17 Novembro 2021
Em seu blog Come Se Non, 14-11-2021, o teólogo italiano Andrea Grillo escreve: “Como comentário ao post em que apresentei o belo livro de Silvio Barbaglia, ‘Gesù e il matrimonio’ [Jesus e o matrimônio], recebo este texto articulado de Mauro Pedrazzoli. Que chega a conclusões semelhantes às de Barbaglia, embora seguindo um caminho diferente e, em alguns aspectos, oposto. Pode ser útil para fomentar um debate sério sobre a delicada questão da raiz bíblica da teologia do matrimônio. Agradeço a M. Pedrazzoli pelo seu texto”.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
por Mauro Pedrazzoli
O aspecto escatológico, de “imagem tensional” e de projeto, presente no texto online de Grillo/Barbaglia, também emerge a partir de Gênesis 2,24: “O homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão...”; serão “basar ‘hd”, em hebraico, e “eis sarka mian”, em grego [cf. o caderno-inserção “Faremo un Umano. Verso una carne (sola)”, no número 1, de março de 2019, da revista Matrimonio; e também “Gesù non parla di famiglia, e nemmeno di matrimonio”, no número 462, de maio de 2019, da publicação mensal turinense Il Foglio.
Os LXX traduzem com “e se tornarão uma carne...”, com “eis” + o acusativo de carne. Também vale para o hebraico (que eu esqueci...) porque confio em Claus Westermann (“Genesis 1-11, Biblischer Kommentar”, Comentário Bíblico do Antigo Testamento, 800 páginas dedicadas [apenas] aos 11 primeiros capítulos do Gênesis), que sempre traduz do hebraico ao alemão com “zu einem Fleisch” (a preposição “zu” + o dativo com o artigo indeterminado simples, sem o “somente”, ou seja, “rumo (a) uma carne”, em um processo dinâmico e progressivo, mas não fusional. μία e ‘hd (o numeral ‘hd em hebraico é equivalente ao numeral grego μία) são apenas uma forma de dizer simplesmente “uma carne” (sem o “somente”), equivalente ao nosso artigo indefinido (ausente tanto na língua hebraica quanto grego, nas quais há apenas o definido).
[Há também uma dinâmica projetual para a costela, cuja tradução correta soa assim em 2,22: “...moldou a costela (que havia tirado do homem) rumo a uma mulher”, tanto em hebraico quanto nos LXX.]
Os dois verbos “deixará e se unirá” não podem ser entendidos como uma descrição de estruturas institucionais matrimoniais (Westermann, p. 317). De fato, 2,24 não coincide com a concepção das relações familiares patriarcais do antigo Israel, no qual, com o matrimônio, é mais a mulher do que o homem que se separa da própria família deixando os pais (como entre nós até recentemente).
Em Gênesis 2,24, o matrimônio está fora de cogitação, com os seus elementos familiares e socioeconômicos relativos à sua estipulação, determinada pela forte intervenção dos pais. Ou talvez o matrimônio esteja no pano de fundo, mas como um efeito/paralelismo de contraste: “Ao contrário das instituições vigentes, e em parte até mesmo em oposição a elas, enfatiza-se a força elementar do amor entre homem e mulher”; e da atração entre os sexos (como no Cântico dos Cânticos). “Não se fala aqui do matrimônio como instituição para a continuação da espécie, mas sim da comunhão entre homem e mulher como tais” (Westermann, p. 318).
Esse também é o caso da citação do Gênesis que Jesus faz no Evangelho de Marcos, se considerarmos apenas Mc 10,6-9, sem os acréscimos e as premissas secundárias posteriores.
Quanto à conclusão (aqui termina a passagem original em Mc 10,9): “O que Deus uniu, o homem não separe”, Rudolf Pesch (“Il vangelo di Marco” [O Evangelho de Marcos], segunda parte, Bréscia: Paideia, 1982, pp. 187-198, para toda a seção) sublinha que se trata de uma advertência sapiencial, não de um dogma. O Jesus de Marcos interpreta (...“corretamente”) as palavras do Gênesis sem se referir ao matrimônio e ao seu suposto vínculo indissolúvel.
Portanto, a supracitada máxima conclusiva de valor exortativo, oportunamente introduzida por “ουν” (“portanto”, Pesch, p. 195), pretende conservar o máximo possível a união amorosa do homem e da mulher, e fazê-la crescer rumo a uma carne. O Homem (com as suas instituições, até mesmo religiosas; aqui, por Homem, não se entende o cônjuge singular (cônjuges) que volta a se casar) não deve interferir, impedir, interromper ou destruir essa relação de amor, fundada no Gênesis e elemento constitutivo do projeto criativo divino: é isso que Deus uniu e continua reunindo (portanto, em termos modernos, também as coabitações).
Depois, a cena continua, após a entrada novamente “na casa”, com mais elucidações; essa é a técnica típica da comunidade primitiva para inserir as suas interpretações, deduções, ampliações... Trata-se de uma criação da Igreja antiga (Pesch, p. 189), de comunidades primitivas que colocaram no início a controvérsia sobre o repúdio e acrescentaram no fim a acusação de adultério para os divorciados na cena final em casa. Foi assim que a “armadilha” entrou em ação: as palavras centrais de Jesus também foram entendidas “incorretamente” em sentido matrimonial, razão pela qual aquilo que Deus uniu seria o matrimônio, e não tanto a relação de amor.
Em particular, 10,11-12 (acrescento eu) é uma inserção pesada do Marcos II, ou seja, do revisor romano do evangelho (ele pense em latim; por exemplo, “speculator” em 6,27 para a guarda de Herodes que decapita o Batista, e outras passagens: na prática, uma segunda edição, revisada e corrigida; cf. meu artigo-diálogo “La buona novella deformata”, no número 482, de setembro de 2021, do Il Foglio, de Turim), que entra duramente, de maneira intransigente, com o seco adultério, tanto para o marido quanto para a mulher (em ambiente romano, em que até a mulher podia se divorciar); algo estranho a Jesus (Roma começou a causar danos desde muito cedo).
Marcos II também se deu conta de uma “falta grave” no escrito de Marcos I: com a única exceção de 1,4 (mas em relação ao Batista, com a afesis batismal de todos os pecados sem a acusação), o termo “pecado” (“amartia”; e também o verbo “pecar”!) nunca aparecia no Evangelho: uma lacuna pesada para ele (em comparação com as 200 vezes em que aparecem cumulativamente no Novo Testamento). Então, ele acrescentou Mc 1,5 com a “confissão-acusação dos pecados” (sic) de todo o povo e, sobretudo, inseriu-o de modo feio e acrobático no relato do paralítico em Mc 2,1-12, em que originalmente estava escrita apenas a sua cura seca e linear (saltando do “disse ao paralítico” do v. 5 ao “levanta-te, toma a tua cama...” do atual v. 11); ele inseriu aí perigosamente (mesmo que talvez não fosse a sua intenção, insinua-se no leitor o vínculo pecado-doença) o perdão dos “seus pecados”: para um pobre paralítico, é algo de péssimo gosto!
Mas, quando retomou o relato original, ele se desmascarou com a feia e cacofônica sutura do v. 11: “Disse ao paralítico: ‘Eu te digo’” (graças a Deus as suas suturas foram muitas vezes... desajeitadas, razão pela qual conseguimos reconhecê-las).
Depois, se levarmos em conta que, no Evangelho de Marcos, falta também a palavra “lei”, nomos, evidencia-se que o férreo binômio Lei-Pecado é estranho ao Marcos original e quase certamente também a Jesus! (No nosso caso, o binômio indissolubilidade do matrimônio – pecado das segundas bodas, com a respectiva exclusão da Eucaristia.)
Isso põe a palavra “fim” à indissolubilidade legalista, até também este fiel da segunda geração (o romano Marcos II) é um cristão como nós, não mais alto do que nós; por isso podemos eventualmente... dissociar-nos dele: “Nós também somos Igreja” e podemos nos expressar, ainda que de uma forma diferente e às vezes oposta.
Certamente, o catolicismo italiano (que considera todas as palavras colocadas na boca de Jesus como realmente pronunciadas por ele mesmo, tout court, mesmo as do Cristo joanino) não está pronto para essa “delicadíssima” seleção dentro dos Evangelhos; e assim continuamos lendo nas nossas liturgias do século XXI, por exemplo, a história dos porcos (outra “pérola” do Marcos II em 5,9-13, fazendo afogar 2.000 pobres suínos após a “transferência” dos demônios), e também as lendárias dos Atos: por exemplo, a morte fulminante de Ananias e Safira, e de Pedro que, passando, cura os doentes com a sua própria sombra.
Além disso, Marcos II também fez das suas com a invenção machista dos 12 (depois transcritos de igual para igual por Mateus e Lucas), ausentes historicamente no ministério de Jesus! Na passagem central de Mc 3,13-17 (da qual derivam, em cascata, todos os outros, tanto em Marcos quanto em Mateus e Lucas), originalmente havia apenas três “íntimos” (Pedro, Tiago e João, enfatizados pela atribuição dos seus apelidos); a inserção dos outros nove no círculo dos supostos 12 é uma criação lendária do Marcos II: devemos contar isso aos clericais-machistas!
As minhas “incursões exegéticas” (revolucionárias no campo católico, mas claras e lineares, por exemplo, em Wellhausen e Emanuel Hirsch) não são “descontroladas”, como alguns me criticaram (por exemplo, alguns prelados turinenses), mas sim fundamentadas no método histórico-crítico. É como quando Wellhausen propôs a teoria documental (quatro fontes) para o Pentateuco, inicialmente contestada por aqueles que (incluindo o magistério com os seus anátemas) queriam defender a todo o custo a única autoridade mosaica.
Assim como falamos normalmente de tradição-documento javista e sacerdotal (do primeiro e segundo Isaías), por que não podemos fazer o mesmo com Marcos I e II?
Se, portanto, aquilo que Deus une é a relação de amor rumo a uma carne (“in carnem unam”, como a Nova Vulgata traduz corretamente Gn 2,24), as altas esferas hierárquicas (não me refiro ao Papa Francisco, no máximo aos seus “opositores”) não deveriam interferir nas relações de casal, pois as eventuais acusações contra coabitantes e recasados iriam contra a advertência de Jesus: ou seja, em um sentido diametralmente oposto à doutrina tradicional!
Não há a necessidade de salvaguardar um vínculo de indissolubilidade (Jesus nunca falou nem de família nem de matrimônio): há a necessidade de salvar o amor do homem e da mulher – incluindo, obviamente, na medida do possível, o do primeiro matrimônio (sem desvios divorcistas à la americana).
A vida constrói o amor de casal!
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A vida constrói o amor de casal. Artigo de Mauro Pedrazzoli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU