidade religiosa e os cidadãos solidários a ela podem reagir em nome da Constituição afirmando o direito à vida e à liberdade religiosa. Podem exigir que o Estado ou os governantes cessem este nefasto comportamento inclusive usando as leis do país para defenderem-se e punir os infratores.

Mas, talvez alguns/as, dirão que a situação que vivemos hoje no Brasil é outra porque trata-se do representante maior do Estado que por suas políticas negacionistas viola a vida dos cidadãos. E mais ,vivemos uma trágica situação de pandemia em que políticas de urgência são absolutamente necessárias e ele e seu governo não têm assumido sua responsabilidade. Porém, mais uma vez, os cidadãos/ãs ‘violados’ não são especificados a partir de suas crenças religiosas, mas por sua realidade cidadã ferida, por seus direitos desrespeitados. Logo, por este argumento, também não deveríamos fazer nossas acusações e moções políticas em nome das religiões, mas em nome de nossa reconhecida cidadania. A cidadania reconhecida é o fundamento primeiro de nosso direito político. Por isso, embora muitas pessoas usem das instituições religiosas apenas como escudo para a organização de um grupo de ativistas ou para mostrar que os religiosos são contra as ações do governo ainda assim os equívocos são maiores que os benefícios a longo e curto termo. Não se trata apenas de dar forma religiosa a nossa petição ‘ad hoc’, mas de não perdermos a ampla força política que temos ao afirmarmos nossa cidadania em nome da Constituição, mesmo que ela seja limitada e necessite reajustes.

Estamos sem dúvida num dilema lógico que nos convida a pensar e tentar baixar um pouco a emocionalidade de nossas reações frente à trágica situação que vivemos no país. E, pensar é salutar para encontrar saídas mais eficazes para nossos problemas. Não basta gritar contra, é preciso encontrar saídas eficazes para a manutenção da vida da nação na sua diversidade de grupos e propô-las de forma concreta. Por isso, é preciso iniciar entre nós projetos concretos que ajudem a viver o hoje em meio a tanta fome, desabrigo e morte.

Os cidadãos e cidadãs são membros de um país e podem ser ou não membros de uma ou outra religião. Entender esse duplo pertencimento e seu entranhamento emocional pessoal e social torna-se um desafio para um pensamento político filosófico para os dias de hoje, pensamento que tenha eficácia real nas relações sociais e políticas em diferentes níveis. E isto porque não podemos esquecer nossa extrema vulnerabilidade e sobretudo o uso que fazemos da arte da dissimulação presentes na política e nas religiões. Fazer de conta que somos o que não somos, fazer de conta que somos melhores e mais coerentes do que somos, aproveitarmo-nos de crenças religiosas para fazer valer nossas crenças políticas, usá-las em benefício próprio ou como mero artificio para interferirmos politicamente segundo nossas ideologias, são ações repetidas, numerosas e incalculáveis. Entramos, muitas vezes sem perceber, num processo ilusionista, de alienação, de dissimulação que provavelmente não nos conduzirá muito longe. O ‘muito longe’ tem a ver com uma dimensão evolutiva de um processo histórico que precisa ser continuado sempre em favor do bem comum e da diversidade de cidadãos. Minha intervenção política deve ter ao menos alguma base capaz de lançar ao futuro já presente alguma alternativa que possa trazer um benefício real à doença social e sanitária que todos enfrentamos. Sair de um caos e cair em outro apenas muda o caos, porém não prepara os indivíduos a enfrenta-lo criativamente, não indica novas possibilidades de caminhos e não fortalece a esperança cotidiana de um povo.

Nessa linha há que perceber que os limites de trânsito entre Estado político e religiões é múltiplo e variado. É igualmente complexo, mutável e muitas vezes pouco claro. Não se sabe onde uma, a religião, começa e onde a política termina. Se misturam, se confundem e nos confundem. Porém, o pensamento convida a discernir, a compreender a necessidade de um mínimo de ordenamento nas ideias e nas ações para que possamos minimamente convergir para acordos possíveis e beneficiar nossas vidas, sobretudo as mais expostas.

Como situar os religiosos, por exemplo, os grupos pertencentes a várias igrejas cristãs que neste momento, em nome de sua fé pedem o impeachment do atual presidente? O fato de falarem em nome de sua fé, aliás pouco explicitada ou teologicamente justificada nesses momentos, acrescentaria algo ao seu pedido? Daria a eles maior autoridade? Os identificaria socialmente como mais justos e fortes para mostrar o reconhecimento e o poder social que têm? Daria a eles uma espécie de sentimento de adesão coletiva a algo bom que eles representariam? Pastores e padres reunidos pelo impeachment teriam mais autoridade do que o sindicato das empregadas domésticas ou o sindicato dos taxistas pelo impeachment ou uma associação de bairro ou um grupo de professoras, advogados e médicos também a favor do impeachment? Será que os religiosos ainda acreditam na sua força especial de atuação no Estado quando eles mesmos têm lutado pelo Estado laico? Será que se arrependeram dessa reivindicação e agora buscam indiretamente reganhar os privilégios sociais que antes possuíam? Não estariam talvez até inconscientemente legitimando um processo de nova colonização política dos cidadãos pela religião?

Será que a afirmação do Estado laico serve apenas de critério para os governantes e não para as reivindicações dos cidadãos/ãs? Teriam os religiosos um poder maior fundado numa lei ética maior que todas as leis? Não podemos fugir dessas questões, mas tentar enfrentarmo-nos a elas pessoal e coletivamente para que nossas convicções tenham crédito aos nossos próprios olhos.
Talvez o desespero do atual momento nos faça apelar a qualquer solução para que a situação política seja realmente mudada. Porém, confundir as ‘cartas’ do jogo social no momento do desespero não leva necessariamente a ganhar o jogo social democrático mais adiante.

Onde começo como cidadão? Onde começo como profissional? E mais, onde começo como cristã, crente, membro de diferentes igrejas? E, onde começo como membro de uma nação democrática de um Estado plural afirmado como laico?

Suspeito que muitas vezes estamos numa espécie de caldo de sabores indistintos que nutrem nossa ingenuidade política e religiosa. Embora no caldo a mistura de ingredientes com sabores diferentes não me permita muitas vezes distingui-los claramente, devo entretanto, tentar reconhecer os ingredientes que o compõem e os que não podem compô-lo, assim como os que estão ausentes, mas deveriam talvez ser acrescentados.

Nessa simbologia de um caldo comum reconheço que existem ingredientes ou valores que não podem estar o tempo todo e da mesma forma em qualquer sopa carregando seu sabor. A sopa é o momento atual e nesse momento devo me perguntar que valores reais e efetivos representa por exemplo a religião cristã que defendo e em nome da qual declaro o impeachment ou o não impeachment? E faço essa pergunta pelo simples fato de haver outros grupos religiosos das mesmas igrejas que militam contra o impeachment e a favor do comando do ‘capitão’. Eles também falam em nome de suas igrejas muitas das quais são institucionalmente as nossas também!

O que minha crença religiosa acrescenta à minha militância política como cidadã? Que valores religiosos seriam capazes de criticar de forma nacional um Estado que desrespeita os povos que o constituem? Seria a religião institucional isenta das críticas que fazemos à política? Seria o atual estado da diversidade de cristianismos isento das mesmas denúncias que fazemos aos estados totalitários, à sua subserviência ao capitalismo nacional e internacional? Estaríamos isentos como instituições religiosas das mentiras de nossa política, dos enganos, dos escorregos contínuos para salvar a pele e os privilégios de poucos?

Nossas instituições religiosas são de fato instituições que acolhem os pobres, as marginalidades crescentes, as mulheres, a diferença de pensamento, a democracia dentro da suas instituições para que possamos em nome delas criticar os autoritarismos, as mentiras, a dissimulações, os interesses escusos, as violências, os comportamentos monocráticos?

Certamente não proponho fazer das instituições religiosas sindicatos, instituições de reivindicações específicas, mas incentivar os fiéis a participarem de seus sindicatos profissionais ou de outras organizações e movimentos com incidência social e política e portanto com uma autoridade e justificação de maior peso democrático na atualidade. É a sociedade civil que escolhe os políticos e é ela que tem a responsabilidade de muda-los.

Cada tempo é um tempo. Estamos em tempos difíceis também para as religiões. Elas também foram e são atingidas como em tempos passados pelo vírus do poder temporal imaginado e afirmado como espiritual. Elas também são marcadas pelo vírus da sede de poder influir, de ter posses, de gozar de privilégios. E seguem gerando muitas exclusões, ilusões e alienações. Elas são organizações de poder real, sobretudo porque seu poder pretende se fundar em ‘lugares’ celestiais, para além da materialidade da vida embora incidam diretamente sobre ela.

Mais uma vez, há que retomar o sentido da etimologia da palavra religião. Há que reafirmar que a religião é religar as pessoas, é aproximá-las, é ouvi-las, é tocá-las. E, há que perguntar de novo: para que serve a religião? E quem é da religião?

Creio que a religião serve para nutrir comportamentos de justiça no imediato, mostrar a continuidade do fio do amor nas suas diferentes expressões, ouvir, acolher e consolar dores múltiplas, liberar e incentivar os fiéis nas suas múltiplas escolhas e não para que as instituições religiosas e seus representante decidam no lugar delas. A religião deveria inspirar, deveria penetrar a interioridade para que nos redescubramos como interdependentes, frágeis e sejamos coerentes conosco mesmos. A religião serve para nos solidarizarmos uns com os outros nas dificuldades que passamos, para aprendermos a dividir e partilhar nesses momentos de penúria social e carências múltiplas. A religião serve para nos lembrar que não estamos sozinhos embora a solidão nos habite, que podemos contar, apesar dos pesares, uns com os outros, que podemos nos dar as mãos mesmo que sejamos pobres de direita ou de esquerda, alfabetizados e analfabetos, sadios e doentes. A religião deveria nos ajudar a cantar juntas/os, a nos tornar-nos próximos dos sofredores de perto e de longe. Por isso temos que desclericalizar as religiões, simplificar seus conteúdos, trazê-los para a cotidianidade da vida, contar com pessoas de bom senso e sabedoria para que nos orientemos uns aos outros/as. Temos que recuperar os pequenos grupos onde as informações, os sentidos, a poesia da vida, a arte circule mais facilmente e se recrie continuamente.

Não queremos ser parte do poder civil, militar e religioso unidos. Essa tríade já causou inúmeros problemas. Já não queremos religião de Estado e nem Estado religioso no sentido institucional. Apenas queremos neste momento resgatar nossas tradições culturais, nossas festas, nossos valores vitais cotidianos, esses sim capazes de efetivamente nos fazer dividir o pão, partilhar respeitosamente a terra para que sua multiplicidade de sementes possa germinar. Essa religião simples, esse religare a tudo o que existe, este religar cotidiano, solidário é o único capaz de sustentar a vida e permitir que nos demos as mãos, que unamos nossas vozes sem nomeá-las institucionalmente, sem especificar sua identidade histórica. Essa religião vale e floresce em tempos de pandemia sem rótulos. Assim talvez através dela consigamos dar passos juntas/os para ser a partir de cada uma/um de nós um Brasil mais cidadão e respeitador de sua população, um Brasil onde a força do respeito mútuo prevalecerá sobre a impunidade e a morte de muitos.

 

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