17 Dezembro 2021
Na Alemanha, para o novo Chanceler e seus ministros, estão previstas duas fórmulas de juramento: uma com a referência religiosa com que se pede a ajuda de Deus e outra sem. Scholz e alguns de seus ministros usaram esta segunda. Como julgar essa escolha? A opinião de um jornalista católico especialista em política, de uma teóloga protestante e de uma jovem do grupo dos Verde.
A reportagem é editada por Antonio Dall'Osto, publicada por Settimana News, 16-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Olaf Scholz, 63, é o novo Chanceler da Alemanha. Ele é o quarto chanceler social-democrata depois de Willy Brandt, Helmut Schmidt e Gerhard Schroeder. Ele vai liderar uma coalizão formada pela SPD, os Verdes e os Liberais. Assim termina, após 16 anos, a era de Angela Merkel. Scholz não pertence a nenhuma das duas confissões religiosas predominantes na Alemanha, a católica e a protestante. Na verdade, ele deixou a Igreja Evangélica em 2019 e, de acordo com algumas fontes, declarou-se expressamente ateu.
No momento da posse, ele prestou juramento perante os membros reunidos do Bundestag (parlamento) e do Bundesrat (Câmara dos Länder, ou seja, das regiões), deixando de fora - como é permitido - a referência religiosa "so wahr mir Gott helfe", "que Deus me ajude".
O texto do juramento é o seguinte: "Juro que dedicarei minhas forças ao bem do povo alemão, aumentarei sua prosperidade, protegê-lo-ei de danos, garantirei e defenderei a Lei fundamental e as leis federais, cumprirei meus deveres com consciência e renderei justiça a todos. (Que Deus me ajude)”.
Com ele também vários ministros renunciaram à referência a Deus, sem suscitar reações particulares de parte alguma. De fato, não é a primeira vez que isso acontece na tradição histórica da Alemanha.
“É um passo que merece o respeito também dos cristãos”, comentou o especialista em política e jornalista católico Andreas Püttmann, de Bonn, num artigo publicado no Domradiou, de Colônia, no mesmo dia do juramento, 8 de dezembro passado, que aqui reproduzimos.
“Nas duas opções que os membros do governo têm à disposição para prestar juramento com ou sem a afirmação religiosa ‘So wahr Gott helfe’ (‘Que Deus me ajude’) - escreve Püttmann - está expressa a liberdade e laicidade do estado constitucional democrático.
‘Não existe uma igreja do estado’, afirma o Artigo 137 da Constituição de Weimar de 1919, o estado e a igreja são separados. Ao mesmo tempo, porém, afirma-se que todas as pessoas são livres para professar suas próprias convicções religiosas e confiar-se publicamente à ajuda de Deus ao assumirem o cargo. Essa declaração pessoal merece - de uma forma ou de outra - respeito tanto de crentes como de não crentes. Já houve cristãos praticantes que não fizeram uso da afirmação religiosa em seu juramento, como o primeiro-ministro da Turíngia, Bodo Ramelow”.
No entanto, dos círculos religiosos praticantes não faltou pesar e descontentamento em relação aos membros do governo que acreditavam poder ‘abrir mão da ajuda de Deus’. Até agora, o único chanceler federal a omitir essa referência ao prestar juramento foi Gerhard Schröder (chanceler de 1998 a 2005), embora fosse membro da Igreja Protestante. Metade de seus ministros o seguiram, incluindo Oskar Lafontaine, Joschka Fischer e Jürgen Trittin.
“Os ateus já tomaram o leme”, ouviu-se exclamar nos nichos conservadores das Igrejas, “ainda que um governo vermelho-verde não faça disso uma tendência”.
Em 2005, apenas o Ministro da Justiça Zypries renunciou ao apelo religioso, enquanto, em 2009 e 2013, todos os ministros juraram novamente com a fórmula "Que Deus me ajude"; em 2018, apenas Olaf Scholz, Katarina Barley e Svenja Schulze renunciaram ao apelo.
"Visto desta forma - enfatiza Püttmann -, o fato de quase metade do novo governo federal - todos os verdes e três de oito social-democratas - ter escolhido o juramento não religioso pode ser entendido como uma expressão de uma secularização que avança, mas é provável que em breve a situação mude novamente se os democratas-cristãos forem participar do governo”.
“Mas – pergunta-se Püttmann - o que os crentes em Cristo esperam de seus políticos em uma sociedade que é apenas metade nominalmente cristã e com menos de 10% das pessoas que normalmente frequentam à missa dominical e um crescente pluralismo religioso de seus políticos? Até mesmo os crentes não podem desejar seriamente juramentos fruto de hipocrisia se apreciam as liberdades do artigo 4 da Constituição e sua consciência como a autoridade decisiva para a tomada de decisões ético-política”.
