Justiça manda suspender atividades de barragens de fazendas que tiram água dos rios para plantação de grãos; arrozeiro holandês, empresas dos Estados Unidos e líderes ruralistas são sócios das propriedades no município de Lagoa da Confusão.
A reportagem é de Caio de Freitas Paes, publicada por De Olho nos Ruralistas, 29-06-2021.
Nesta época do ano, com a chegada da estiagem à beira do Parque Nacional do Araguaia, uma cena impactante tem se repetido: centenas de peixes, tartarugas e outros animais aquáticos, sufocados, debatem-se nos leitos secos dos rios. A culpa não é da falta de chuvas, mas de atividades em terras agrícolas.
Em 09 de junho, o juiz Wellington Magalhães, da 1ª Vara em Cristalândia (TO), expediu mandado para “desmobilizar as estruturas físicas, tábuas, aletas ou taludes dos barramentos” de quatro propriedades no município de Lagoa da Confusão, além de determinar a revisão de todas as licenças para barragens na Bacia do Rio Formoso. Em 24 de junho, uma nova decisão suspendeu as licenças de barragens para irrigação no Rio Dueré.
Como em outras ocasiões, os animais morreram sufocados aos pés de barragens, por vezes clandestinas, construídas dentro de grandes fazendas. Nelas, o Rio Formoso e outros são sugados por gambiarras das mais variadas, desde grandes bombas de sucção e encanamentos industriais até barris cortados e motores à querosene, viabilizando açudes particulares.
Veja no vídeo abaixo um desses equipamentos funcionando:
Toda essa engenharia é feita para garantir a próxima safra de arroz e soja ou para dar de beber ao gado. No oeste do Tocantins, as áreas de cultivo ficam às margens de rios, córregos ou lagoas, que, por isso, “têm grande chance de serem contaminados por agrotóxicos e fertilizantes químicos”, de acordo com o Ministério Público Federal (MPF).
Em 2020, De Olho nos Ruralistas já havia alertado sobre o risco hídrico causado pelo agronegócio: “Fazendeiros ameaçam Bacia do Rio Formoso, em Tocantins, com plantações de soja“.
“No período de estiagem, os produtores rurais fecham suas barragens, impedindo que as águas dos rios corram seu destino natural, permitindo que eles captem recursos hídricos sem pausas”, diz Francisco Brandes Júnior, promotor do Ministério Público Estadual (MPE-TO) no Araguaia. “Se a agricultura crescer mais nesta região, ficará insustentável”.
O órgão estadual investiga os responsáveis por sistemas clandestinos de irrigação à beira do Parque do Araguaia, onde o Cerrado se encontra com a Amazônia e o Pantanal, formando várzeas tropicais únicas, ricas em biodiversidade. Além da suspeita sobre os arrozeiros, o MPE apura a responsabilidade de dirigentes de associações ruralistas e de grupos com participação estrangeira.
Nos últimos vinte anos, o Ministério Público Federal investiga crimes ambientais na região, motivando a assinatura de termos de ajustamento de conduta (TAC) por parte dos fazendeiros — acordos nem sempre cumpridos. Também há discórdia quanto à atuação do governo do estado no tema, por meio de seu órgão ambiental, o Naturatins.
Segundo o procurador do MPF Álvaro Manzano, com envolvimento histórico nestas investigações, “alguns membros do Naturatins tiveram uma atuação até criminosa, autorizando áreas de reserva legal em regiões fora das fazendas, descumprindo o Código Florestal”, na década passada. “Àquela época, a responsabilidade já era do Naturatins, e isso gerou controvérsias, reuniões do Ibama com o órgão para resolver os problemas ambientais”, diz.
Procurado pela reportagem, o órgão disse que “realiza constantemente vistorias de inspeção de segurança de barragens e ações fiscalizatórias em todas as estruturas existentes”. “Ao perceber qualquer ação que, por ventura, tenha sido adotada no passado, o Naturatins prontamente reconsidera seus atos, com a suspensão ou cancelamento das licenças que ainda estejam válidas e encaminha, caso necessário, para o setor de fiscalização e monitoramento para as devidas ações”.
Barragens feitas no Rio Formoso para irrigação de arrozais. (Fotos: Reprodução)
Em resposta à mortandade em massa dos peixes em Dueré, o Judiciário estadual determinou uma revisão completa das licenças hídricas em toda a Bacia do Rio Formoso, no Tocantins. Ordenou ainda que os donos da Fazenda Dois Rios desmobilizassem “as estruturas físicas, tábuas, aletas ou taludes” de suas barragens, com risco de multa se descumprissem.
A fazenda tem uma área irrigada de quase 9 mil hectares para o cultivo inundado de arroz em Lagoa da Confusão, na mesma região do desastre ambiental mais recente. Em 2007, o MPF definia a Dois Rios como uma fazenda com “um planejamento modelo e uma ação que se aproxima do desastre ambiental”, com “silos em área de preservação, despejo de dejetos em córregos, desmatamento de ipucas e outros crimes”. Na época, a empresa foi multada em R$ 8 milhões.
O imóvel pertence à Fazenda Dois Rios Ltda., avaliada em quase R$ 98 milhões nos registros da Receita Federal. Por trás da empresa estão Auke Dijkstra, arrozeiro holandês que opera no Tocantins há mais de quinze anos, e Juarez Miró, irmão do deputado estadual do Paraná Plauto Miró (DEM), um apoiador do presidente Jair Bolsonaro.
A Dois Rios também tem conexões estrangeiras, com duas companhias estadunidenses como acionistas: a Harvest Capital Asset Management LLC, registrada no estado de Iowa, pleno cinturão agrícola dos Estados Unidos, e a TRF Holdings LLC, no estado do Texas. Ambas são representadas no Brasil por Pedro Barreto Vasconcellos, advogado no escritório Pinheiro Guimarães — bem no coração da Faria Lima, em São Paulo.
A mesma decisão judicial que atingiu a Fazenda Dois Rios se estendeu para três outras: Canaã, Terra Negra e Ilha Verde. Somadas, as quatro concentram quase 12 mil hectares de terra irrigados, segundo dados da Universidade Federal do Tocantins (UFT).
O observatório procurou os responsáveis pela Fazenda Dois Rios, para que se posicionassem sobre a recente decisão judicial, mas não houve retorno.
O presidente da Associação dos Produtores Rurais do Rio Formoso de Lagoa da Confusão, Reginaldo Pereira de Miranda, é dono de duas das fazendas autuadas. Segundo o MPE, sua Fazenda Ilha Verde foi uma das que desmataram “ilicitamente” mais de 4,2 mil hectares de Cerrado na região.
A informação consta de uma decisão judicial de julho de 2020, que também determinou a suspensão das outorgas de outras dezenove fazendas — algumas, de posse de líderes ruralistas na Bacia do Formoso.
A Aproest faz campanha a favor do governo Bolsonaro.
(Foto: Facebook)
Dias antes da sentença, Miranda esteve em uma reunião oficial com integrantes do governo Bolsonaro, em Brasília. Em 1º de julho, ao lado de dirigentes da Associação dos Produtores Rurais do Sudoeste do Tocantins, a Aproest, ele se reuniu com o secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, César Halum. Na pauta, a agricultura irrigada na bacia do Formoso, “questionamentos do MPE/TO e ações judiciais”. A associação participa de carreatas e manifestações a favor de Bolsonaro.
A mesma sentença de julho de 2020 atinge Nelson Alves Moreira Filho, dono da Fazenda Canaã. Ele é outro acusado de desmatar ilegalmente o Cerrado na Bacia do rio Formoso, junto a Reginaldo Miranda e outros participantes da reunião com o governo federal. A acusação contra ele refere-se, porém, às atividades em sua Fazenda Shallom, em Lagoa da Confusão.
O pai do fazendeiro, Nelson Alves Moreira, foi prefeito do mesmo município até 2020, ano em que foi acusado de improbidade administrativa pelo Ministério Público do Tocantins. Segundo denúncia publicada em 06 de janeiro, o ex-prefeito favoreceu empresas “em troca de favores”, como “a construção de uma barragem em uma fazenda de sua propriedade”.
Não há detalhes sobre a fazenda em questão nesta denúncia de improbidade. Na lista de bens apresentada antes das eleições de 2020, Nelson Moreira (pai) declarou-se dono de duas parcelas da Fazenda Canaã, avaliadas em mais de R$ 13 milhões.
Procurados, Nelson Alves Moreira Filho e seu pai não responderam a reportagem. Reginaldo Pereira de Oliveira não foi localizado.