06 Mai 2021
"Sem ele nossas imensas dificuldades para assegurar a todos o exercício do direito à saúde seriam ainda maiores", escreve Paulo Capel Narvai, professor titular sênior de Saúde Pública na USP, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 05-05-2021.
Com cerca de 15 milhões de casos oficialmente confirmados e mais de meio milhão de óbitos por covid-19 no horizonte epidemiológico de curto prazo, o SUS completa 33 anos em 17 de maio de 2021. Alguns ficam constrangidos quando se fala em comemorar esse aniversário em cenário tão macabro, sob um governo que espalha dor, sofrimento e morte por todo o país. Mas quem conta apenas com o SUS, não tem dúvidas em celebrar a existência do sistema, pois sem ele nossas imensas dificuldades para assegurar a todos o exercício do direito à saúde seriam ainda maiores. Em muitos municípios o SUS é praticamente a única institucional nacional com que conta a população. Não é pouco, embora não baste.
Há muitas críticas ao SUS, e justas, como dentre outras as que denunciam as filas, a má qualidade do atendimento, o descaso com as pessoas, a precarização dos profissionais de saúde (que ainda hoje não contam com uma Carreira-SUS, multiprofissional e interfederativa), a burocratização da gestão e as barreiras ao efetivo controle popular dos serviços de saúde, previsto na Constituição de 1988. Embora não seja correto nem adequado generalizar, preocupa que ainda hoje esses problemas persistam na maioria dos municípios. Mas é preciso não perder de vista que foi justamente contra situações como essas que o SUS foi criado, em 1988. Desde então, não cessou um único dia o empenho e a luta de milhares de cidadãos e trabalhadores da saúde em todos os cantos do país, para construir, consolidar e fortalecer nosso sistema universal de saúde.
Porém, desde que o SUS foi criado, os principais protagonistas do processo político que lhe deu origem vêm sendo, gradativamente, afastados de seus órgãos de direção, em todos os níveis, sob complacência servil do Congresso Nacional, que nada faz para criar a Carreira-SUS, nem impedir que cargos públicos de direção e assessoramento continuem a ser ocupados por pessoas sem qualificação profissional, apenas para atender a todo tipo de nepotismo e clientelismo. Ao contrário, a maioria dos deputados e senadores se beneficia da brecha legislativa, aproveitando-a para indicar apaniguados aos prefeitos da sua base eleitoral. Não obstante, a construção social do SUS seguiu em frente, tamanha a força da energia criadora que esteve em sua origem (a campanha das ‘Diretas Já’ e os movimentos municipalista e da Reforma Sanitária) e que evitou o fenecimento do sistema. Até agora, pelo menos.
O desempenho do SUS na pandemia de covid-19, atenuando a incúria administrativa da União e de boa parte dos estados e municípios, fez com que a maioria da população reavaliasse o que pensa dessa instituição pública. Na capital paulista, por exemplo, pela primeira vez nos últimos anos o SUS foi considerado, em abril de 2021, o melhor serviço público da cidade, ao lado do Metrô, um multicampeão aos olhos paulistanos. Segundo o Datafolha o SUS obteve 2% dos votos em 2015, 6% em 2020 e 13% neste ano(1). A aprovação resulta de um sentimento de vinculação ao sistema e da percepção de que se trata de um serviço público em defesa da cidadania, conforme vem sendo demonstrado no enfrentamento da pandemia.
Mas o golpe de 2016 e, sobretudo, a eleição de Bolsonaro, fizeram acelerar de modo inaudito as agressões ao SUS que, aos 33 anos, está sob ataque feroz. É certo que já nos primeiros anos, o sistema fez um esforço hercúleo para resistir às violências que lhe foram desferidas pelo governo de Fernando Collor (1990-92). Basta mencionar que Collor fez o que pôde para não realizar, em 1990, a 9ª. Conferência Nacional de Saúde, que impulsionaria o processo de municipalização, tendo sido em parte bem-sucedido, pois aquela conferência ocorreu apenas dois anos depois, em agosto de 1992. Em seguida, com Collor fora do governo, a descentralização do SUS foi acelerada, instaurando, finalmente, um novo cenário institucional na saúde pública brasileira.
No presente contexto histórico, em meio à palavra-de-ordem “Fora Bolsonaro!”, o SUS se vê frente a um duplo e gigantesco esforço: por um lado, enfrentar e vencer a pandemia de covid-19; por outro lado, resistir à desorganização do Ministério da Saúde, que o comanda em nível nacional e que, fragilizado, fica muito vulnerável à sanha privatista que tem no ministro Paulo Guedes seu principal mentor no ministério de Bolsonaro.
No dia em que o Senado Federal instalou (27/4/2021) uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar ações e omissões do governo federal no controle da pandemia de covid-19 no Brasil, Guedes participou de uma reunião do Conselho de Saúde Suplementar. No encontro reiterou infantilidades sobre a gênese do SARS-CoV-2 (“o chinês inventou o vírus da Covid”) e a transição demográfica (“todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130 anos”) e explicitou, de modo igualmente infantil, porque é tão importante para o governo Bolsonaro atacar e, se possível, destruir o SUS: o Brasil gastaria “demais” com o SUS e o governo que ele representa não é capaz de enfrentar a corrupção, nem de gerir bem o dinheiro público.
A solução, segundo Guedes, seria entregar tudo para o setor privado, viabilizando o negócio por meio de vales (“vouchers”) para consultas, procedimentos, cirurgias, medicamentos e outros serviços de saúde, que “o governo” distribuiria à população para “atendimento de saúde na rede privada”. Fechou o raciocínio lapidarmente, com a frase-síntese da incompetência do governo de Bolsonaro para coordenar, de modo compartilhado com os entes federativos representados por estados e municípios, um sistema universal de saúde em uma república federativa complexa como a brasileira: “Você é pobre, você tá doente, tá aqui seu ‘voucher‘. Vai no [hospital Albert] Einsten, se você quiser. Vai aonde você quiser, tá aqui o ‘voucher‘. Se quiser, você vai no SUS”.(2)
Nem uma criança, porém, acredita que alguém, tendo em mãos um vale, será atendido no hospital do exemplo. Nem um adolescente crê que um sistema com essas características operacionais e financeiras tenha sustentabilidade econômica num contexto epidemiológico como o brasileiro, marcado por iniquidades e cujas necessidades em saúde não são passíveis, de enfrentamento adequado, integral, por meio de vales-procedimentos. O grave, porém, é que Guedes é o ministro da Economia de Bolsonaro e suas decisões envolvem as vidas de milhões de crianças e adolescentes em todo o país. A única verdade em tudo isso é que, a rigor, nem Guedes crê nas tolices que pronuncia. Diz o que fala para enganar incautos e agradar aqueles aos quais serve – que esfregam as mãos, sedentos por colocá-las ainda mais nos cofres do SUS.
A partir da importantíssima base municipal do SUS,(3) prossegue em todo o Brasil o enfrentamento à pandemia, aos trancos e barrancos, e sem coordenação nacional, conforme denunciei há mais de um ano, em março de 2020(4). A esse respeito, o economista Francisco Funcia, assessor do Conselho Nacional de Saúde, chamou a atenção para o fato de que, significativamente, o Plano Nacional de Saúde aprovado para o período 2020-23 não fixou, até o momento, metas anuais para o enfrentamento da pandemia de covid-19. Segue em curso, portanto, a aposta inicial de Bolsonaro de “deixar morrer” e, paralisado, esperar que a natureza, com a imunidade coletiva, faça a sua parte. Sua tardia, envergonhada e cínica adesão às vacinas é mesmo o que parece: cinismo, com fins meramente eleitorais. Sua empatia-zero e insensibilidade à dor e ao sofrimento alheio deram origem, conforme alguém escreveu em rede social, a uma espécie de nésciopolítica, variante bolsonarista da necropolítica impulsionada desde o Palácio do Planalto.
Além disso, o fato de o Ministério da Saúde ter sido transformado em alvo de destruição institucional desde o golpe de 2016, contribui significativamente para atrapalhar as operações de contenção da pandemia. Sob a presidência de Michel Temer, e tendo à frente Ricardo Barros, seu ministro da Saúde, intensificaram-se os ataques ao SUS e às políticas setoriais que o Ministério da Saúde coordena no âmbito federal. Barros, vale assinalar, foi o primeiro titular da pasta da Saúde que, desde 1988, declarou-se aberta e acintosamente como um ministro anti-SUS. Outros o foram, mas nunca o assumiram. Barros, não. Ele sempre fez questão de afirmar que era “ministro da Saúde, não ministro do SUS”. Negacionista do valor do nosso sistema universal, Barros dedicou-se à sua destruição e à apologia de planos de saúde, que queria “populares”, e de cujas operadoras se tornou um verdadeiro garoto-propaganda.
Bolsonaro dedicou-se, por sua vez, desde seu primeiro dia à frente da presidência da República, em humilhar, desautorizando-os publicamente, os sucessivos ministros de Saúde que o serviram. O que importa, contudo, são as consequências internas ao Ministério da Saúde e ao SUS, do modo Bolsonaro de governar. A desqualificação diária do trabalho feito pelas áreas técnicas da pasta da Saúde é parte de uma tática administrativa posta em marcha com o objetivo de destruir o SUS, matando-o silenciosamente a partir do alto, seja debilitando politicamente o Ministério da Saúde, seja estrangulando-o financeiramente.
O principal recurso legislativo para essa meta destrutiva é a Emenda Constitucional 95 (EC-95), aprovada em 2016, imediatamente após a destituição de Dilma Rousseff. A EC-95 congelou por vinte anos os recursos que financiam políticas públicas, dentre as quais as de saúde. De acordo com economistas vinculados à Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), desde 2018 o SUS perdeu R$ 22,5 bilhões, conforme valores que constam da Lei Orçamentária Anual de 2020. O que era subfinanciamento crônico, dizem, foi transformado em desfinanciamento (5). As consequências são igualmente nefastas. Se atualmente o financiamento do SUS implica um investimento de R$ 3,79/pessoa/dia a previsão é que os efeitos da EC-95 para 2036 reduzam esse investimento para R$ 1,10/pessoa/dia, em valores de 2021. Se hoje é quase um milagre que o SUS ostente os números positivos que registra,(6) sendo um sistema eficiente, bem ao contrário do que afirma o ministro Guedes, nem um milagre será capaz de manter este desempenho sob os efeitos da EC-95. É urgente revogar essa EC de 2016, pois, a cada dia, ampliam-se seus efeitos destrutivos do SUS.
Além do sistemático desmonte de vários programas nacionais (como o de Imunizações, o Mais Médicos, a Saúde Mental, o Farmácia Popular), a desorganização das equipes técnicas e a instauração de um ambiente de trabalho hostil ao SUS no Ministério da Saúde, iniciado com Temer, o governo Bolsonaro vem desestabilizando relações interfederativas com estados e municípios que, meticulosamente, vinham sendo construídas nessas três últimas décadas.
Fazendo uso de ataques político-partidários para tentar ocultar a própria incompetência administrativa, o bolsonarismo busca inverter responsabilidades, fazendo recair sobre governadores e prefeitos, as consequências de suas ações e omissões.(7) Não hesita, nesses processos, em destruir construções institucionais federativas de cujos processos não participou, e para os quais nunca contribuiu com nada significativo. Apenas apropria-se de um árduo, minucioso e difícil trabalho alheio e, sedento de poder, põe-se a destruir o SUS com notável fúria ideológica, motivado por propósitos meramente político-eleitorais. Encontra, porém, opositores que reconhecem no SUS uma das principais conquistas da cidadania consagradas na Constituição de 1988.
A motivação da fúria ideológica anti-SUS serve, porém, ao propósito ultraliberal de privatizar ainda mais. Pouco importa, para privatistas embriagados de ideologia, se o objeto envolvido é um direito social, como a saúde, ou uma empresa qualquer. Privatizar, segundo essa lógica de destruição do patrimônio público, não comporta senões. Privatiza-se, apenas, para deleite ideológico de uns, e bolsos cheios de dinheiro de outros – que, por vezes, são os mesmos.
Em 26/4/2021, véspera da instalação da ‘CPI da Pandemia’, o ministro da Saúde foi ao Congresso Nacional, falar sobre o cronograma da vacinação. Seguindo a orientação do chefe, Marcelo Queiroga repetiu o mantra bolsonarista: o atraso na vacinação seria responsabilidade de governadores e prefeitos, que não fazem o que deveriam, criando “polêmicas” por motivação política. Enquanto segue o jogo de responsabilizações entre as autoridades, os profissionais do SUS, escaldados, desconfiam da CPI, seus rumos e desfecho.
Temem que não resulte em fortalecimento do SUS e que, ao final, seja qual for seus efeitos sobre os processos político-partidários e eleitorais, o SUS e os trabalhadores da saúde sejam responsabilizados pela incúria e irresponsabilidade de dirigentes do poder executivo. Sinalização nesse sentido foi dada claramente pelo ministro Queiroga em evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), em 3/5/2021, ao afirmar que “não podemos aceitar que de cada 10 pacientes que estão entubados, oito morram. É por isso que nós temos tantos óbitos, porque a assistência de saúde não dá a resposta que nós esperamos dela”.(8) A “assistência de saúde” é, para Queiroga, o SUS e seus profissionais.
Os profissionais do SUS têm, portanto, motivos de sobra para desconfiar da CPI, pois se sua instalação foi motivada pela necessidade de investigar ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia de covid-19, esse objetivo foi redirecionado para outros alvos, a pedido e sob pressão do Palácio do Planalto. A tal “nova política” é ficção para enganar eleitores distraídos. Mas os primeiros dias de funcionamento da CPI, sua leniência com Pazuello, aceitando as condições que impôs para depor perante os senadores, e o modo como ouviu ex-ministros da Saúde bastaram para atenuar o ânimo de muita gente que via nessa comissão parlamentar o início do fim do governo Bolsonaro.(9)
Aos 33 anos o SUS está na alça de mira do governo. Sobretudo nas regiões metropolitanas, a rede de Unidades Básicas de Saúde (UBS) e de Pronto-Atendimento (UPA) seguem sob gestão pública e se constituem em filão para operadoras de planos de saúde, sedentas para abocanhar seus recursos. O alvo imediato, porém, são os hospitais federais do Rio de Janeiro (do Andaraí, de Bonsucesso, Cardoso Fontes, de Ipanema, da Lagoa e o Hospital Federal dos Servidores do Estado). Incompetente para administrar esses hospitais federais,(10) que seguem com dezenas de leitos fechados enquanto o estado fluminense monta às pressas hospitais de campanha, e com receio de reações à transferência de suas gestões para o Estado ou Município,(11) pois as unidades foram sucateadas e perderam centenas de profissionais nos últimos anos, Bolsonaro quer, ignorando conselhos de saúde e decisões de conferências de saúde, solucionar problemas de gestão “entregando tudo para a iniciativa privada”, conforme a ortodoxia do figurino neoliberal.
Para isto, mandou seu atual ministro da Saúde iniciar conversações com grupos empresariais interessados no negócio, a pretexto de “contribuir para reformar o SUS”. Em 22/4/2021, Jorge Moll Filho, fundador da rede D’Or de hospitais, foi recebido oficialmente pelo ministro da Saúde. Não é possível compreender, exatamente, como seria sua contribuição para reformar o SUS, mas vale o registro de que o empresário teria, “em pouco mais de um ano”, acrescentado cerca de US$ 11 bilhões à sua fortuna, estimada em cerca de US$ 2 bilhões no início de 2020.(12)
Tem sido assim nestes 33 anos de SUS: seus maiores inimigos têm sido postos para comandá-lo. Honrosas exceções apenas confirmam a regra geral. Agora, não faltam bolsonaristas querendo “pegar o SUS para Cristo”, colocando na conta do sistema o acachapante fracasso brasileiro no enfrentamento da pandemia.(13) Apesar de tudo, o sistema resiste, pois seus trabalhadores resistem. Por essa razão, no aniversário do SUS, o reconhecimento do seu valor, inestimável, deve ser dado aos que, diariamente, dão vida ao nosso sistema universal de saúde. Estes, ao contrário do que se apregoa na mídia e em redes sociais, e também na CPI do Senado, não são heróis, mas apenas servidores públicos profissionais, em busca de reconhecimento, justiça, respeito e trabalho decente em ambientes laborais adequados. Não é muito. Mas tudo isso lhes vem sendo negado há 33 anos.
Notas
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
SUS, 33 anos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU