Por: Jonas | 02 Dezembro 2014
No último sábado, 29 de novembro, na Casa do Trabalhador, o CJCIAS/CEPAT promoveu a última etapa, desse ano, do Projeto Rezar com os Místicos, refletindo e rezando a partir da vida de dom Leonidas Proaño (1910-1988). Para este momento, contamos com a assessoria de André Langer (FAVI), que preparou um rico material com a seleção de textos e aspectos fundamentais que marcaram a trajetória de Proaño, o bispo que no Equador se identificou com as dores e sofrimentos dos povos indígenas.
O relato é de Jonas Jorge da Silva, da equipe do CJCIAS/CEPAT.
A crença na centralidade da comunidade e na força dos homens e mulheres, quando se unem em prol da vivência do que é o Evangelho, sempre foi um estímulo para a vivência pastoral de Proaño. Como bem ressaltou André Langer, Proaño não se destaca pelas grandes erudições teológicas, mas, sim, pela sua teologia da vida prática, ou seja, é capaz de refletir teologicamente a partir da vida concreta. Daí, o quanto se torna caro para ele a situação de pobreza dos povos indígenas no Equador, com quem não foge do contato direto durante o seu ministério episcopal. No ápice de sua indignação, chega a denunciar que os indígenas viviam como cachorros largados e que isso era algo que lhe doía no coração. É a dor do pastor que é capaz de sentir compaixão pelo sofrimento daqueles que o cercam. Nesse sentido, Proaño antecipa o modelo de bispo que, atualmente, o papa Francisco tanto tem reivindicado à Igreja.
Foto: Sérgio F. Kuchani |
Proaño é um precursor da Teologia da Libertação. Sua participação no Concílio Vaticano II não foi em vão, pois sua própria ação pastoral em Riobamba (1954-1985) sempre esteve imbuída do espírito desse grande acontecimento eclesial. Fez do método Ver-Julgar-Agir uma importante ferramenta para planejar seu trabalho pastoral, promovendo semanas pastorais e criando trabalhos em equipe. Procurou criar novos modos de evangelização, destacando-se as chamadas “Assembleias Cristãs”, equivalentes aos chamados grupos de reflexão, e apostando na força do rádio, criando uma rádio-alfabetização em um período em que a comunicação e o acesso a mesma era muito difícil.
Sua máxima “não ser traidor dos pobres” sempre o acompanhou, nunca deixando para trás sua própria condição primeira, de menino pobre, que nasceu numa família simples. É na condição de pobre que se aprende a ser solidário e é a partir dessa interiorização que é possível constituir uma teologia da solidariedade. Sua experiência de fé em Deus brota e se alimenta desse compromisso com os pobres.
Em sua obra “Creo en el hombre y en la comunidad. Autobigrafía” (4. ed. Quito: Corporación Editora Nacional, 2001, p. 244-245), Proaño deixa testemunhado o que, de fato, sempre enxergou como a verdadeira experiência de fé: “Para nós, a fé não é simplesmente um conjunto de verdades. Não é simplesmente um conjunto de conceitos e definições. Não é o simples resultado de uma elaboração ideológica. Para nós, a fé é, sobretudo, uma vivência, um compromisso, uma prática diária, uma luta permanente contra o mal, contra a mentira, contra a injustiça, contra o ódio, onde quer que se encontrem: em nós e na sociedade, no sistema capitalista ou no sistema comunista”.
Segue, abaixo, a reprodução do Creio de Leonidas Proaño, um verdadeiro testamento, no qual expressa suas mais profundas convicções como ser humano e cristão. Um belíssimo texto que revela o interior de um verdadeiro homem de Deus. O texto é extraído de sua obra Creo en el hombre y en la comunidad. Autobiografía. 4. ed. Quito: Corporación Editora Nacional, 2001, p. 247-253. A seleção do texto e sua tradução são de André Langer.
Creio...
Pediram-me para que dissesse qual é o credo que deu sentido à minha vida.
Uma só é a fé do cristão.
No entanto, embora seja una, a vivência dessa fé tem suas características próprias em cada cristão.
Quando me pediram para dizer qual é o credo que deu sentido à minha vida, penso que o propósito era descobrir as características próprias da minha vivência da única fé dos cristãos.
Creio! Em quê? Em quem? O que deu sentido à minha vida? Ou quem deu sentido à minha vida?
Perguntei-me isso antes de iniciar a redação destas páginas. Volto a me perguntar agora, quando me disponho a terminar minha tarefa.
Desde o princípio, eu pensei na comunidade. Hoje, continuo pensando que a comunidade cristã deu sentido à minha vida.
Antes de mais nada, eu creio em Deus. Creio em Deus Pai. É Ele quem me deu a vida. Ele me ama infinitamente. Comprovei-o vivencialmente ao longo de todos os meus anos de existência. E sei que minhas relações com Ele foram filiais.
Creio no Deus Trinitário. No Deus fecundo. Creio na felicidade desse Deus fecundo. Creio no Deus comunitário.
Creio no Verbo de Deus. E creio no Espírito Santo. As primeiras páginas da Bíblia e o capítulo primeiro do evangelho de São João sempre me impressionaram. A Palavra é a reprodução do próprio Deus. O amor que têm mutuamente o Pai e o Filho em seu Espírito. Deus uno e trino. Deus uno e trino.
A palavra para fora é o mundo, é o homem. “Disse Deus: faça-se a luz, e houve luz...”. “No princípio o Verbo estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem Ele nada foi feito. Nele havia vida e a vida é a luz dos homens”.
Creio no plano amoroso de Deus. Ele se propõe a fazer-nos seus filhos. Quer que os homens sejam irmãos. Chama-nos para nos tornar partícipes da sua felicidade eterna.
Creio que Deus colocou o homem nesta terra para que vá se tornando senhor dela, para submetê-la. Deus é o único Senhor. Mas Deus quis fazer o homem à sua imagem e semelhança. Aprender a nos assenhorarmos da terra é realizar este importante aspecto da vocação do homem: tornar-se imagem e semelhança de Deus Pai.
Creio que Deus fez o homem para que seja multidão. Ou seja, para que seja fecundo como Deus Pai.
Creio que Deus fez o homem fecundo, para que sendo muitos, no entanto vão se fazendo um, como é um o Deus trino.
O pecado entrou no mundo, no coração do homem. E como diz São Paulo, pelo pecado a morte entrou no mundo. Isto é, a destruição dos planos amorosos de Deus.
Creio em Jesus Cristo, o Verbo de Deus feito carne, Salvador dos homens, restaurador do plano amoroso de Deus, nosso irmão.
Aprendi a conhecer Deus nos braços da minha mãe. Aprendi a conhecer Jesus Cristo na Sagrada História, através das narrações dos evangelhos. Jesus Cristo foi entrando no meu coração e na minha vida desde quando fui criança. Ele foi para mim a manifestação contundente do amor do Pai. Sei por experiência que me ama. Também eu sinto por Ele um amor apaixonado.
Para restaurar o plano de Deus, fez-se pobre, viveu com os pobres, pregou a Boa Nova aos pobres.
Foto: Sérgio F. Kuchani |
Para restaurar o plano de Deus, fez-se servidor de todos.
Para restaurar o plano de Deus, pregou seu mandamento novo: o amor de uns para com os outros, tomando como modelo de amor aquele que o Pai tem para com o Filho e o amor que o Filho tem para conosco.
Porque creio em Deus e porque creio em Jesus Cristo, creio também no homem. Embora o pecado tenha pretendido destruir a imagem de Deus no homem, as sementes do Verbo permanecem em todo homem, sepultadas, talvez, debaixo do esterco amontoado pelos vícios e maldades produzidos pelo coração humano.
Creio no homem que está em mim, porque o Verbo de Deus feito carne foi me salvando. Creio no homem que está em todos os meus irmãos, porque esse mesmo Verbo de Deus feito carne quer salvar a todos. Por isso, jamais perdi a esperança. Por isso, posso dizer também que creio na esperança.
E pela mesma razão, creio na verdade, creio na justiça, creio no perdão, creio na reconciliação, creio que estamos caminhando para o Reino de Deus, creio que esse Reino já está no meio de nós, embora ainda falte muito para que seja cabal seu cumprimento.
Creio em Maria, a Mãe do Filho de Deus feito homem. Mulher humilde. Escrava do Senhor. Fiel à sua Palavra. Mulher cristã. Mãe.
Creio na Igreja. Sinto-me como uma parte bem pequena, mas viva, d’Ela. Depois do Concílio, descobri-a como comunidade concreta, como a família chamada a ser sinal de fraternidade neste mundo. Amo-a entranhavelmente, e porque a amo me doem como na própria carne seus desvios. E porque a amo entranhavelmente, fui tirando da boca a amargura que me produziram as incompreensões e acusações injustas promovidas ou aceitas por membros irmãos desta mesma Igreja.
Creio nos pobres e oprimidos. Crer nos pobres e oprimidos é crer nas sementes do Verbo. Creio em suas grandes capacidades, particularmente, em sua capacidade de receber a mensagem de salvação, de compreendê-la, de acolhê-la e de colocá-la em prática. Por isso, é verdade que os pobres nos evangelizam. Por isso, a Conferência de Puebla falou do “potencial evangelizador dos pobres”. Creio na Igreja dos pobres, porque Cristo se fez pobre, nasceu pobre, cresceu em um lar pobre, fez discípulos entre os pobres e fundou sua Igreja nos pobres. Por tudo isso, ao mesmo tempo que faço minha profissão de fé nos pobres, me atrevo a tomar as palavras emocionadas de alegria de Cristo: “Eu te louvo, Pai, porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequeninos”.
Esta é a minha fé. Esta fé deu sentido à minha vida.
Mas, quando se trata de descobrir as características vivenciais da minha fé, coloco a ênfase na minha fé na comunidade. Deus foi me preparando remotamente para isso. Não pertenci a uma família numerosa, mas esta mesma deficiência me fez sentir a necessidade de ter amigos, a necessidade de trabalhar conjuntamente com outros, a necessidade da comunicação profunda e da comunhão em valores transcendentais.
Um dos meus defeitos foi a incapacidade de saber “perder tempo” com os amigos. Mas nesta mesma deficiência descubro um aspecto positivo, como preparação remota, e trata-se de que sempre busquei relações sérias e de respeito com qualquer pessoa.
Deus foi me preparando remotamente também do ponto de vista afetivo. Por um lado, contei com amigos verdadeiros. Amamo-nos em profundidade. Dialogamos. Construímo-nos mutuamente, criticando com franqueza e confiança tudo aquilo que encontrávamos defeituoso em cada um de nós. Por outro lado, minhas relações com pessoas do sexo feminino, particularmente durante a minha juventude, foram bem mais parcas, como disse no seu devido tempo. Vejo agora que essa maneira de comportamento me impediu de cair na leviandade de relações ligeiras e superficiais e não me impediu, no entanto, posteriormente, o cultivo de relações amistosas com pessoas de um ou outro sexo. Antes, favoreceram-nas. Adquiri uma capacidade de respeito, indispensável para uma autêntica vida comunitária. Atualmente, os grupos comunitários da diocese de Riobamba são compostos por homens e mulheres.
Quando jovem sacerdote, ninguém falava de equipe, ninguém falava de comunidade, a não ser que se tratasse das comunidades religiosas. De fato, os quatro antigos amigos que formávamos o “Quadrilátero” constituíamos uma autêntica equipe de amizade e de trabalho. Assim, Deus foi me preparando.
A morte do meu pai, quando eu ainda precisava dele, e 10 anos mais tarde a morte da minha mãe, me deixaram sozinho, sem laços familiares íntimos. Estas circunstâncias dolorosas me levaram a viver uma vida de família com os jovens trabalhadores da Cardjin. Estes anos foram também uma preparação remota.
O mesmo posso dizer, mas já como preparação imediata, da experiência da Equipe João XXIII, já na diocese de Riobamba.
Agora posso dizer com toda a verdade e sinceridade: Creio no homem e creio na comunidade cristã.
Foto: Sérgio F. Kuchani |
Toda a minha vida esteve cheia de lutas e conflitos. Penso de mim mesmo que não sou uma pessoa conflitiva. Pelo contrário, sou um homem pacífico. Mas também sou um homem intransigente quando se trata de defender valores transcendentais, não certamente especulativos, mas encarnados na existência dos homens. Fui intransigente na defesa da verdade, porque quis que os homens concretos fossem verdadeiros. Fui intransigente na defesa da verdade, porque quis que os homens concretos fossem verdadeiros. Fui intransigente na defesa da justiça, porque quis que os homens concretos fossem verdadeiros. Fui intransigente na defesa da justiça porque quis que os homens pratiquem a justiça. Fui intransigente na defesa do amor e da amizade, porque quis uma grande autenticidade nas relações humanas.
Para dar a entender que minha fé na comunidade deu sentido à minha vida, além dos relatos que deixo escritos nestas páginas e com base nisso julgo conveniente referir-me agora a determinados conflitos, a modo de exemplo. Foi nessas ocasiões quando mais de perto e mais intimamente experimentei o que é viver em comunidade, estar em profunda comunhão com outras pessoas, sentir que todos quantos creem em Cristo são membros de um mesmo corpo.
Nestas ocasiões também tive a oportunidade de fazer uma séria revisão de mim mesmo à luz do Evangelho, de ir adquirindo domínio sobre mim mesmo, serenidade, coragem, conflitos.
Obrigado, Pai, por me ter dado a vida. Por me ter feito nascer no seio de uma família pobre. Por me ter encaminhado ao sacerdócio. Por me ter feito conhecer o teu Filho, Jesus Cristo. Por me ter dado uma mãe, a Virgem Maria. Por ter colocado no meu caminho amigos de coração nobre. Por ter descoberto o mistério do teu plano salvífico. Por me ter feito compreender que os homens são chamados a viver como irmãos. Porque me estás fazendo viver o mistério da Igreja como comunidade cristã. Pela serenidade, pela força, pela luz, pela esperança que a tua Palavra nos comunica. Pela alegria do teu Reino que já começou. Pela fé que deu sentido à minha vida. Pelos acontecimentos que deram sentido à minha vida de fé...
Com a urgência de acelerar a chegada do teu Reino em plenitude, com a Igreja que está em Riobamba e com a Igreja Universal, clamamos ao teu Filho:
Vem, Senhor Jesus!
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