Cadê a cultura política? Artigo de Frei Betto

Foto: Maí Yandara | Flickr CC

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

13 Julho 2021

 

"Não conseguimos criar no Brasil uma cultura política. A tradição patrimonialista, o mandonismo, o nepotismo, tudo isso esgarça o tecido de nossas instituições democráticas. A maioria se elege ou ocupa cargos públicos de olho nos proveitos pessoais e corporativos. Poucos têm princípios éticos e objetivos claros de serviço ao bem comum", escreve Frei Betto, escritor, autor de "Por uma educação crítica e participativa" (Rocco), entre outros livros.

 

Eis o artigo.

 

Cadê o novo? Cadê a moralidade? Dá vontade de fazer eco a Stanislaw Ponte Preta: “Restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos!”

De nada adianta o desalento diante das maracutaias do Ministério da Saúde, das propinas na compra de vacinas que salvam vidas, das rachadinhas familiares. Desopilar o fígado nas redes digitais é acender fósforo para conferir se há gasolina no tanque.

A questão é mais profunda: não conseguimos criar no Brasil uma cultura política. A tradição patrimonialista, o mandonismo, o nepotismo, tudo isso esgarça o tecido de nossas instituições democráticas. A maioria se elege ou ocupa cargos públicos de olho nos proveitos pessoais e corporativos. Poucos têm princípios éticos e objetivos claros de serviço ao bem comum. Basta aparecer a primeira boquinha de uma viagem ao exterior e lá se vai, alvoroçado, um bando de deputados e juízes felizes com a mordomia.

A estrutura do Estado é vista como uma grande vaca, na qual cada um busca a teta mais farta para a sua boca. O discurso da urgente contenção de gastos é como o sermão do padre que, ao celebrar missa para os alcoólicos anônimos, enchia seu cálice de vinho.

“Façam o que digo e não o que faço”. São sempre os outros que devem apertar o cinto em nome da salvação nacional. Nunca os políticos, os magistrados e os militares. “Nada é o bastante para quem considera pouco o suficiente”, já alertava Epicuro, no século IV a.C. Na apertada balsa que pretende conduzir a nação a um futuro melhor, atirem-se ao mar os sem mandato, os sem toga e os sem farda. Alguém deve pagar a conta. E ela sobra, invariavelmente, para os mais pobres. Vide os projetos de reforma tributária. Mantêm intocáveis a acumulação de grandes fortunas, o repasse de heranças, a importação de artigos de luxo.

Por que, no Brasil, soa como ofensa falar em imposto progressivo? Nessa descultura da boca pra fora, sobejam elogios à Noruega, Dinamarca e Suécia, onde vigora uma cultura política de fortes raízes. Mas aqui ninguém está disposto a ceder um grão de mordomia. O trio (mandato, toga e farda) do privilégio (termo que deriva de ‘lei privada’, que vale para uns e não para todos) não abre mão do auxílio-moradia, de penduricalhos adicionais aos salários, do plano de saúde especial, de carros e viagens aéreas pagas pelo contribuinte, férias prolongadas, seguranças etc.

Essa gente nunca leu (ou não entendeu) Platão e Aristóteles, Montesquieu e Rousseau, Habermas e Bobbio, e aprecia Gandhi e Mandela apenas como retratos na parede.

E cadê a oposição? Qual a sua proposta alternativa à reforma tributária? Até existe, mas quase ninguém conhece. E à retomada do crescimento, combate ao desemprego e melhoria da saúde e da educação? Cadê o trabalho de base, os vínculos orgânicos com as classes populares, a alfabetização política?

Apesar de tudo, não nos resta outra via fora da política. Pode-se odiá-la, repudiá-la ou ficar indiferente. Mas é o que determina a nossa qualidade de vida, como trabalho, moradia, alimentação e saúde. Quem não gosta de política é governado por quem gosta. E tudo que os maus políticos desejam é que fiquemos alheios à política. Assim, damos carta de alforria aos corruptos, nepotistas e similares.

Nossa incultura política é tão rasteira que em vez de o Estado cumprir a sua função constitucional de dar segurança à nação, sobretudo nesse período de pandemia, se empenha em liberar a compra e a posse de armas. E há quem esteja de acordo com o “cada um que se defenda!” E seja o que Deus não quer...

Ainda bem que temos eleição presidencial no próximo ano. É hora de virar o jogo.

 

Leia mais