27 Setembro 2021
Poucos dias atrás, eu e alguns outros jornalistas estávamos jogando conversa fora quando um veterano repórter, que não é especialista em Vaticano, fez uma pergunta muito instigante. Será que algum de nós conseguia pensar em algum líder global de recente memória, fora de um regime totalitário, que tenha recebido uma cobertura da imprensa tão adoradora e consistente quanto o Papa Francisco?
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 25-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nenhum de nós conseguia... Obama, talvez no início, mas não tão constantemente por um longo período de tempo.
Desde o início, o Papa Francisco teve uma narrativa “matadora”. Ele é visto como um dissidente que está sacudindo uma instituição rígida, um progressista que está desafiando um establishment conservador e um líder espontâneo e direto que está em um dos ambientes mais supercautelosos do mundo no Vaticano.
Mais do que qualquer outra coisa, essa narrativa funciona porque vem com uma tensão dramática embutida: Francisco também é visto como um herói cercado por vilões e inimigos, uma perniciosa “velha guarda” determinada a derrubá-lo.
Francisco recentemente deu um novo impulso a essa parte da narrativa, quando o Vaticano postou uma transcrição da sua conversa com outros jesuítas no fim da sua viagem entre os dias 2 e 5 de setembro à Hungria e Eslováquia.
Segundo a reportagem, Francisco disse aos seus coirmãos eslovacos que, quando foi internado para uma cirurgia de cólon durante o verão italiano, “alguns me queriam morto” e que alguns prelados até se reuniram na época para organizar um conclave, o evento em que o seu sucessor será eleito.
Esse pano de fundo explica por que os comentários na quarta-feira por parte do cardeal italiano Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano e principal assessor do Papa Francisco, se tornaram o tema mais candente do dia nos blogs e na mídia italianos.
De fato, muitos comentaristas estão sugerindo que Parolin desmentiu o chefe, jogando um balde de água fria sobre o aspecto dos “inimigos que estão lá fora para pegá-lo” da narrativa de Francisco.
Parolin foi questionado sobre as palavras do papa na Eslováquia, às margens de uma cúpula do Partido Popular Europeu em Roma, na qual Parolin foi convidado a falar sobre a visão fundadora da União Europeia.
“O papa provavelmente tem informações que eu não tenho”, disse Parolin como resposta. “Sinceramente, eu não havia percebido esse clima”, acrescentou ele, referindo-se ao sentimento antipapal que Francisco descreveu.
“Não tendo evidências em mãos, acho que talvez fosse algo que preocupava poucas pessoas, que algumas pessoas tinham na cabeça”, disse Parolin. “O papa provavelmente fez essas declarações porque tem informações que eu não recebi.”
Parolin também disse que não tinha conhecimento de nenhuma reunião entre prelados para preparar o próximo conclave.
Então, o grande debate do momento é: o que fazer com tudo isso?
Escrevendo na versão italiana do Huffington Post, a veterana jornalista italiana e observadora do Vaticano Maria Antonietta Calabrò argumentou que muito deve ser feito, chamando a correção pública de Parolin do papa de “inédita”.
Ela afirmou que “nunca se havia ouvido de memória” tal correção pública do papa, acrescentando que isso ocorre no fim de um verão vaticano “infectado com venenos” – uma referência, presumivelmente, ao julgamento de fraude e corrupção em andamento, envolvendo, entre outros, o cardeal Angelo Becciu, ex-vice de Parolin.
O influente blog Il Sismografo publicou um editorial na quinta-feira, após os comentários de Parolin, basicamente lançando um desafio ao Papa Francisco: ou apresente uma reclamação formal ao tribunal vaticano sobre esses prelados que supostamente estão conspirando contra o papa, citando seus nomes, ou admita publicamente que você inventou essa história.
Outros estão menos inclinados a enlouquecer com a resposta de Parolin.
“Como sempre, quando o Vaticano está no meio, tende-se a interpretar e a reinterpretar cada aspa em busca de algum diferencial”, escreveu Francesco Boezi, que cobre o Vaticano para o Il Giornale.
“Parolin, porém, não disse nada que contrasta com a versão do Papa Francisco. Em termos muito banais, é possível, e até normal, que o papa saiba mais do que o secretário de Estado. Porque a Igreja não é uma democracia e nem todos os níveis são iguais.”
“Não há divisões entre as esferas mais altas, portanto”, concluiu Boezi.
Uma leitura ainda mais simples dos eventos seria que o papa estava falando ironicamente com seus companheiros jesuítas e não pretendia que o que ele disse fosse interpretado literalmente. E está sendo feita uma tempestade em copo d’água em torno disso – incluindo, neste caso, por parte de Parolin, que deveria apenas ter descartado a questão, em vez de parecer levá-la a sério.
Se você quiser a leitura ultracínica, ela diria que, mesmo que ninguém mais esteja se preparando para o próximo conclave, Parolin está. Essa teoria sustenta que Parolin, 66 anos de idade, está enviando um sinal de que continuaria com a agenda de Francisco, mas com mais contenção e sobriedade, além de menos drama autoprovocado – todas as qualidades calculadas para atrair cardeais que podem pensar que as políticas de Francisco são geralmente louváveis, mas a sua personalidade é um pouco forte demais às vezes.
Tudo isso ilustra aquilo que torna o Vaticano tão divertido: praticamente tudo está aberto a interpretações concorrentes, e quase não é possível se estar errado, porque a resposta certa só se torna clara com o passar do tempo – e o tempo, é claro, também apagará da memória aquilo pelo qual estávamos lutando, acima de tudo.
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Os debates em torno da “correção” do Papa Francisco pelo cardeal Parolin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU