28 Julho 2021
"Embora o show possa embaraçar o Vaticano mais do que o esperado, o arranjo acusatório continua a ser poderoso e, para muitas partes, as evidências são inquietantes. Mas as provas contundentes de corrupção em cadeia e subornos astronômicos até agora não foram identificadas ", escreve Emiliano Fittipaldi, em artigo publicado por Domani, 27-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
É a primeira vez que um pontífice, teocrata do estado da cidade do Vaticano, envia ao banco dos réus um poderoso cardeal que acabou em desgraça (Angelo Becciu), até um ano atrás seu colaborador de confiança e considerado, por quase duas décadas, o mais influente monsenhor da Cúria Romana.
Também é um caso único a decisão de tentar lançar luz sobre os investimentos feitos com o Óbolo de São Pedro, dezenas de milhões por ano que em vez de serem gastos com os últimos são reinvestidos (desde o tempo de João Paulo II, deve ser lembrado) em mercados financeiros e transações altamente especulativas.
A Santa Sé pediu ajuda como nunca aos procuradores italianos (principalmente à procuradoria romana) e à polícia econômica da Guarda de Finanças. Uma colaboração fundamental que - alguns temem no Vaticano - a partir de agora poderia obrigar o Vaticano a uma plena reciprocidade.
O juízo universal de Francisco começa hoje. Quando os porteiros abrem as portas do tribunal montado dentro dos museus do Vaticano, deixando entrar uma pequena multidão de réus famosos, advogados de renome, jornalistas, juízes e promotores de justiça, ou seja, o pequeno grupo que animara o processo mais delicado da história recente do Vaticano.
A palavra é abusada, mas a audiência que será oficiada pelo novo presidente do tribunal Giuseppe Pignatone é um acontecimento memorável. É a primeira vez que um pontífice, teocrata do estado da Cidade do Vaticano, manda ao banco dos réus um poderoso cardeal que caiu em desgraça (Angelo Becciu), até um ano atrás seu colaborador de confiança e considerado, por quase duas décadas, o mais influente monsenhor da Cúria Romana.
Se no passado o Vaticano já havia realizado investigações sobre padres e leigos, nunca havia acontecido que acabassem sob investigação os altos funcionários da secretaria de Estado, o dicastério que trabalha em estreita colaboração com Santa Marta e que se constituiu, surpreendentemente, como parte civil junto com o IOR, o banco de Deus protagonista de escândalos sem fim, mas desta vez inscrito na parte certa do quadro-negro.
Como, por outro lado, nunca haviam sido vistos incriminados os vértices da Autoridade de Informação Financeira, os detetives de combate à lavagem de dinheiro acusados de abuso de poder por não terem fiscalizado adequadamente as portas do galinheiro. E também acusados, esta é a hipótese dos magistrados Gian Piero Milano, Gianluca Perone e Alessandro Diddi, de raposas famintas. Na frente de todos os financistas de assalto Raffaele Mincione e Gianluigi Torzi.
A Santa Sé pediu ajuda como nunca aos procuradores italianos (sobretudo à procuradoria romana) e à polícia econômica da Guarda de Finanças. Uma colaboração fundamental que - alguns temem no Vaticano - a partir de agora poderia obrigar o Vaticano a uma plena reciprocidade, raramente concedida às instituições eclesiásticas quando a Itália tentou investigar crimes e corruptores escondidos atrás da sombra dos muros leoninos.
O maxi-processo também tem um âmbito inédito, de dimensão “siciliana”, com dezenas de vias de investigação que serão esmiuçadas diante da opinião pública mundial. Muitas delas nem serão tocadas: passa-se do suposto golpe perpetrado no prédio da Sloane Avenue, em Londres, às "extorsões" milionárias de Torzi para restituir o controle do imóvel, até o dinheiro entregue por Becciu à cooperativa de seu irmão na Sardenha e os casos misteriosos que giram em torno de Cecília Marogna, Mata Hari originária de Sassari contratada pelo ex-substituto para operações de inteligência. Missões (secretas?) até agora realmente nunca iluminadas em todos os cantos, e que prometem, graças à vitrine garantida ao processo, novos escândalos de primeira página.
A espetacularização do procedimento é um dos riscos que Francisco e seus promotores decidiram correr para chegar a uma sentença e, sobretudo, a uma verdade judicial sobre uma história que dividiu a cidade santa. Mas lendo as quase 500 páginas com as quais os promotores definiram as denúncias para o heterogêneo grupo, é evidente que os riscos são muito maiores.
Os objetivos do juízo universal são, de fato, claros: apontar urbi et orbi que a ação anticorrupção de Bergoglio não olha na cara de ninguém e tentar recuperar parte do dinheiro queimado na compra do prédio, hoje difícil de quantificar, mas não inferior - dizem as estimativas mais conservadoras - a 50 milhões de euros. No entanto, dividir salomonicamente bons e maus não será uma tarefa fácil. A tentativa de simplificação parece evidente, mas a realidade dos fatos - ao ler apenas os atos da acusação - parece muito mais cinza do que a suposta hipótese em preto e branco.
Nem será óbvio, para os comunicadores de Francisco, convencer a mídia (especialmente a estrangeira, menos inclinada à persuasão moral do Vaticano) de que uma teocracia é realmente capaz de organizar um processo justo, em que se garante, como nas modernas democracias ocidentais a independência de cada parte e o direito à defesa.
A possibilidade de se defender com advogados escolhidos inclusive fora daqueles eclesiásticos é, porém, um avanço em relação ao passado recente. Até o momento, porém, poucos apostam na absolvição dos acusados. E isso não tanto pela existência de provas contundentes sobre o "sistema podre" que teria sido organizado pelo substituto, mas porque a absolvição de nomes de respeito derrotaria não só o trabalho da acusação, mas o próprio agir do pontífice. Que já dez meses atrás censurou duramente (com a exoneração de Becciu e demissões dos funcionários envolvidos) quase todos os protagonistas do caso. Porque em sua opinião culpados, independente do processo dos homens, por ter minado para sempre a sua confiança.
A tarefa do painel de juízes, que foi escolhido pelo papa-monarca, bem como os promotores de justiça e os líderes da gendarmaria, é, portanto, árdua. Parecer "terceiros" e autônomo é, ontologicamente, um compromisso: o papa para isentar os investigadores de qualquer vínculo legal pré-existente assinou "rescritos" que alteraram as antigas leis do Vaticano, permitindo que os magistrados tomassem ações que antes eram inadmissíveis. Ele depois postulou face a isso - apesar das práticas questionáveis, mas consolidadas por décadas - que investir o dinheiro do Óbolo seja realmente um crime. Como monarca absoluto, após o início da investigação, ele também modificou as normas sobre os cardeais, que até anteontem só podiam ser julgados por um colégio de pares. Escolhas estas que serão fortemente criticadas pelas defesas.
Uma primeira prova de independência será obtida lendo as listas de testemunhas admitidas: a acusação até agora deixou fora da briga os partidários de Francisco (em primeiro lugar o secretário de Estado Pietro Parolin e o substituto Edgar Peña Parra, que milagrosamente permaneceu fora do processo juntamente com o "grande arrependido", Monsenhor Alberto Perlasca), mas é provável que os imputados peçam a sua inclusão, que consideram central para poderem defender-se devidamente das contestações.
Embora o show possa embaraçar o Vaticano mais do que o esperado, o arranjo acusatório continua a ser poderoso e, para muitas partes, as evidências são inquietantes. Mas as provas contundentes de corrupção em cadeia e subornos astronômicos até agora (a investigação continua, de fato, em surdina) não foram identificadas. Becciu cometeu graves erros na gestão do dinheiro, especialmente ao transferir quantias para a diocese de Ozieri e para a cooperativa de seu irmão, certamente em pleno conflito de interesses. Mas das “centenas de milhões de euros escondidos no exterior” de que alguns jornais falaram, não há vestígios nos documentos.
Enquanto outros tribunais estrangeiros chamados a se pronunciar sobre o caso do prédio (o Supremo Tribunal de Londres, violentamente criticado pelos promotores do mecanismo de acusação) destacaram que, em sua opinião, o escândalo do prédio de Chelsea não é o resultado de fraude e corrupção, mas da incapacidade de padres ambiciosos em gerir negócios tão complexos. Principalmente quando decidem - por conta própria - sentar-se à mesa de negociação com o gato e a raposa. Francisco agora quer saber se é um pastiche à la Pinóquio, ou se por trás da cortina da incompetência se esconde uma espoliação voluntária e criminosa dos cofres do Vaticano. O juízo universal começou e, seja como for, não será um processo indolor.
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O juízo universal de Francisco: todos os riscos do processo no Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU