09 Março 2022
Na 49ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Dom Roque Paloschi questionou cenário “descolado da realidade” que ministra apresentou em seu discurso.
A reportagem é publicada por Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 07-03-2022.
Abrindo a série de sete intervenções de organizações indigenistas e lideranças indígenas na 49ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos (CDH49) das Nações Unidas (ONU), Dom Roque Paloschi, arcebispo de Porto Velho, Rondônia, e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), se pronunciou no Diálogo Geral na manhã desta terça-feira (8). A Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, participou da atividade, que tem por objetivo atualizar o Alto Comissariado sobre a situação de direitos humanos em vários países, inclusive o Brasil.
O presidente do Cimi apresentou um retrato da atual situação dos povos originários no Brasil, agravada pela crise sanitária da Covid-19, e o aumento das invasões dos territórios indígenas por grileiros, garimpeiros, madeireiros e outros invasores. O contexto é marcado pelo alto número de mortes ocorridas em decorrência da má gestão do enfrentamento à pandemia, da desinformação e da negligência do governo federal.
“A atual política indigenista e ambiental do Brasil é totalmente diferente do que a ministra Damares Alves afirmou em seu discurso”, assegura o presidente do Cimi já no início de seu pronunciamento. A ministra de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, representou o Estado brasileiro no Segmento de Alto Nível, que abriu a 49ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, no dia 28 de fevereiro deste ano.
Ao expor as contradições do discurso do governo brasileiro sobre a vacinação dos povos indígenas, Dom Roque esclarece que a imunização “é priorizada apenas nos territórios demarcados, contrastando com uma política de não demarcar nenhum território”.
Segundo monitoramento realizado pela Articulação do Povos indígenas do Brasil (Apib), mais de 68 mil indígenas foram contaminados pela Covid-19, e pelo menos 1.288 morreram até fevereiro deste ano. Até janeiro de 2022, no entanto, apenas 47% da população que vive em terras indígenas havia sido imunizada com a segunda dose da vacina. A inércia do atual governo em adotar medidas de proteção aos povos originários frente à pandemia fez com que organizações indígenas, indigenistas e partidos políticos entrassem com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709 junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), buscando garantir o direito fundamental à saúde dos povos indígenas durante a pandemia da Covid-19.
A decisão determinou à atual gestão do governo a instalação de barreiras sanitárias, criação de uma sala de situação, a retirada de invasores dos territórios, a prestação de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) a todos os indígenas, bem como a elaboração de um plano de enfrentamento à Covid-19, apresentado quase dois anos após a decisão da Suprema Corte.
No entanto, os indígenas seguem denunciando a omissão do governo federal no cumprimento das determinações. Sem a devida proteção aos territórios, as invasões seguem aumentando, inclusive com loteamento em Terras Indígenas. Por sua vez, as barreiras sanitárias foram medidas adotadas pelos próprios indígenas, na maioria dos casos sem apoio do governo.
Quanto à vacinação, a ministra Damares afirmou que “85% da população indígena foi vacinada”. Na avaliação do Cimi, essa contagem é distorcida, sob o critério equivocado de indígenas aldeados, ou seja, aqueles que vivem nos territórios demarcados, ignorando que seu próprio governo paralisou o processo de demarcações e os indígenas em contextos urbanos. “Na verdade, o governo vem promovendo um apagão de dados sobre a Covid-19 e não pode dar certeza da porcentagem apontada”, destacou a entidade em Nota de Repúdio divulgada no dia 28 de fevereiro.
Ao se referir à proteção da Amazônia e dos povos que vivem na floresta, Damares diz que “o presidente Bolsonaro está realizando o maior programa de regularização fundiária da história do Brasil”.
“A chamada ‘regularização fundiária’ é um estímulo ao desmatamento e à invasão dos territórios tradicionais, que cresceu 137% entre 2018 e 2020”, esclarece Dom Roque ao Conselho de Direitos Humanos. Trata-se, na verdade, de titulação privada de invasores de terras protegidas e de territórios indígenas, o que vem estimulando ainda mais o desmatamento na Amazônia e demais biomas.
É importante lembrar que em 2020 os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” aumentaram, em relação ao já alarmante número que havia sido registrado no primeiro ano do governo Bolsonaro. “Tal política é acompanhada de projetos de lei e regulamentações que afirmam o marco temporal”, denunciou Dom Roque na CDH49.
Segundo o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2020, publicado anualmente pelo Cimi, foram 263 casos do tipo registrados em 2020 – um aumento em relação a 2019, quando foram contabilizados 256 casos, e um acréscimo de 137% em relação a 2018, quando haviam sido identificados 111 casos. Este foi o quinto aumento consecutivo registrado nos casos do tipo, que em 2020 atingiram pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados.
Além de não demarcar nenhuma terra indígena, o governo Bolsonaro tem adotado um conjunto de medidas, projetos de lei, decretos e instruções normativas. Entre eles, proposições legislativas como o Projeto de Lei (PL) 191/2020 e o PL 490/2007 e medidas administrativas como a Instrução Normativa (IN) 09/2020, da Fundação Nacional do Índio (Funai), e a IN 01/2021, publicada conjuntamente entre a Funai e o Ibama. Também inclui nesta lista o decreto que estabelece o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal (Pró-Mape), que estimula a expansão da mineração sobre territórios indígenas, com sérias consequências para a saúde indígena.
“O Pró-Mape prevê ainda um incentivo ao garimpo na região amazônica, em um momento de evidente expansão da atividade sobre os territórios indígenas com seríssimas consequências para a saúde e a vida dos povos indígenas”, lista a nota do Cimi.
O discurso do Estado brasileiro na 49ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU “é uma versão descolada da realidade”, conclui o presidente do Cimi, “que não pode prosperar neste fórum multilateral de direitos humanos”.
Senhora Alta Comissária,
A atual política indigenista e ambiental do Brasil é totalmente diferente do que a ministra Damares Alves afirmou em seu discurso, durante o Seguimento de Alto Nível.
A vacinação dos povos indígenas é priorizada apenas nos territórios demarcados, contrastando com uma política de não demarcar nenhum território. Mais de 68 mil indígenas foram contaminados pela Covid-19, e pelo menos 1.288 morreram até fevereiro deste ano.
A chamada “regularização fundiária” é um estímulo ao desmatamento e à invasão dos territórios tradicionais, que cresceu 137% entre 2018 e 2020. Tal política é acompanhada de projetos de lei e regulamentação que afirmam o marco temporal.
O programa Pró-Mape estimula a expansão da mineração sobre territórios indígenas, com sérias consequências para a saúde indígena.
A versão descolada da realidade exposta não pode prosperar neste fórum multilateral de direitos humanos.
Muito obrigado.
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Presidente do Cimi denuncia política anti-indígena do governo na ONU e expõe contradições do discurso de Damares Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU