05 Mai 2021
Após encontro com empresários da Saúde, ministro vai à Fiesp, recoloca tema em pauta evita expor proposta concreta — mas pede cautela com imprensa e redes sociais… E mais: patentes farmacêuticas questionadas também nos EUA.
O texto é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicado por OutraSaúde, 04-05-2021.
Marcelo Queiroga foi à Fiesp ontem. Lá, conversou com empresários e voltou a falar em uma “reforma do SUS” – que já havia defendido em meados de abril. Nas duas ocasiões, o ministro da Saúde não é muito claro. Mas a linha de raciocínio sempre tem a mesma origem: a taxa de mortalidade dos pacientes brasileiros internados em UTIs para tratar a covid-19.
Em abril, numa entrevista ao Sem Censura, ele mencionou achados de uma pesquisa publicada na Lancet para dizer: “A cada dez indivíduos que vão para UTI e recebem intubação, sete morrem. Um resultado que não é bom, que nós precisamos melhorar”. A partir daí, falou que a melhora se daria pela reformulação do sistema de saúde “como um todo”. “Repensar a formação dos médicos, analisar a possibilidade de mudar a assistência hospitalar especializada”, completou, afirmando que a tal “reforma” incluiria a saúde suplementar. “Que atende 48 milhões de brasileiros, cujos resultados nós nem sabemos quais são”.
Ontem, Queiroga retomou o argumento, citando desta vez o número apurado por um estudo da USP e da Fiocruz: “Não podemos aceitar que de cada dez pacientes que estão intubados, oito morram. É por isso que nós temos tantos óbitos, porque a assistência de saúde não dá a resposta que nós esperamos dela”. Mais uma vez, ele queria chegar à seguinte conclusão: “Nós precisamos reformar o Sistema Único de Saúde.” Desta vez, o ministro não mencionou só a atenção especializada, mas afirmou que tal reforma se daria “sobretudo” na atenção primária.
Não é preciso ir muito longe para lembrar da tentativa concreta do governo Jair Bolsonaro de “reformar” a atenção primária. Em outubro do ano passado, o presidente editou o decreto 10.530 que visava incluir as unidades básicas de saúde no PPI, o Programa de Parceria de Investimentos. Em 24 horas, depois de uma tremenda mobilização nas redes sociais que se articulou em tono da hashtag #DefendaoSUS, o governo voltou atrás e revogou o decreto.
Mais tarde, se descobriu que a nota técnica que sustentava a inclusão das unidades de saúde no PPI não era obra só do Ministério da Economia: tinha respaldo do próprio Ministério da Saúde na gestão Luiz Henrique Mandetta.
Embora Marcelo Queiroga até agora não tenha detalhado sua agenda, não é impossível que o ministro retome essa ideia – ainda mais porque ao falar na reforma do SUS ele também disse que “temos um ambiente político muito exigente, com muita divergência, redes sociais muito inflamadas”. Foram as redes sociais que atrapalharam os planos da última vez…
Em busca de pistas sobre de onde vêm os lobbies da vez, temos um post do Instagram do ministro. Dez dias depois da entrevista no Sem Censura, ele recebeu o presidente do conselho de administração da Rede D´Or, Jorge Moll Filho, para “tratar da reforma do sistema de saúde do Brasil”.
Além da reforma, Marcelo Queiroga também reclamou da “imprensa” e pediu que os participantes do encontro da Fiesp repensassem a “estratégia” de anunciar em veículos de comunicação. Isso porque o ministro foi flagrado sem máscara por um fotógrafo da Folhapress quando chegava no saguão do aeroporto de Guarulhos. Essa reclamação teve direito ao seguinte ato falho: “Vai chegar o momento em que vamos desmascarar essas pessoas que não contribuem com o Brasil, até parte da imprensa”.
Num país com mais de 400 mil mortos pela pandemia, o ministro da Saúde também achou tempo para se queixar de críticas que recebe por usar “frases” de Adib Jatene. Mas, no caso, o dito “Curar quando possível; aliviar quando necessário; consolar sempre” é atribuído a Hipócrates…
Um grupo liderado pelo professor da USP Carlos Roberto de Carvalho entregou a Marcelo Queiroga um protocolo para o tratamento farmacológico do coronavírus. O documento contraindica o uso dos medicamentos do kit-enganação do governo: cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina. Mas deixa margem de manobra para o ministro da Saúde, pois se refere apenas ao tratamento de pessoas internadas. Os casos leves da covid-19 continuarão, ao que tudo indica, sendo terra de ninguém. De qualquer forma, caberá a Queiroga decidir se vai publicar o documento que ele próprio encomendou. Será uma bom indicador para medir a sua autonomia em relação ao chefe.
A Moderna anunciou ontem um acordo para oferecer até 500 milhões de doses de sua vacina contra a covid-19 à Covax Facility. As doses terão o menor preço da empresa (apesar de ele não ter sido revelado), e serão oferecidas a 92 países de média e baixa renda. Por não se enquadrar nesse critério, o Brasil vai ficar de fora da entrega. Embora seja um número de doses muito expressivo, a maior parte só vai estar disponível no ano que vem. Para 2020, é esperado o pequeno quantitativo de 34 milhões de doses – e apenas no quarto trimestre.
A notícia vem poucos dias após a autorização da OMS para o uso emergencial da vacina, que foi concedida na última sexta. Até o fim da semana, essa autorização deve ser dada à CoronaVac e à vacina da Sinopharm, ambas chinesas. O aval é pré-requisito para que os produtos sejam ofertados por meio do consórcio, que se viu em maus lençóis com a suspensão das exportações do Instituto Serum, da Índia. Hoje, a maioria esmagadora das vacinas distribuídas pela Covax são as de Oxford/AstraZeneca produzidas lá. Se a Sinovac e a Sinopharm receberem o sinal verde, a China pode se tornar o maior fornecedor mundial de vacinas.
Depois delas, a vacina cuja análise está mais adiantada no cronograma da OMS é a Sputnik V. Mas essa decisão ainda pode demorar um pouco, pois faltam alguns dados e inspeções técnicas. A expectativa é que haja uma resposta em julho.
Comentamos aqui que o governo Joe Biden estava finalmente começando a abrir espaço para a discussão sobre a quebra temporária de patentes, que acontece na OMC. Uma longa reportagem do New York Times descreve as pressões que o presidente tem sentido por todos os lados em relação a isso. A comunidade internacional e a ala mais à esquerda de seu partido apontam a necessidade de ele se comprometer com a proposta – o país tem monopolizado a distribuição de vacinas enquanto a maior parte do mundo fica a ver navios. Por outro lado, a indústria farmacêutica, atenta às movimentações, vem anunciando medidas para aumentar o fornecimento para outros países.
O acordo entre a Moderna e a Covax – uma notícia realmente boa para a enorme parte do mundo que está ficando de lado na distribução das vacinas – pode ser analisado nesse contexto. Embora a empresa tenha dito desde o começo que não imporia suas patentes, os ativistas têm pedido mais do que isso: querem também que os laboratórios compartilhem sua expertise na instalação e administração das fábricas.
Também esta semana – e nesse mesmo contexto –, a Pfizer enviou seu primeiro lote de vacinas à África do Sul, após destravar as negociações que andavam emperradas por lá. Como aconteceu aqui (e em outros países da América Latina), a empresa impôs no contrato cláusulas diferentes daquelas negociadas com países europeus e com os Estados Unidos. O ponto mais problemático era a necessidade de que o país colocasse seus ativos soberanos como garantia. Mas, no caso da África do Sul, a Pfizer é que acabou cedendo e removendo do documento os termos considerados problemáticos. Na segunda-feira, o presidente da empresa também anunciou a doação de R$ 70 milhões em medicamentos para a Índia.
Os representantes da indústria, sempre sob o argumento de que o licenciamento compulsório prejudicaria a inovação, querem que Biden atenda às necessidades globais de outra forma: pressionando as empresas a doar grandes quantidades de vacinas ou a vendê-las a preço de custo. E aí esbarramos no problema que funda a maior parte desse debate: a escassez da produção.
“Dentro da Casa Branca, os assessores de saúde do presidente admitem que estão divididos. Alguns dizem que Biden tem um imperativo moral para agir, e que é uma política ruim o presidente ficar do lado dos executivos farmacêuticos. Outros dizem que revelar segredos comerciais bem guardados, mas altamente complexos, não faria nada para expandir o fornecimento global de vacinas”, diz a reportagem.
Na segunda-feira, Anthony Fauci, principal conselheiro da Casa Branca na pandemia, disse que os laboratórios precisam fazer alguma coisa – seja expandir muito sua capacidade de produção, seja transferir tecnologia para mais laboratórios: “Eu sempre respeito as necessidades das empresas de proteger seus interesses para mantê-las no negócio, mas não podemos fazer isso completamente às custas de não permitir que a vacina que salva vidas chegue às pessoas que dela precisam. Você não pode permitir que pessoas morram em todo o mundo porque não têm acesso a um produto ao qual os ricos têm acesso”.
Enquanto isso, a FDA (a Anvisa dos EUA) deve autorizar o uso da vacina da Pfizer para adolescentes entre 12 e 15 anos até o começo da semana que vem. Uma notícia fundamentalmente boa, já que é importante expandir a vacinação para todas as faixas etárias. Mas que deve nos levar a um cenário em que crianças – com baixo risco para desenvolver doença grave e morrer – serão vacinadas nos EUA antes de profissionais de saúde, idosos e pessoas com comorbidades em boa parte do mundo.
Após a chegada do primeiro milhão de vacinas da Pfizer ao Brasil, o Ministério da Saúde orientou que os estados a apliquem com um intervalo de 12 semanas entre as doses, em vez das três semanas recomendadas na bula. A ideia é que o produto chegue a mais braços em menos tempo.
A Pfizer salienta que os ensaios clínicos só testaram a eficácia no intervalo recomendado. A OMS admite uma ampliação para no máximo seis semanas. Mas o alargamento proposto pelo Brasil é o mesmo adotado pelo Reino Unido desde o começo da campanha de imunização. Na época, as autoridades se apoiaram em estudos que indicavam uma alta eficácia do imunizante já após a primeira dose. Os dados da vida real por lá sugerem que a escolha foi acertada, com redução das infecções e internações. Nos Estados Unidos, que adota o intervalo três semanas, antes da segunda dose a vacina já se mostrou 80% eficaz na prevenção de infecções em profissionais de saúde.
O maior problema aqui é garantir que depois cheguem vacinas suficientes – porque não se sabe por quanto tempo a dose única pode garantir alguma proteção. No caso da CoronaVac, a orientação do ministério para os estados não reservarem uma quantidade para a segunda dose levou vários municípios a suspender a oferta do reforço.
O Brasil tem hoje um contrato para receber 100 milhões de doses. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou ontem que está na “iminência” de assinar outro, de mais 100 milhões.
Começa hoje [04/05/2021] a fase de depoimentos da CPI da Pandemia. Luiz Henrique Mandetta fala a partir das 10h e Nelson Teich às 14h. Dá para assistir pelo canal do Senado no Youtube.
Segundo a colunista Bela Megale, integrantes do Planalto começam a se gabar de que vão conseguir desviar o foco das ações e omissões de Jair Bolsonaro & cia não na CPI, onde há minoria governista, mas através de “400 ações de buscas, apreensão e até mesmo prisão” que podem ser deflagradas pela Polícia Federal nos próximos meses contra governadores e prefeitos. Delegados da PF, por sua vez, afirmam que o governo tenta propagandear “uma suposta relação de subordinação com a PF, o que não existe”. A ver.
Bill Gates, o cofundador da Microsoft, e sua esposa Melinda anunciaram ontem o divórcio depois de 27 anos de casamento. A notícia só importa porque, juntos, eles criaram a Fundação Bill e Melinda Gates, que se tornou a mais influente organização assistencial na área da saúde, responsável por mais de 10% do orçamento não-estatal da OMS. Segundo eles, a decisão não afetará a fundação, que já distribuiu US$ 55 bilhões desde seu lançamento, em 2000.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Governo volta a tramar a “reforma” do SUS - Instituto Humanitas Unisinos - IHU