“A sinodalidade tem que ser praticada diariamente por uma massa crítica para que uma verdadeira mudança aconteça e possa ser dito verdadeiramente que nossa Igreja é verdadeiramente sinodal. Isso, acima de tudo, é o que precisa ser promovido. Mas, é claro, primeiro é necessário mostrar seu significado e sua relevância evangélica. Para isso, pode ajudar o testemunho de quem, a partir do Concílio e da sua recepção latino-americana, o viveu com assiduidade como graça transcendente. Nós a vivemos e continuamos a vivenciá-la e podemos testemunhar que esta forma de convivência, de aproximação nos enriquece, nos humaniza, porque, como temos insistido, para nós cristãos sermos humanos é sermos irmãos de todos”, escreve Pedro Trigo, jesuíta espanhol, nacionalizado venezuelano, professor na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Andrés Bello, em Caracas. É pesquisador do Centro Gumilla para estudos sociopolíticos da Companhia de Jesus.
Primeiramente é necessário compreender o que é uma Igreja sinodal, para que, tendo isso claro e vendo o que é o que nos pede e desejando-o, possamos encaminhar para ela, mudando em nós tudo o que víamos que é necessário mudar em nosso modo de viver o cristianismo e desde esta mudança pessoal, mudar o que em nossos trabalhos não é bom condutor deste caminho. Comecemos pelo princípio, isso é, explicar o que é sinodalidade.
Por que temos que começar por aqui? Porque o cristianismo não é uma religião no sentido de um setor específico da realidade separado dos demais, templos-sacerdotes-sacrifícios [1], ainda que com influência sobre o resto. Jesus realizou sua missão na vida e seus seguidores também, ainda que esta vida tenha expressões simbólicas como o batismo e a Ceia do Senhor. E assim também o teorizou: ele veio, diz, para que tivéssemos vida e essa vida em abundância (Jo 10, 10). Mais ainda, disse que ele era a vida (Jo 14, 6) e que havia vindo ao mundo para nos comunicar essa vida. Ele era o plenamente humano e veio para nos entregar essa humanidade: a humanidade fraterna do Filho único de Deus, para que também nós possamos viver a fraternidade das filhas e filhos de Deus e fôssemos assim plenamente humanos.
Tratam-se de seres humanos, plenamente humanos, vamos começar pelo que significa sinodalidade para os seres humanos. Depois especificaremos o modo cristão de viver humanamente.
Sinodalidade vem do grego: “σύν” (sin) significa “com” e “ὁδός” (odos) “caminho”; portanto, sinodalidade é a vida entendia como caminhar com outros, caminhar juntos, porém antes de tudo, caminhar. Este modo de viver pressupõe que a vida é caminho e não instalação, nem em si mesmo e nos seus, nem em sua querência, nem na ordem estabelecida, nem em uma instituição sacralizada.
Porém, diz, ademais que esse caminho, para que chegue realmente à meta, isso é, a nos constituir como seres com qualidade humana, não realiza cada um separadamente, mas sim que o realizamos juntos. Se não realizarmos juntos, poderemos chegar a adquirir grandes qualidades, riquezas, poder e influência, mas teremos nos desumanizados. Ter grandes êxitos não equivale, de modo algum, a nos humanizarmos.
Pois bem, na explicação cristã deste caminhar juntos, trata-se concretamente de caminharmos juntos, como filhos e filhas de Deus no Filho e como irmãs e irmãos no Irmão universal.
A existência humana é caminho, antes de tudo, porque não estamos feitos e ademais porque a realidade da qual fazemos parte está aberta, em processo. Estamos humanamente abertos. Nossos atos vão nos edificando e, portanto, nos definindo. Porém, nenhum ato, nenhuma decisão, nos totaliza. Sempre podemos reverter ou mudar o rumo. O modo de ser humano é ser sendo [2]. O que sempre temos para nos edificar, porque quando não fazemos, nos redesenhamos, indica que nós, seres humanos, estamos em caminhos de nos fazermos.
Assim, podemos caminhar em várias direções: com nossos atos podemos nos humanizar ou desumanizar. Os atos humanos são ambivalentes. Isso é, que nosso caminho pode nos levar à perdição ou à salvação, a nos realizarmos como humanos ou nos desumanizarmos. Temos, portanto, que definir o nosso caminho.
Entretanto, o problema é que o que entende a direção dominante desta figura histórica pelo caminho humano desejável é o que conduz ao êxito, que não coincide de nenhum modo com a realização como seres humanos completos.
O problema era igual nos tempos de Jesus e o foi abordado a por ele reiteradamente. Para os apóstolos, via-se como enviado de Deus, seu poder deveria se canalizar em derrotar os romanos e os judeus colaboracionistas e instaurar o reino invencível dos santos de Deus (Mt 16, 21-22; Hc 1, 6; Lc 24, 19-21). Para Jesus, por outro lado, se impor era incompatível com sua humanidade e com a humanização dos seres humanos (Jo 18, 36-37; Mc 10, 42-45).
O que fez, por outro lado, foi sair de sua casa, deixar sua família e seu trabalho, e viver no caminho (“O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”, Lc 9, 58). Pôde viver no caminho sem angústia nem depressão, pois viveu com todos, inclusive com os que também viviam no caminho: os sem-teto. As relações foram a sua querência. Relações de entrega de si, horizontais, gratuitas e abertas. Porém, se deu por inteiro, e também recebeu: todos os dias recebia a comida e o abrigo, ainda que houvesse dias em que não comeu e não dormiu vendo as estrelas. Porque o dar e receber era em total liberdade, como expressão de amor. Com esse modo de caminhar juntos instaurou a reciprocidade de dons como alternativa ao romano ‘do ut des’, te dou para que me dês, que imperava e segue sendo o proposto por ordem estabelecida. Nisto consiste a sinodalidade que praticou e propôs Jesus.
O problema é que não coincidem as “cualidades” (conhecimentos) humanas com a “calidad” (qualidade) humana. Se nossos atos são encaminhados à qualificação para ter melhor cargo e mais riqueza e poder, e concretamente esta é a proposta da ordem estabelecida, quanto mais nos empenhamos neste caminho, ao ignorar o que conduz à qualidade humana, de fato, a estamos sacrificando. O problema é que na linha dominante da cultura ocidental isto esteve encoberto, porque a meta humana esteve absorvida pela aquisição das qualidades que são funcionais ao sistema, desconhecendo qualquer outro levantamento. Essas qualidades são as que são anunciadas em todos os lugares e são o objetivo muito explícito da educação formal [3]. Portanto, muitos estão em vias de adquirir excelência em alguma dessas áreas e manter e, se possível, aumentar a posição adquirida, o que não é fácil devido à concorrência universal.
Quem vive assim não vive a caminho da sua edificação como ser humano, mas como um distinto membro da sua cultura. Mas em nenhuma cultura há lugar para um ser humano com qualidade humana, porque em todas as culturas, pelo menos desde que existe a divisão do trabalho, existem princípios de hierarquia e exclusão: há o de cima e o de baixo, o de dentro e o de fora. E as pessoas se tornam assim através da relação de entrega horizontal, livre e aberta de nós mesmos e sem excluir ninguém [4]. A respeitividade positiva está ancorada na constituição pessoal [5]. Não me afirmo como pessoa, se no ato de me afirmar não afirmo os outros [7].
Mas nenhuma cultura é estruturada com base nesse tipo de relacionamento. Porém, como somos seres culturais, o caminho da humanização não pode ser feito senão dentro de cada cultura, transformando de dentro o que impede a humanização. Uma posição que tem grandes custos. Portanto, é necessário ter uma decisão profunda, uma autêntica fome de humanidade, para persistir nesse caminho. É por isso que Jesus nos diz: espaçosa é a estrada que conduz à perdição e muitos entram por ela; mas quão estreito é o caminho que conduz à vida e quão poucos são os que o encontram (Mt 7, 13-14).
Então, estamos a caminho porque estamos sempre no processo de nos fazermos. Mas somos tão abertos que nossas ações podem nos edificar como seres humanos ou nos desumanizar. Portanto, temos que escolher o caminho que leva à humanização e não aquele que nos desumaniza. Mas isto não é tão fácil porque a ordem instituída divulga por todos os meios o caminho da qualificação para obter o sucesso, sacrificando, porém, a realização autenticamente humana que se dá, insistimos, na entrega nós mesmos, livre, horizontal, aberta e sem excluir ninguém.
Portanto, o caminho da humanização é um caminho feito com os outros: recebendo a sua entrega pessoal [7] e doando-se.
É verdade que há e sempre haverá diferenças de capacidade, poder, posses e influência. Mas essas diferenças não podem se tornar uma fonte de hierarquia e discriminação. No fundo, todos nós somos seres dignos e temos que nos tratar assim, o que implica que as diferenças tenham de se traduzir num serviço mais qualificado e não em nos acreditarmos superiores aos outros e discriminá-los e mesmo explorá-los e excluí-los.
Assim, “caminhar com” não significa apenas que todos habitamos o mesmo espaço ao mesmo tempo, e nem mesmo que estamos sujeitos às mesmas leis e ao mesmo pacto social. Tampouco significa que um líder, uma organização ou um projeto nos unifica em torno de si mesmo. Caminhar juntos, como propõe Jesus de Nazaré, não é segui-lo, deixando de ser você mesmo e tornando-se uma massa uniforme ao seu redor, para que todos digam, pensem e sintam o mesmo, isto é, as instruções que ele lhes dá.
Há certeza histórica de que esta não foi a liderança de Jesus. Ele falou no templo perante milhares de judeus e os soldados observando da torre Antonia. Se Jesus tivesse galvanizado as pessoas em uma unidade compacta em torno de si, entoando seus gestos e slogans, eles o teriam matado ali mesmo, porque aquele enorme entusiasmo que ele provocou era um perigo latente muito sério para a segurança. Mas eles não fizeram nada porque Jesus não deu o que pensar: isto é, slogans; era algo para se pensar: ele queria que as pessoas pensassem sobre o que ele propunha para que pudessem tomar decisões por conta própria. Jesus não massificou as pessoas, mas as personalizou.
Portanto, caminhar juntos não é se tornar uma massa uniforme. Significa concretamente que vivemos abertos a todos, com respeitosa positiva, que unimos nossos ativos para formar corpos sociais personalizados e que tratamos com todos fraternalmente: nossos pais como pais irmãos, nossas esposas como esposas irmãs, nossos filhos como filhos irmãos, aos nossos colegas e amigos como irmãos e amigos, aos estranhos como irmãos desconhecidos e aos nossos adversários como irmãos adversários.
Acho que é claro o quão decisivo é caminhar e caminhar pelo caminho da humanização e caminhar juntos. Mas também é claro que este não é o caminho proposto pela ordem estabelecida, e por isso a escolha deste caminho tem custos permanentes, que temos de estar dispostos a pagar, se queremos ser verdadeiramente humanos.
Porém, para nós cristãos o sentido do caminho tem uma explicação maior: trata-se de caminhar juntos porque Jesus nos uniu em seu coração. Para entender completamente o que isso significa, temos que voltar ao evento em que isso se manifestou. É sobre o batismo de Jesus. João batizou Jesus. O batismo de João foi de penitência em vista do último e último enviado de Deus, que segundo ele viria para julgar a cada um. Visto que Deus não queria condenar ninguém, Ele enviou João na frente para converter a todos. E, de fato, a maioria das pessoas se reuniu para ser batizada. O rito consistia em João estar no rio onde havia bastante água (Jo 3, 23). As pessoas estavam na fila e aquele que o tocasse iria adiante até João, confessaria seus pecados e João o submergiria no rio e então o levantaria novamente. Quem se “afogou” foi o pecador e quem saiu da água foi quem confessou seus pecados e estava decidido a viver como Deus pretendia.
Bem, Jesus entrou na fila e quando chegou sua vez, ele confessou seus pecados com mais dor do que todos os pecadores da história juntos. Ele os confessou na primeira pessoa do plural porque nos colocou a todos em seu coração e em seu centro estava seu Pai. Ao sair do rio, diz o Evangelho, ele viu como o céu se abria [8], ou seja, como seu Pai havia aceitado sua confissão e perdoado o Irmão universal. Assim, enquanto Jesus não nos expulsar do seu coração, estamos perdoados e ele não nos expulsará porque preferiu morrer como Irmão a seguir na vida prescindindo de nós. Por isso, quando o Pai o recriou no seio materno, recriou o Irmão: nele já estamos verdadeiramente na comunidade divina [9].
Se me aceito no coração de Jesus, vivo, ando, sigo-o e caminho com os outros, que são todos, que estão comigo no coração de Jesus. Se excluo alguém, excluo-me de seu coração, porque ele não vai jogar fora aquele de quem não gosto.
Um cristão consistente caminha a partir do coração de Jesus, ou seja, como seu irmão e, portanto, seguindo-o. E por isso caminha com todos os que considera irmãs e irmãos em Cristo, que nos une. Por isso, para um cristão coerente, caminhar com todos é uma missão sagrada, porque sua condição de irmão de todos é sagrada [10]. Já explicamos que esta relação fraterna é diversificada: é diferente ser irmão de um cristão do que ser irmão da minha mulher, do que ser irmão de um estrangeiro ou de um adversário. Mas em todos os casos o absoluto é ser irmão e a outra qualificação deve ser remodelada para ser um bom condutor dessa condição fraterna.
Como vemos, a sinodalidade para um cristão é uma característica essencial. Se ele não anda com todos, ele não é cristão. Mas também para ser assim, ele deve andar como um irmão em Cristo, o que é diferente de um irmão de sangue ou de complacência ou de interesse. É especificamente sobre a irmandade das filhas e filhos de Deus em Jesus, que é o único Filho de Deus e o Irmão universal. E, portanto, de uma fraternidade que se doa no seu seguimento e com o seu mesmo Espírito.
Assim, a primeira referência à fraternidade cristã é que ela é universal. A razão é que Jesus carrega todos nós em seu coração. Trata-se de caminhar para uma verdadeira família de povos, na qual todos somos autenticamente irmãos e como tal nos ajudamos numa sinergia constante e plena de emulação. Assim, a sinodalidade supõe sinergia, confluência de esforços. E a sinergia para uma meta que não existe (a família dos povos), mas que não é algo caprichoso, mas envolve fazer justiça à realidade, fazendo-a doar-se sobremaneira. Assim, é um caminho conjunto, no qual todos colocam o seu melhor, construtivo, criativo.
Mas como não se constrói a partir do nada, mas a partir de uma situação, de uma institucionalidade que nega absolutamente a fraternidade, pois só concebe indivíduos que se relacionem com quem querem, para o que querem e pelo tempo que desejam, esta caminhada deve superar obstáculos formidáveis. Requer, nas palavras da Comissão Internacional Teológica, “a passagem pascal do ‘eu’ entendida de forma individualista ao ‘nós’ eclesial, no qual cada ‘eu’, estando revestido de Cristo (cf. Gl 2, 20), vive e caminha com os irmãos e as irmãs como sujeito responsável e ativo na missão única do Povo de Deus”. “Sem a conversão do coração e da mente, e sem uma formação ascética no acolhimento e na escuta recíproca, os mecanismos externos de comunhão seriam de pouca utilidade, podendo mesmo transformar-se em simples máscaras sem coração e sem rosto” [11].
Agora, a partir dessa perspectiva cristã de fraternidade universal, que papel específico a fraternidade desempenha entre os cristãos?
Ser cristão é seguir explicitamente Jesus de Nazaré como discípulo enviado a prosseguir sua missão na comunidade de irmãs e irmãos que tem sua origem nos chamados pelo próprio Jesus, aos quais apareceu ressuscitado. Nós também escutamos sua mensagem, cremos nele nos unimos ao grupo para viver nele como irmãs e irmãos em Cristo, escutando sua Palavra nos santos evangelhos e o recebendo na Ceia do Senhor para que, vivendo dele, possamos dar a outros a vida que ele nos dá. Portanto, caminhar juntos é, para nós, escutar junto o Mestre nos santos evangelhos para poder fazer em nossa situação o equivalente do que ele fez na sua, e participarmos juntos dele na Ceia do Senhor (1 Cor, 11, 20) para formar o Corpo de Cristo, no qual cada um contribui com o dom recebido.
Esta comunidade de irmãs e irmãos é a sua visibilidade na história e aquela que prossegue explicitamente a sua missão. É por isso que não pode ser uma comunidade egocêntrica e proselitista. Ela precisa viver encarnada, como Jesus de Nazaré, em sua situação e encarnado desde baixo; isso é, ela deve ser irmã de todos, desde os pobres e sem excluir ninguém. Em outras palavras, a sinodalidade dentro da comunidade cristã deve ser expressa como fraternidade universal. A comunidade não se instala: tem que seguir Jesus, tem que viver no caminho e não pode caminhar para vencer, mas para se entregar como seu Mestre e com o seu Espírito.
Por que neste caminho procuramos caminhar juntos? As razões são múltiplas e convergentes. Mas, acima de tudo, porque nosso objetivo e, portanto, nosso horizonte e nosso programa é fazer deste mundo sem apoio a única família das filhas e filhos de Deus em Jesus de Nazaré, Filho único e Irmão universal. Esta é a sua missão, segundo o quarto Evangelho: Jesus “veio para reunir numa (ou seja, uma só família) os filhos de Deus que estavam dispersos” (Jo 11, 52). Obviamente, essa meta não pode ser reduzida a uma proclamação, mesmo que seja completamente convencida. Se o modo de produção determina o produto, isso significa que só aqueles que marcham juntos podem realmente propor fazer da humanidade uma família de povos. Por isso, a primeira coisa que Jesus fez foi reunir um grupo de discípulos (Jo 1, 35-51; Mc 1, 16, 20), porque só um grupo verdadeiramente fraterno pode convocar a família das filhas e filhos de Deus e para por isso mesmo na missão pediu-lhes que fossem de dois em dois (Mc 6,7; Lc 10,1). Marchando juntos seria assim o embrião daquele povo fraterno.
Hoje, este objetivo é especialmente relevante porque o mundo não está indo nesta direção, mas na direção oposta de cada um buscando seu lucro privado ignorando o bem comum. É por isso que o Papa insiste: “O mundo em que vivemos, e no qual somos chamados a amar e a servir também nas suas contradições, exige da Igreja o reforço das sinergias em todos os âmbitos da sua missão. O caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio” [12].
É verdade que na Igreja do segundo milênio, pelo menos até o Concílio Vaticano II, não havia sinodalidade: a instituição eclesiástica se sentia titular única da missão de Cristo e não a entendia genuinamente como propagadora da irmandade das filhas e filhos de Deus, mas antes que a instituição eclesiástica se estendesse a todos os povos.
Obviamente, o caminho da sinodalidade, caminhando juntos, não é um modo de vida corporativo fechado. Por isso, a sinodalidade só se realizará se não absolutizarmos a nossa condição de Povo de Deus, se a vivermos ao serviço da missão [13], concretamente como sacramento de união de todo o gênero humano: “a Igreja está em Cristo como sacramento ou sinal e instrumento da união íntima com Deus e da unidade de todo o gênero humano” [14]. Isso só será possível se na Igreja a sinodalidade ocorrer, sobretudo, no nível básico de nossa condição comum de cristãos, que é a condição absoluta, sagrada e eterna, a cujo serviço estão as diversas vocações e carismas, que são apenas o que Deus quer, se é que estão enraizados nesta primeira comunhão ou eclesialidade, que consiste em caminhar juntos como cristãos e que não tem sido a voz principal da nossa Igreja, até ser relançada com todo o vigor pelo Vaticano II, que infelizmente ainda não foi acolhido pela maioria da instituição eclesiástica.
Ora, se existe esta primeira eclesialidade de aproximar-se na fé, no amor fraterno e na vida, o exercício assíduo das diversas vocações qualifica enormemente esta primeira eclesialidade. O povo de Deus, segundo o Vaticano II, é composto por todos os cristãos e, portanto, inclui as três vocações: hierarquia, vida religiosa e leigos. Convém insistir desde o início que o caminhar juntos supõe que cada membro do povo de Deus assuma a responsabilidade de que esta pertença compartilhada tenha prioridade sobre a sua vocação específica, que é toda em função desse caminhar comum. A Comissão Teológica Internacional diz referindo-se ao documento conciliar sobre a Igreja: “A sequência: Mistério da Igreja (cap. 1), Povo de Deus (cap. 2), Constituição hierárquica da Igreja (cap. 3), destaca que a hierarquia eclesiástica é colocada ao serviço do Povo de Deus para que a missão da Igreja se atualize em conformidade com o desígnio divino de salvação, na lógica da prioridade do todo sobre as partes e do fim sobre os meios” [15]. Assim, se essa sequência ocorrer, se a hierarquia servir ao povo de Deus horizontalmente, sentindo que faz parte dela, tudo se potencializa.
Mas o papa reconhece que “caminhar juntos - leigos, pastores, bispo de Roma - é um conceito fácil de colocar em palavras, mas não é tão fácil de colocá-lo em prática”. A razão é que, como a Igreja está neste mundo, ela tende a imitar inconscientemente o status hierárquico, no sentido piramidal, de nossa sociedade. Mas o Papa Francisco insiste que “devemos continuar neste caminho”, porque “o caminho da sinodalidade é o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio” [16]. “Porque a Igreja nada mais é do que o ‘caminhar junto’ do rebanho de Deus pelos caminhos da história que vão ao encontro de Cristo, o Senhor - também entendemos que por dentro ninguém pode ser ‘elevado’ acima dos demais. Ao contrário, na Igreja é necessário que alguém se ‘rebaixe’ para se colocar ao serviço dos irmãos a longo do caminho” (id). Por isso, em contraste com esta sociedade piramidal, explica: “Nesta Igreja, como em uma pirâmide invertida, o topo está abaixo da base. Por esta razão, aqueles que exercem autoridade são chamados de ‘ministros’: porque, de acordo com o significado original da palavra [17], eles são os menores de todos. Cada Bispo, a serviço do Povo de Deus, torna-se, pela porção do rebanho que lhe foi confiado, vicarius Christi, vigário de Jesus, que na Última Ceia se curvou para lavar os pés dos apóstolos (cf Jn 13,1- 15). E, num horizonte semelhante, o próprio Sucessor de Pedro é o servus servorum Dei” (id), isto é, o servo dos servos de Deus. Esta especificação da autoridade como serviço é confirmada na vida de Jesus e também nas suas palavras nas quais ele pede aos seus apóstolos que se desviem radicalmente da ordem estabelecida: “Vocês sabem: os governadores das nações têm poder sobre elas, e os grandes têm autoridade sobre elas. Entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês” (Mt 20, 25-27). ‘Entre vocês não deverá ser assim’: nesta expressão chegamos ao próprio âmago do mistério da Igreja – ‘entre vocês não deverá ser assim’ – e recebemos a luz necessária para compreender o serviço hierárquico” (id).
O exemplo mais claro que temos à mão são aqueles que foram chamados com toda a razão de modernos Padres da Igreja latino-americana: de Proaño a Romero, passando por Angelelli, Alvear, Hélder Câmara, Lorscheider... [18]. Todos eles se sentiram na seio do seu povo e muito gratos pelo que receberam dele e é por isso que também contribuíram muito, quase se pode dizer que o marcaram com o seu serviço, tão perseverante e ajustado à realidade, que soube colocar aqueles prostrar os povos sobre os pés ou, melhor, ajudá-los efetivamente a assumir o controle de sua vida e a assumir sua condição de súditos fraternos e filiais.
Ora, o sentido do caminho tem ainda outra conotação muito precisa para nós cristãos: caminhamos ao encontro de Jesus de Nazaré, aquele que nos torna irmãos e filhos de Deus e que vive no seio do Pai, na comunidade divina, não apenas como o único e eterno Filho do Pai, mas como nosso Irmão, que verdadeiramente nos carrega em seu coração e nos designa a participar dele na comunidade divina. Assim, para nós, o caminho não termina na morte, mas na comunidade divina.
Creio que este sentido da vida como caminho para o encontro definitivo com Jesus, que foi tão forte na Igreja no passado, hoje está bastante apagado. Mas, se de fato Jesus é nosso Senhor, como nosso irmão, encontrá-lo definitivamente deve ser a meta cativante de nossa vida. Ora, não uma meta que deixe de lado o resto, porque aqui estamos cumprindo a sua tarefa de fazer desta humanidade, que é desconhecida, o mundo fraterno das filhas e dos filhos de Deus [19]. E também porque o encontraremos como Irmão de todos, então nele encontraremos a todos.
Além disso, para nós, cristãos, ele não é apenas o nosso destino, mas o caminho que vamos percorrendo (Jo 14, 4-6). É por isso que o seguimos e nos definimos como seus seguidores. Não como imitadores, porque na imitação não há lugar para autenticidade ou plenitude humana. A imitação não nos humaniza.
E, além disso, como as situações são diferentes, a imitação falsificaria o que ele pretendia em sua vida. Não tentamos fazer o mesmo que ele, mas o equivalente em nossa situação. Trata-se, então, de segui-lo com fidelidade criativa. Procuramos fazer em nossa situação o equivalente ao que ele fez na sua. E ele, já dissemos, se encarnou no seu povo desde baixo, e veio reunir os filhos de Deus que estavam espalhados (Jo 11, 52) de tal maneira que o apelo a cada um, a vocação, é precisamente uma convocação: um chamado a caminhar juntos como irmãs e irmãos, semeando a fraternidade das filhas e filhos de Deus, até que estejamos todos em seu coração na comunidade divina como filhos no Filho.
Todos estes sentidos estão recolhidos nesta citação do documento da Comissão Teológica Internacional: “A sinodalidade manifesta o caráter peregrino da Igreja (...) expressa sua dimensão social, histórica e missionária, que corresponde à condição e à vocação do ser humano, como homo viator. O caminho é a imagem que ilumina a inteligência do mistério de Cristo, como o Caminho que conduz ao Pai. Jesus é o Caminho de Deus rumo ao homem e destes rumo a Deus. O acontecimento de graça com o qual Ele se fez peregrino, plantando sua tenda em meio a nós (Jo 1, 14), prolonga-se no caminho sinodal da Igreja” [20].
Gostaria de destacar um ponto que me parece espacialmente relevante, tanto que acredito que seria a nossa maior contribuição para a constituição da sociedade como corpo social e para a democracia real finalmente existente. Acho que o que a gente faz como setor social, para ter um significado histórico, teria que ser construído sobre essa prática. É que a sinodalidade na Igreja latino-americana era uma prática tão difundida e densa que veio a nos marcar como cristãos latino-americanos.
Estou convencido de que o Sínodo sobre a sinodalidade e todas as reuniões sobre ele realizadas nos vários países e dioceses não mudarão substancialmente a fisionomia da Igreja até que a sinodalidade se torne uma prática comum, isto é, até que em nossa vida cotidiana não aconteça que trazemos uns aos outros na fé, no amor mútuo e na vida cristã as diferentes vocações do Povo de Deus, e de forma mais restrita até que padres e bispos não se tornem cristãos com os leigos ou de forma ainda mais precisa até que a dimensão dos cristãos não seja para a hierarquia a dimensão básica em que vivem, embora essa dimensão seja colorida por sua vocação hierárquica.
Acho que muitos padres se consideram cristãos e cultivam essa dimensão; mas o fazem de maneira privada e subsidiária, isto é, para serem bons sacerdotes. Mas poucos são os que pensam e sentem que no fundo são cristãos e que não podem ser cristãos como indivíduos, porque ser cristão é viver a fraternidade das filhas e filhos de Deus e essa dimensão que é o que nos define, pede que a relação horizontal, livre, aberta e, se possível, recíproca, assuma a vanguarda da sua vida e que, portanto, ser sacerdote é uma tarefa que lhes foi confiada, destinada a potenciar essa relação de base no seio da Igreja e a proclamar e agir também fora dela.
Parece incrível que, tendo perdido o sentido original de ser ordenado, que é entrar na ordem, seja dos presbíteros ou dos bispos, entendendo a ordem no sentido romano de uma classe privilegiada e, portanto, separada do povo, ainda que seja para servi-los, mantém-se o sentido de status que, de fato, o separa dos chamados fiéis, elevando-os acima deles.
Não são poucos os padres e talvez a maioria se sinta assim e, por isso, não compreendem que lhes seja dito que devem se tornar cristãos com os outros cristãos não ordenados. Eles nem mesmo entendem que devem se tornar cristãos, porque lhes parece que, se os ordenaram, é porque os reconheceram como tais. Eles acreditam que foram ordenados para ajudar os leigos a se tornarem cristãos e a viverem como tais. Se eles estão lá para ajudá-los, as relações não são mútuas, mas entre eles, os que ajudam, os leigos, os que são ajudados. Eles concordam que esses relacionamentos devem ser humildes e não podem ser realizados despoticamente. Mas eles não entendem que devem manter relacionamentos horizontais e mútuos com eles ou que esses relacionamentos são para se tornarem cristãos ou, se você preferir, para exercer a fraternidade dos filhos de Deus em que consiste o cristianismo. Ou, dito de outra forma, que antes de atuar como agentes pastorais existe a dimensão mais básica dos pacientes pastorais, que sempre devem ser ajudados.
Enquanto não distinguirem entre seu ser cristão, que é o sagrado e eterno, e seu ministério hierárquico, que é unicamente ou nada menos que qualificar e potencializar esta fraternidade em si e nos outros, e até que não exerçam o ministério sobre com base em seu exercício cristão assíduo, não haverá sinodalidade. Agora, para exercê-lo dessa forma, eles têm que valorizá-lo. Mas se essa relação primordial não for praticada e o ministério não for exercido para isso, como ela será valorizada?
Então, ou se chega à percepção da pouca densidade que é se definir como padre e é por isso que a pessoa se abre para se definir como cristão, ou a pessoa se fia nos que defendem a sinodalidade, a começar pelo papa, e se animam por isso e a praticam. Se a mudança não ocorrer por nenhum desses canais, não seremos cristãos de coração e o cristianismo terá sido reduzido a uma religião.
Pode também acontecer que outros cristãos interajam com ela nesta dimensão básica de uma maneira tão excelente e tão gratificante que a pessoa vai se abrindo gradualmente até praticá-la assiduamente.
Não obstante, de uma forma ou de outra, a sinodalidade tem que ser praticada diariamente por uma massa crítica para que uma verdadeira mudança aconteça e possa ser dito verdadeiramente que nossa Igreja é verdadeiramente sinodal. Isso, acima de tudo, é o que precisa ser promovido. Mas, é claro, primeiro é necessário mostrar seu significado e sua relevância evangélica. Para isso, pode ajudar o testemunho de quem, a partir do Concílio e da sua recepção latino-americana, o viveu com assiduidade como graça transcendente. Nós a vivemos e continuamos a vivenciá-la e podemos testemunhar que esta forma de convivência, de aproximação nos enriquece, nos humaniza, porque, como temos insistido, para nós cristãos sermos humanos é sermos irmãos de todos.
Se uma massa crítica de cristãos conviver desta forma pessoalizada, discernindo juntos o que a situação demanda e ajudando-se mutuamente a vivê-la, o que implica o exercício assíduo da deliberação, será o maior estímulo para nós, cidadãos, juntarmos os nossos bens para constituir corpos sociais e para que desenvolvamos a deliberação [21] para que não saibamos viver sem ela. Se neste aspecto transcendente de nossa vida, que, no entanto, se dá no cotidiano, nos acostumamos a deliberar para buscar juntos o caminho e percorrê-lo juntos, não aceitaremos ser na política uma mera massa que aplaude ou protesta as decisões do que eles enviam. Tentaremos por todos os meios viver na esfera política o que vivemos nesta outra, tão decisiva que nos configura.
Insisto que só a partir desta base poderemos avançar para uma alternativa verdadeiramente superior também a nível político. É difícil para a deliberação começar com a política. É preciso ter exercido na família, entre amigos e colegas, em associações e grupos para que possamos praticá-lo também na política. A política é uma superestrutura. Por isso, tem que contar com o social e interpessoal para que alcance tal consistência que seja capaz de regular grupos econômicos, ao invés de cair em suas mãos. Esse é o nosso desafio e esse é o valor agregado da sinodalidade em Nossa América hoje.
[1] Esta é a religião da época em que, com a aparição da agricultura, da pecuária, da alfaiataria, do trabalho de metais, da ciência e da técnica, se dá a divisão do trabalho e são possíveis as cidades, os reinos, os impérios e a sociedade se faz piramidal. Não é a religião de Jesus, ainda que o cristianismo tenha se adaptado a ela, sacrificando sua genuidade. É a época que está passando e se o cristianismo não se desmarca dela, passará com a época por sua infidelidade.
[2] Ellacuría, Filosofía de la realidad histórica. UCA, San Salvador, 1999, 345.
[3] Por exemplo, isso é o que se chama qualidade educativa, inclsuive, não poucas vezes, na educação católica.
[4] Trigo, “Ser humano”. SIC 829, nov 2020,403-414.
[5] “Sou pessoalmente na abertura aos demais. Não são duas coisas ser pessoa e ter fisicamente um ser comum com os outros, mas sim que ter um ser comum com os outros pertence a meu modo de ser pessoa, definida como abetura real a minha própria realidade, vertida desde si mesma às outras pessoas” (Ellacuría, Filosofía de la realidad histórica, UCA, San Salvador 1999,388).
[6] Trigo, “Afirmarse como seres humanos y afirmar a todos los seres humanos: vocación y misión de todos los seres humanos”. Iter Humanitas 17 (en-jul 2012) 105-146.
[7] Sempre começamos recebendo: somos filhos
[8] Mc 1,16; cf 15,38
[9] Trigo, Jesús nuestro hermano. Sal Terrae, Maliaño 2018,34-43
[10] Ver a encíclica do papa Francisco Fratelli Tutti
[11] oc 107.
[12] “Conmemoración del 50 aniversario de la institución del sínodo de los obispos”. Aula Pablo VI, 17 out. 2015
[13] “Na Igreja, a sinodalidade se vive a serviço da missão” (Comissão Teológica Internacional, oc 53)
[14] Concilio Vaticano II, “Constitución dogmática sobre la Iglesia”, n°1
[15] Comisión Teológica Internacional, La sinodalidad en la vida y en la misión de la Iglesia, 2018, 54.
[16] Papa Francisco, “Comemoração do 50º aniversario da instituição do sínodo dos bispos”. Sala Paulo VI, 17 out 2015.
[17] O termo “ministro” deriva do latim minister, que significa servente ou criado, também ajudante. Procede da raíz minus (menor, menos, miniatura). É o oposto a magister, termo do qual derivam magistrado e mestre, que representam o nível mais alto em seus respectivos estamentos.
[18] Comblin dedica varios trabalhos a estudá-los e prestar-lhes homenagens. O primeiro, mais conceitos, em “Los obispos de Medellín”. In.: “10 palabras sobre la Iglesia en América Latina”. Estella, Editorial Verbo Divino, 2003, 41-77. O segundo, mais vivencial, é sua contribuição à homenagem que prestou nos seus oitenta anos de idade, intitulado significativamente “Saudades da América Latina”. O livro homenagem leva por título “A esperança dos pobres vive”. São Paulo, Paulus 2003, 721-732. Ver também Id. “Los Santos Padres de América Latina”. RLT 65 (ma-ag 2005) 163-172.
[19] Assim insiste Paulo a seus queridos filipenses: “Pois para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. Mas, se eu ainda continuar vivendo, poderei fazer algum trabalho útil. Por isso é que não sei bem o que escolher. Fico na indecisão: meu desejo é partir dessa vida e estar com Cristo, e isso é muito melhor. No entanto, por causa de vocês, é mais necessário que eu continue a viver. Convencido disso, sei que vou ficar com vocês. Sim, vou ficar com todos vocês, para ajudá-los a progredir e a ter alegria na fé” (1, 21-25).
[20] Oc, 49.
[21] Deliberar segundo o dicionário da Real Academia é “considera atenta e detentamente o pró e o contra dos motivos de uma decisão, antes de adotá-la, e a razão ou sem-razão dos votos antes de emiti-los”. Como se vê, a deliberação política vem depois do costume de decidir na vida sopesando pausada e analiticamente as razões.