24 Janeiro 2022
Juntando-se ao debate sobre a compreensão teológica do episcopado, que aparece nos últimos posts, Dom Severino Dianich, grande teólogo e amigo querido, me enviou estas duas páginas intensas, nas quais reconstrói a história instrutiva da transformação da teologia e da prática do episcopado. Com interferências culturais, históricas e institucionais de grande importância, que permitem ler a evolução do conceito de “magistério”, com alguns detalhes muito interessantes. Eu as publico como uma contribuição para aprofundamento e releitura, expressando minha gratidão a um dos "mestres" indiscutíveis da teologia pós-conciliar italiana (ag).
O artigo é do teólogo e padre italiano Severino Dianich, cofundador e ex-presidente da Associação Teológica Italiana e professor da Faculdade Teológica de Florença, publicado por Come se non, blog de Andrea Grillo, 21-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
[Extraído de S. Dianich, Magistero in movimento. Il caso papa Francesco, Dehoniane, Bolonha 2016]
Com o século VII, chega ao seu ocaso a temporada dos grandes bispos pregadores da Igreja antiga, com o magistério de suas homilias e catequeses ligados à vivência das igrejas locais. O magistério vai se concentrando no papado, assumindo cada vez mais a tarefa, quase exclusivamente, de controlar a doutrina, com a formulação frequente de listas de proposições a serem condenadas.
Por outro lado, depois de Gregório Magno, não resta nenhum traço significativo da pregação ao povo e de um magistério homilético dos papas. O ponto de virada determinará a própria ideia do magistério que, de alguma forma, tomará forma independentemente da pregação ao povo. A tratadística teológica, tendo que recorrer ao magistério para as suas teses, não poderá mais citar homilias e discursos dos papas ao povo, mas apenas seus documentos formalmente emitidos pelo próprio papa ou pelos órgãos da Santa Sé, como atos imperativos da autoridade.
A pregação, por outro lado, agora confiada aos frades mendicantes e, mais tarde, aos religiosos de outras ordens, verá até o Concílio de Trento, mas com alguns arrastos até o começo do Vaticano II, o bispo com seu clero entre os ouvintes do sermão[1] mais do que entre os pregadores, testemunhando uma separação entre magistério e pregação.
Cúmplice dessa prática foi o abandono de fato, pelo papa e pela grande maioria dos bispos, do cuidado pastoral e da pregação direta ao povo. O pano de fundo teórico sobre o qual, no entanto, tal prática se movia à vontade era a divergência e, portanto, a prevaricação da potestas iurisdictionis sobre a potestas ordinis, esta última permanecendo quase irrelevante para o governo da igreja e restrita à esfera da celebração dos ritos sacramentais. Dante verá nisso um aspecto da própria corrupção da hierarquia de seu tempo: "O Evangelho, por ela, abandonado E os Doutores, às páginas usadas Das Decretais estão muitos se aplicando"[2].
Quando o Concílio de Trento decidirá restabelecer a pastoral do povo, irá impor aos titulares da jurisdição, isto é, aos bispos e párocos, a obrigação de pregar. Tratava-se simplesmente de restabelecer, para o bem do povo, o cumprimento de um dever à época amplamente desatendido, decorrente de um ofício cujos titulares usufruíam das rendas do correspondente benefício, a ponto de nada os impedir que o cumprissem "per alios", deduzindo de sua renda o necessário para pagar o pregador[3].
Tudo, portanto, se movia dentro da jurisdição e não tinha muito a ver com sua ordenação sacerdotal. Quanto à fonte de jurisdição, na época dominava a ideia que estava no papado: veja como a longa disputa do século XIII sobre o direito dos frades mendicantes de pregar comportasse na realidade uma questão mais grave, a da relação entre a jurisdição do papa e a dos bispos. Em relação a esta, de fato, iniciava-se uma disputa que continuará por séculos em torno do questionamento de ser ou não de iure divino[4].
A partir da eleição o papa tinha jurisdição sobre todas as igrejas com potestas para regular canonicamente o exercício da pregação e definir a doutrina a ser pregada, mas o próprio papa não parecia obrigado a pregar[5]. “Papa est nomen iurisdictionis” será um topos constantemente repetido, depois de Agostino Trionfo o ter cunhado no século XIII[6]. Para Walter Kasper foi “uma passagem da auctoritas à potestas, da traditio à discretio, da communicatio fidei à determinatio fidei”[7]. Além disso, com a progressiva rarefação dos concílios particulares, o magistério dos bispos praticamente sairia de cena como protagonista para se reduzir ao papel de executor da autoridade superior.
Uma orientação deste tipo será transmitida até ao Concílio Vaticano II que, ao definir o carácter sacramental do ministério episcopal, coloca em discussão toda uma estrutura teológica, porque o sacramento aparece aí como fonte de todo o triplex munus, não mais divisível em duas vertentes, das quais uma derivaria do sacramento da ordem e a outra da auctoritas jurisdicional. A questão do magistério e as formas com que é exercido não pode deixar de levar em conta uma virada tão importante.
Uma evolução do exercício do magistério, para dizer a verdade, já havia começado na prática, antes que a doutrina atingisse sua maturação. Os papas, de fato, com a práxis das cartas encíclicas, a partir da Ubi primum de Bento XIV de 1740, haviam começado a devolver um caráter pastoral ao seu ensinamento. Foi uma feliz retomada daquela que havia sido, nos primórdios da história cristã, o principal instrumento de comunicação entre as igrejas.
Das temáticas jurídico-pastorais de Bento XIV passa-se, com Gregório XVI, à preocupação de ter a solidariedade do povo cristão à sua incansável denúncia da cultura e da evolução política contemporânea, e com Leão XIII à elaboração de um ensinamento adequado da Igreja sobre a questão social, que estava agitando dramaticamente o mundo contemporâneo. Muitas vezes, porém, as encíclicas também serão usadas para condenar até mesmo posições teológicas julgadas heréticas ou periigosas, da Quanta cura de Pio IX à Humani generis de Pio XII, até a Veritatis splendor de 1993 e a Fides et ratio de 1998 de João Paulo II.
[1] O uso da pregação quaresmal ainda hoje existe na cúria romana: mas não é o papa que prega à comunidade de seus colaboradores, mas um pregador convidado ad hoc, que prega ao papa, aos bispos e aos outros curiais.
[2] D. Alighieri, A divina comédia, Paraíso IX, 133-135.
[3] Sessão V, Decretum II super lectione et praedicatione, 9-11 e Sessio XXIV, cân IV, em COeD 669 e 763.
[4] Cf. L.Villemin, Pouvoir d'ordre et pouvoir de jurisdition, Cerf, Paris 2000; A. Dusini, l decreto dogmatico sul sacramento dell’ordine sacro promulgato nella sessione XXIII del concilio di Trento, in Il concilio di Trento e la riforma tridentina. Atti del convegno storico internazionale 2-6 sett 1963, Roma 1965, II, 577-613. Sobre as possíveis consequências da transição de um quadro jurisdicional para um sacramental sobre a teologia do papado, ver S. Dianich, Per una teologia del papato, San Paolo, Cinisello B. 2010, 81-118.
[5] É significativo que o sermão improvisado de Pio IX em Sant'Andrea della Valle, em 1850, como o realizado em 1853, durante uma cerimônia no Cárcere Mamertino, tenha chamado a atenção, chegando a ser imortalizados em desenhos e pinturas da época.
[6] Agostino Trionfo, Summa de potestate ecclesiastica, Vincentius Accoltus, Romae 1582.
[7] W. Kasper, Teologia e Chiesa, Queriniana, Brescia 1989, 50.
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Evolução do episcopado e mudança do magistério. Artigo de Severino Dianich - Instituto Humanitas Unisinos - IHU