Elogio das ideias ingênuas. Entrevista com Luciano Floridi

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22 Abril 2021

 

O papel da internet e da tecnologia digital, a inteligência artificial, as responsabilidades da política, a importância da filosofia no futuro do mundo pós-coronavírus. Falamos sobre isso com o filósofo Luciano Floridi, professor em Oxford, em uma conversa abrangente sobre as oportunidades e os riscos que o coronavírus coloca diante de nós.

 

A reportagem é de Luca M. Possati, publicada por L’Osservatore Romano, 20-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Diretor do Digital Ethics Lab em Oxford e presidente do Data Ethics Group do Alan Turing Institute, Floridi é autor de livros que abriram e moldaram o debate contemporâneo sobre a informação e a tecnologia. Ele está convencido de uma coisa: “A pandemia nos fez entender os limites da inteligência artificial. Além de tolices inspiradas na ficção científica, devemos usar a inteligência artificial para fazer o bem ao mundo. O que faz a diferença é a inteligência humana”.

 

Eis a entrevista.

 

Professor, depois da pandemia, a nossa relação com a tecnologia digital mudará?

A pandemia revelou algo paradoxal: a nossa corporeidade nos torna mais digitais, nos faz sentir uma maior necessidade do digital. A pandemia mostrou que somos seres biológicos, e isso nos levou cada vez mais para o digital, o virtual. A razão é simples: no digital não existe vírus ou, melhor, não existe esse tipo de vírus. Essa passagem é um ponto sem volta: caminhamos rumo a uma digitalização cada vez mais marcada da nossa sociedade. Um segundo aspecto é a profundidade dessa mudança, que vai depender da diversidade dos ambientes. Em muitos setores, como os bancos ou os serviços online, a pandemia marca a passagem definitiva rumo à completa digitalização.

Um terceiro aspecto é a direcionalidade: para onde queremos direcionar esse processo. Se deixarmos o controle da digitalização às regras usuais do mercado, teremos uma situação totalmente desequilibrada, ou seja, grandes avanços em um ponto, poucos em outro. Se, em vez disso, essa direcionalidade for mais social, mais Política, com “P” maiúsculo, então teremos uma direcionalidade boa e útil. Neste último caso, o único limite será o da nossa boa vontade e do nosso compromisso. Todos devemos participar. As forças sociais, por um lado, a Igreja, por outro, podem fazer muito. Não devemos tentar adivinhar o futuro, como muitos pretendem fazer. O futuro ainda não está escrito: somos nós que o moldamos. E nisso a solidariedade é fundamental.

 

A direcionalidade deve ser múltipla. Mas isso não levanta o problema de quem guia e coordena as diversas direcionalidades?

Quanto mais os sistemas forem distribuídos, mais alta deve ser a medida da coordenação. Um sistema de alta distribuição requer um poder de coordenação enorme. A única boa coordenação que pode ser feita é aquela que se baseia no consenso, mas um consenso que foi construído de maneira informada e inteligente. Essa forma de coordenação se perdeu na nossa sociedade, que se tornou individualista demais. A questão é que, ao lado do planejamento individual, deve haver um planejamento comum e solidário. A pandemia está nos mostrando isso: se não há um projeto comum, não conseguimos sozinhos.

Precisamos de um capitalismo menos individualista. Devemos entender que o século XX acabou. Os modelos que o século XX nos deu não oferecem mais as respostas certas para os problemas atuais. Mas isso deve ser entendido sobretudo em termos normativos: não podemos mais basear o nosso planejamento comum segundo o modelo das estratégias políticas e sociais elaboradas no século passado. É um defeito de grande parte da nossa classe política: não há um planejamento à altura dos desafios do século XXI. Se houvesse um verdadeiro planejamento, também poderíamos evitar o atual impasse que temos em relação às grandes empresas digitais estadunidenses.

 

O que você quer dizer com este último ponto?

É uma situação paradoxal. Ficamos com raiva se essas empresas não fazem nada, mas ficamos igualmente com raiva se elas fazem alguma coisa. Nós, como sociedade, estamos em uma situação em que, se esses gigantes como a Apple ou o Google se mexem ou não, somos sempre prejudicados. Assim que a crise pandêmica passar, devemos repensar esse sistema com base em regras justas. É preciso lembrar que essas empresas são aterrorizadas pelo fato de que possa chegar uma legislação que as contenha. O poder do legislador é extraordinário. Eu gostaria que a política mantivesse as mãos no volante, e não o pé no acelerador. Uma política que guie, não que persiga. Mas, além da política, existe um fato social: temos medo de adotar um projeto humano que estabeleça regras. Já fizemos isso para coisas que são evidentes para todos, como o terrorismo. Ainda não conseguimos fazer isso para o mundo digital e. Algumas coisas foram bem feitas, como por exemplo a GDPR (General Data Protection Regulation). Mas esse exemplo deve ser ampliado e fortalecido.

 

O que falta à política para fazer essa mudança de rota?

Devemos mudar de visão. Paremos de pensar na internet e em todo o mundo online como se fosse um mundo de comunicação. Não é isso. A internet e o mundo digital são um ambiente, um lugar onde nós passamos a maior parte das nossas vidas. Eles não podem pertencer a uma empresa privada. Uma boa política deve assumir a responsabilidade por isso.

 

Você não acredita que há um problema de base, sobretudo em relação à formação dos nossos políticos?

É verdade. Trata-se de instaurar um círculo virtuoso que levará muito tempo. Com efeito, por muito tempo atacou-se e criticou-se o tecnicismo no poder. Veiculou-se a mensagem de que os técnicos no poder são algo errado. Como se um governo técnico fosse um governo de segunda categoria. Em vez disso, é preciso um momento de ruptura. É preciso entender como podemos colocar no poder as competências e os conhecimentos. Enquanto formos votar pensando que a competência não só não é importante, mas até desqualifica alguém para fazer esse trabalho, não mudará nada.

Precisamos romper esse ciclo. E é possível fazer isso: inteligências não faltam. Na Itália e no restante da Europa, as pessoas competentes são muitíssimas, mas se afastaram da política. É preciso reaproximar as pessoas competentes da política. A reaproximação pode ser feita pela sociedade civil, que deve pedir mais à política. Pedir capacidade, empenho, vontade de fazer o bem comum. Enquanto a sociedade civil não tiver esse impulso, será difícil sair disso.

 

Platão estava convencido de que o filósofo devia se tornar político, isto é, que o caminho para a boa política era acima de tudo filosófico. Se isso ainda for verdade, a filosofia pode desempenhar um papel hoje?

A filosofia tem uma grande oportunidade hoje, a de voltar para a crista da onda. O digital, e mais ainda a pandemia, pode ser uma sacudida para a filosofia. Para mim, a história da filosofia é uma onda senoidal, feita de altos e baixos. Os pontos mais altos são quando a filosofia lida com problemas filosóficos, enquanto os pontos mais baixos são quando a filosofia lida com os problemas dos filósofos. Quando ela lida com problemas autenticamente filosóficos, a filosofia tem uma relação com o mundo viva, até mesmo traumática em certo sentido.

Os verdadeiros filósofos têm a coragem de dialogar com os problemas urgentes do seu próprio tempo. Esses problemas são moldados e transformados pela história; um pouco eles permanecem sempre os mesmos, um pouco eles se renovam. Mas a filosofia se torna irrelevante e quase nociva quando deixa de pensar nos problemas filosóficos e reflete apenas sobre si mesma. Quando Platão é substituído pelos platônicos, Aristóteles pelos aristotélicos, Descartes pelos cartesianos, a curva desce. Os platônicos lidam não com problemas filosóficos como Platão, mas com Platão. Mas muitas vezes esse é um trabalho estéril, escolar, antiquado, sem influência na vida real. É pura filologia, um pouco como colecionar selos.

 

Então, qual filosofia pode responder aos desafios de hoje?

Eu acho que filosofia é design conceitual. Um pouco como o engenheiro, o filósofo identifica os problemas e junta as peças para construir uma solução adaptada àqueles problemas e, portanto, a determinados requisitos. Os problemas filosóficos são perguntas abertas, para as quais não há uma resposta definitiva e que atravessam todos os campos do saber. As respostas são múltiplas. Demos um exemplo: se quisermos fazer uma cadeira, pode haver muitíssimos projetos e soluções, embora todos tenham algo em comum, critérios e condições. Obviamente, uma cadeira não deve me fazer cair. As variações das soluções devem estar dentro de certas restrições. Em outras palavras, a filosofia deve ser projetual: deve entender como projetar o futuro com base no presente. Hoje, a filosofia deve definir o projeto humano do século XXI.

 

Está prestes a ser publicado o seu novo livro: “Il blu e il verde: Idee ingenue per migliorare la politica” [O azul e o verde: ideias Ingênuas para melhorar a política] (Ed. Raffaello Cortina). Por que você escolheu falar de “ideias ingênuas”?

Há um modo de falar da política que hoje deve recuperar a ingenuidade das ideias, do falar bem e simples. A ingenuidade das ideias é uma ingenuidade não de partida, mas de chegada. Ideias ingênuas são aquelas melhoradas pela reflexão. Não são ideias vazias, “astúcias da razão”. Em vez disso, foram esvaziadas das astúcias da razão. Isso também se conecta com o ponto central do livro: a transformação da ontologia da política. A política deve se adequar a uma transformação metafísica enorme, que está ocorrendo debaixo dos nossos olhos. Estamos passando de um pensar em termos de mecanismos para um pensar em termos de redes; de um pensar em termos de coisas para um pensar em termos de relações. O mundo é um conjunto dinâmico de relações. Se quiser assimilar essa revolução, a política deve se tornar uma ciência não tanto da res, mas sim da ratio publica, ou seja, das relações, da cidadania, e não dos cidadãos.

 

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