29 Novembro 2021
Em relação ao suicídio assistido, seria preciso falar de um fim pilotado, suavizado pelo progresso da medicina, mas que corre o risco de se tornar uma arte de morrer em vez de viver. A ambivalência desse progresso não pode ser negligenciada nem subestimada.
A opinião é de filósofa italiana Donatella Di Cesare, professora de Filosofia Teórica na Universidade de Roma “La Sapienza”, em artigo publicado em La Stampa, 26-11-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nas palavras de quem aplaude a primeira vez em que o suicídio assistido é admitido na Itália, entrevê-se algo de lúgubre e destoante, incompatível com o tema tratado: a morte de uma pessoa, de um ser humano, de “João”. Não se entende por que questões éticas tão delicadas e profundas devam ser reduzidas ao confronto entre fronts opostos ou entregues a uma escolha político-pragmática.
“Finalmente!”, e se ressalta a conquista. “Finalmente!”, e se elogia a liberdade recuperada. Mas que conquista? E, acima de tudo, que liberdade – um conceito tão abusado nestes tempos e tão equivocado?
Se a liberdade nada mais é do que a autonomia do sujeito, pronto para reivindicar o próprio direito exclusivo de escolha, sobre a própria esfera e a própria vida, então, certamente, a morte também se enquadra nessa escolha.
Por outro lado, o suicídio também é chamado de livre morte. Tabu na antiguidade, julgado como crime em algumas épocas, o suicídio irrompe na modernidade. Assim, hoje, não surpreende a posição dos hiperdomernistas, amantes da liberdade entendida como “autonomia do sujeito”. Espalha-se a ideia de que a morte não é mais um acontecimento. Pelo contrário, seria legítimo tomá-la nas próprias mãos. Em outras palavras: a minha morte é o meu projeto, ao qual eu dou forma e que eu não quero confiar a ninguém. Como se houvesse uma instância obscura que impõe o sofrimento inútil, um tenebroso tribunal do qual é lícito se libertar.
O suicídio assistido acaba se passando até por uma luta de libertação dos velhos preconceitos. Não é nada disso. Pelo contrário, a eutanásia institucionalizada e o suicídio assistido se inserem em uma inquietante “técnica do eu”, já denunciada por Michel Foucault, na qual o sujeito é libertador e libertado, jogador e aposta, algoz e vítima.
Em relação ao suicídio assistido, seria preciso falar de um fim pilotado, suavizado pelo progresso da medicina, mas que corre o risco de se tornar uma arte de morrer em vez de viver. A ambivalência desse progresso não pode ser negligenciada nem subestimada.
Quem pode deixar de condenar a obstinação terapêutica? E as terapias artificiais que forçam o doente a não morrer? Essa tecnicização extrema, que prolonga desmedidamente a fase final da vida, é o efeito daquele desejo de onipotência que caracteriza a época em que entramos. Qualquer limite se torna inaceitável – até, e mais ainda, o limite extremo da morte. Mas essa mesma onipotência também orienta o gesto eutanásico e a reivindicação paradoxal de inserir a própria morte em um programa calculável.
Temos certeza de que a política – como dizem alguns – está ausente aqui? Não é verdade, talvez, que o monstro da biopolítica soberana cochila precisamente na última palavra deixada a quem morre, naquele último gesto que encerra a vida? Será sua a responsabilidade – não de outros.
A mesma biopolítica que deixa morrer os náufragos no mar, aquelas escórias da globalização, responsáveis pela própria viagem arriscada, é a mesma que, com igual impiedade, nos faz crer que a escolha extrema do doente terminal, já uma vida de descarte, pode ser o seu cumprimento libertador.
Nesse sentido, também é preciso duvidar do fato de a Itália estar realmente atrás, como se afirma. Talvez aqui também as coisas sejam diferentes. É precisamente graças a uma tradição humanista, ainda sólida, que aqui a relação com a morte e com quem morre é diferente. Por isso, não seria aceitável que tudo se reduzisse, como em alguns países escandinavos, ao asséptico gesto administrativo.
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O direito de morrer e a arte de viver. Artigo de Donatella Di Cesare - Instituto Humanitas Unisinos - IHU