“No entanto, tendo às costas uma longa tradição histórica das ideologias que se desenvolveram na Europa, pode-se naturalmente pensar que uma ‘sociedade sem Deus’ esconde riscos sociais e políticos. Os estudos das ciências sociais mostraram que existem diferenças significativas entre as atitudes das pessoas próximas da Igreja e aquelas distantes e dos cidadãos sem afiliação confessional. E isso não só nas questões de bioética, de proteção da vida humana pré-natal, do casamento e da família até o número desejado e concreto de filhos, mas também no que se refere à obediência à lei, à disponibilidade de agir e ajudar, à confiança no próximo e uma tendência política moderada. Claro, as diferenças estão apenas na média.
Uma declaração que engloba todos não é uma declaração de cada um. Seria presunção se os crentes tratassem os não crentes com desconfiança moral, e até violando a imagem cristã que eles têm do homem e da doutrina social da Igreja. Tal convicção é idônea e inclinada a forjar alianças fora dos muros da Igreja, porque sua epistemologia não se funda apenas em verdades da revelação cristã, mas também em um pensamento sócio-filosófico baseado na natureza do homem, segundo o qual geralmente é possível haver um entendimento de todos sobre o que é bem, independentemente da própria fé. Segundo a concepção bíblica, até mesmo os ‘pagãos’ são participantes da ordem divina das coisas, porque “demonstram o quanto a Lei exige (...) está escrito em seus corações, como fica claro pelo testemunho da sua consciência (Rm 2,14)".
“Além disso - lembra Püttmann -, segundo a experiência histórica, o famoso ditado de Dostoiévski: ‘Se Deus não existe, tudo é permitido’, deve ser integrado à sua contraposição presunçosa e autorreferencial: ‘Se Deus está conosco, então tudo é permitido’ ou, em qualquer caso, para nós mais do que para outros. Quem não está ciente do abismo de uma sempre possível e também presente patologia da religião, ele como acusador dos ‘políticos sem Deus’, certamente nem pretende nem mesmo ouvi-los.
Por último, mas não menos importante, o escândalo dos abusos ou os negócios sujos disfarçados de parlamentares ‘democratas-cristãos’, mas também os ataques de supostos cristãos super zelosos à ordem constitucional dos Estados Unidos ou da Polônia deveriam ter ensinado aos cristãos realismo e a humildade: a profissão da fé expressa através das palavras não deve prejudicar a integridade moral, e a ostentada ortodoxia não deve contradizer o espírito do Evangelho”.
“A última pesquisa do Infratest, por exemplo - continua Püttmann - mostra que o pensamento moral em preto e branco não é diretamente aplicável à política: 37% dos partidários do SPD e do FDP e um em cada quatro dos verdes rejeitam a abolição da proibição de publicidade para os abortos. Como a população mundial está dividida entre 47% a favor e 40% contra a ‘liberalização’, pode-se compreender facilmente que, mesmo à direita do Centro, inclusive na área sindical, a Igreja já não tem mais o apoio de outrora.
Mas seria um erro restringir o critério dos ‘valores cristãos’ na política a um ou dois temas, como tem sido feito nos últimos anos pelo ambiente eclesial conservador, em particular sobre os temas do aborto e do casamento homoafetivo. São questões eminentemente cristãs também os problemas dos salários justos e das condições de trabalho dignas, da custódia da criação, da ajuda generosa aos refugiados, do empenho com os direitos humanos e da oposição a governos injustos em todo o mundo. E não devemos esquecer, além dos conteúdos da política, os comportamentos dos políticos que, na luta pelo poder e no seu modo de vida e também nas suas relações com a população, podem dar um testemunho mais ou menos cristão”.
“Vista assim a situação - continua Püttmann -, vale igualmente para o chanceler e os ministros, com o sem a referência a Deus, a afirmação bíblica de reconhecê-los ‘pelos seus frutos’ e ‘examinar tudo, mas conservar o que é bom’. Há tempo o comportamento eleitoral dos cidadãos próximos à Igreja tornou-se mais diferenciado, mesmo que ainda sejam amplamente representados na CDU / CSU e bastante reduzidos entre os eleitores da AfD (Alternative für Deutschland e da Esquerda - Die Linke). São mais apropriados, raciocinando em termos cristãos, atitudes de expectativa benevolente para com os governos mais distantes da Igreja e, além disso, onde é necessário, uma crítica construtiva. Ainda mais: na carta a Timóteo, o apóstolo das nações, Paulo, exorta: ‘Admoesto-te, pois, antes de tudo, que se façam deprecações, orações, intercessões, e ações de graças, por todos os homens; Pelos reis, e por todos os que estão em eminência, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade; Porque isto é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador’ (1 Tm2 1,3)”.
"Além disso, não se pode excluir que um ou outro dos ministros que hoje juraram ‘sem Deus’ possa sentir simpatia e gratidão por essa oração. Os tempos são efetivamente tão problemáticas para os sistemas políticos dignos do homem que - conclui Andreas Püttmann -, para as pessoas religiosas e ‘religiosamente desarmônicas’, existem motivos suficientes para buscar um terreno comum como ‘pessoas de boa vontade’".
A teóloga protestante Margot Käßmann, ex-bispa regional de Hanover e ex-presidente do Conselho da Igreja Evangélica Alemã (EKD), considera que seja "um pecado" que o chanceler Olaf Scholz (SPD) e muitos ministros do novo governo não tenham usado a fórmula "Que Deus me ajude" quando fizeram o juramento. Numa entrevista no Bild am Sonntag afirmou que “quem apela a Deus considera-se responsável perante uma autoridade superior”. A escolha de renunciar a isso, em sua opinião, é um sinal da diminuição da influência das Igrejas. "A realidade é simplesmente esta."
Na Alemanha, cabe ao Chanceler Federal e aos membros de seu gabinete decidir se prestar o juramento com a afirmação religiosa ou não. Pessoas religiosamente não afiliadas estão, entretanto, certas da intercessão dos outros. É positivo que as igrejas tenham cumprimentado o novo Chanceler Federal e tenham lhe desejado a bênção de Deus, continuou Käßmann.
Também é positivo que muitas comunidades cristãs na Alemanha incluam os novos líderes em suas orações de intercessão nos serviços religiosos. Eles podem ter certeza de que as comunidades cristãs os apoiarão. “Não vivemos mais em uma época em que quase todos os alemães eram membros de uma única Igreja” - afirmou Käßmann -, mas “o acordo de coalizão mostra que as Igrejas são respeitadas como parte da sociedade civil”. Portanto, as igrejas agora são chamadas a trazer suas convicções para a sociedade.
"Como cristã, estou convencida de que nossas convicções básicas sejam preciosas para este país”. “Trata-se de uma caridade que se traduz em solidariedade e atenção às pessoas marginalizadas e em atitude em pensar fora dos esquemas pré-estabelecidos, como nos diz o Evangelho”. Käßmann concluiu: "Justiça, paz e integridade da criação são uma missão bíblica e uma Palavra de ordem".
Karoline Otte (25) é a deputada mais jovem do parlamento. Ela entrou como membro da "Juventude Verde" (Grünen Jugend) na lista do estado federal da Baixa Saxônia após as eleições de setembro. Ela escolheu, já adulta, fazer parte da Igreja Protestante. Como cristã convicta, não gosta da referência a Deus no juramento do governo.
Em entrevista à Agência KNA, ela afirmou que a referência a Deus não tem importância no juramento. “Os ideais que eu vivo - declarou - são ideais cristãos. Tenho uma relação muito forte com a caridade. Isso é muito importante. É muito importante para mim encontrar primeiro as pessoas com amor e mostrar muita compreensão e escutar. Esses são valores fundamentais para mim. É precisamente esse aspecto da caridade que é crucial em minha política. A Igreja Protestante assumiu uma posição política a favor dos refugiados e da homossexualidade, e é importante que esses valores sejam defendidos mesmo por aqueles que não pertencem a ela. Para mim, essa é realmente uma parte crucial da minha personalidade”.
Quando questionada sobre o papel da fé no processo político, ela respondeu: “Acredito que não seja importante que alguém faça o juramento com referência a Deus ou não. Tive a impressão de que talvez essa referência deixasse de lado parte de nossa responsabilidade. Eu acredito que uma política baseada em valores pode ser realizada sem fazer referência a uma Igreja Cristã. Pode-se viver a empatia e transmitir uma visão cristã do mundo sem dizer: esta é a minha visão cristã do mundo. Acho que é simplesmente possível. A Igreja não pode se sustentar sozinha nesse aspecto. Deve funcionar também do lado de fora. Acredito que o importante seja fazer política com empatia. Em muitos pontos, eu não estava de acordo com Merkel, mas achei comovente quando ela disse em uma entrevista que fez política para as pessoas. Eu acho que é uma ótima atitude. No começo, não importa quem é essa pessoa que está do outro lado. Para mim, é suficiente que seja uma pessoa. É um ótimo ponto de partida. E penso que isso também possa ser desenvolvido e cultivado fora da fé cristã”.
No dia 21 de dezembro (terça-feira), às 10h, o Prof. Dr. Rodrigo Petronio, da Faap, apresentará a conferência "Depois de Deus". Debate sobre o livro de Peter Sloterdijk. A atividade integra o IHU ideias, que tem como objetivo fomentar o debate sobre temas da atualidade, abrangendo as áreas de atuação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
"Depois de Deus". Debate sobre o livro de Peter Sloterdijk
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Alemanha: Scholz e o juramento leigo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU