30 Março 2021
"A relação exclusiva estabelecida por Jesus com os discípulos teria sido indispensável para a criação de um grupo coeso liderando um movimento de massas. A própria noção de 'reino de Deus' teria sido usada por Jesus como um poderoso símbolo religioso de libertação política. Da mesma forma, o mandamento do amor ao próximo deveria ser entendido como dirigido exclusivamente aos membros da comunidade cultural de Israel, a fim de fortalecer a solidariedade interna com o povo em contraste com o ocupante. A atividade taumatúrgica de Jesus deveria ser vinculada ao projeto messiânico, também como forma de legitimação popular. E dessa mesma forma deveriam ser postas em relação com o projeto de reconstituição nacional, tanto seu interesse pelos pecadores e marginalizados da sociedade, quanto sua associação com membros das classes poderosas e cobradores de impostos. Resumindo, a identidade histórica de Jesus não se diferenciaria muito daquela dos numerosos profetas populares da época, de forma que 'sua vida e seu projeto adquiram sentido unicamente no contexto das esperanças e ilusões de seu povo, especialmente aqueles que aspiravam a uma restauração de Israel nas difíceis condições do domínio romano'", escreve Giancarlo Gaeta, historiador, pesquisador sobre o cristianismo, autor de "Il tempo della fine. Prossimità e distanza della figura di Gesù" (Ed. Quodlibet, 2020), em artigo publicado Il Manifesto, 28-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existe uma analogia entre o preceito bíblico que comanda separar a carne do leite e o imperativo categórico que orienta e condiciona uma grande parte da pesquisa histórica, exigindo que o estudioso empenhado em escrever en historien, a fim de manter distância de seu objeto de investigação. Em ambos os casos, se gostaria de superar uma contradição: separar simbolicamente o morto do vivo torna lícito alimentar-se dele em sã consciência, confinar o objeto de investigação em outro lugar torna lícito falar sobre ele com desprendimento científico.
Depois, nada mais resta que opor a posição daqueles que acatam a regra que permite reconstruções históricas "maximamente plausíveis" e daqueles que persistem em aderir a uma abordagem interna da realidade estudada, excluindo qualquer outro procedimento menos elementar. Essa é a posição assumida por Fernando Bermejo-Rubio, estudioso do Cristianismo antigo e autor de um volumoso livro dedicado à pesquisa histórica sobre Jesus: "L’invenzione di Gesù di Nazareth. Storia e finzione" (em tradução livre, "A invenção de Jesus de Nazaré. História e ficção", Ed. Bollati Boringhieri “Saggi”). Pesquisa que, em sua opinião, ainda tende a se eximir da exigência de discernimento crítico devido à “preponderância de discursos caracterizados por uma fantasia em maior ou menor medida desenfreada, em que o processo de mitificação / mistificação deixa uma marca constante” (p. 11).
Daí a necessidade de realizar uma investigação abrangente, capaz de investir sobretudo nas questões metodológicas relativas à constituição de Jesus como objeto de estudo histórico; portanto, propor uma reconstrução de sua identidade livre de uma série de pré-compreensões que operam mesmo além das convicções de fé; dar conta dos processos psíquicos, sócio-religiosos e ideológicos pelos quais se conformou a exaltação e divinização da figura de Jesus; por fim, apresentar uma reconstrução crítica da própria história da investigação moderna sobre a vida de Jesus. No apêndice do volume, o leitor também encontra uma sequência de esclarecimentos sobre questões detalhadas, como o conceito de realeza e a ideia de "Deus Pai" em Jesus, os relatos dos milagres, etc., que não deixam dúvidas sobre a intenção de separar o ponto de vista do historiador daquele de todos que primeiro transmitiram a memória de Jesus que confluiu nas escrituras dos Evangelhos.
Para manter unida essa longa investigação há de fato a recorrência, de ponta a ponta, de um mesmo motivo condutor: a vida de Jesus assim como é contada pelos escritos cristãos do primeiro século nada mais é do que uma "ficção histórica", realizada, adaptando o modelo mitológico do justo sofredor, presente na tradição judaica, para representá-lo como um ser de natureza sobre-humana, única e incomparável. A essa ficção histórica, elaborada longamente pelo pensamento teológico, pela literatura espiritual e pela arte ao longo dos séculos, teria sido adicionada em época moderna e até o presente uma "ficção historiográfica", na medida em que a pesquisa histórico-crítica continuou a "acolher a priori, a natureza especial das fontes cristãs, aceitando a parte essencial de sua mensagem sobre Jesus”(p. 401). A tarefa que Bermejo-Rubio assumiu é mostrar até que ponto a imagem idealizada de Jesus não resiste à prova da avaliação crítica e determinar aquela que "tem mais oportunidades de recuperar a sua identidade histórica" (p. 45). Mas como fazer? Por onde começar para desatar uma meada tão emaranhada? Como resolver uma questão que cresceu enormemente sobre si mesma, sem acabar entrando, por sua vez, em aproximações, polêmicas, em becos sem saída?
Bermejo-Rubio acreditou que poderia encontrar um ponto de fixação capaz de simplificar ao máximo sua tarefa. Ele começou pelo "fim", isto é, do relato da condenação à morte de Jesus, convencido de que se pudesse provar que as causas da crucificação foram com toda probabilidade outras que as alegadas pelos Evangelhos, toda a construção da imagem de Jesus como um indivíduo sui generis e único teria desmoronado como um castelo de cartas, evitando o esforço de lidar com uma literatura que se revelava essencialmente apologética e, portanto, em grande medida historicamente não confiável. A convicção do estudioso é de fato que a única hipótese que leva a uma compreensão adequada da crucificação é que Jesus foi considerado pelo procurador romano como um visionário religioso com pretensões messiânicas e de realeza.
Embora seja impossível esclarecer a extensão e as formas da hostilidade de Jesus ao poder romano devido aos rearranjos sofridos pelas fontes, haveria de fato indícios suficientes, a começar pelas modalidades de sua morte, para supor que, pelo menos no parte final do evento público, ele tenha atuado a favor de uma restauração nacional de Israel, talvez até com o uso de armas. Não se tratou, portanto, de um erro judicial: a condenação de um inocente, nem de um complô das autoridades judaicas sofrida por Pôncio Pilatos; mas sim, da eliminação de alguém que "aspirava à instauração de um utópico reino messiânico" (p. 134).
Desnecessário dizer que à luz desse resultado historiográfico todas ou quase todas as "inconsistências" dos relatos do Evangelho podem ser resolvidas separando claramente o que se acredita ter sido a realidade histórica da figura de Jesus daquilo que foi sobreposto a ela, para promover a imagem de um ser sobrenatural, objeto de um novo culto religioso. Dessa forma, toda a representação da história transmitida pelos Evangelhos muda de sinal. Já a atividade penitencial de João Batista - após a qual Jesus desenvolveria a intenção de dar vida a um movimento popular - teria tido implicações políticas de caráter subversivo.
A relação exclusiva estabelecida por Jesus com os discípulos teria sido indispensável para a criação de um grupo coeso liderando um movimento de massas. A própria noção de "reino de Deus" teria sido usada por Jesus como um poderoso símbolo religioso de libertação política. Da mesma forma, o mandamento do amor ao próximo deveria ser entendido como dirigido exclusivamente aos membros da comunidade cultural de Israel, a fim de fortalecer a solidariedade interna com o povo em contraste com o ocupante.
A atividade taumatúrgica de Jesus deveria ser vinculada ao projeto messiânico, também como forma de legitimação popular. E dessa mesma forma deveriam ser postas em relação com o projeto de reconstituição nacional, tanto seu interesse pelos pecadores e marginalizados da sociedade, quanto sua associação com membros das classes poderosas e cobradores de impostos. Resumindo, a identidade histórica de Jesus não se diferenciaria muito daquela dos numerosos profetas populares da época, de forma que "sua vida e seu projeto adquiram sentido unicamente no contexto das esperanças e ilusões de seu povo, especialmente aqueles que aspiravam a uma restauração de Israel nas difíceis condições do domínio romano" (p. 251).
E visto que tudo ou quase tudo resulta em tal reconstrução histórica, é porque Bermejo-Rubio se dedicou a uma obra sistemática de "purificação" das fontes, eliminando o que especifica seu caráter essencialmente religioso, isto é, sua propriedade de estabelecer um relação com um passado para fazê-lo falar onde está em jogo um essencial. Foi, portanto, proibido escavar nas tensões que perpassam os relatos dos Evangelhos e, portanto, nas incontáveis tentativas de compreensão que se seguiram até hoje. Ele acreditou que poderia explicar, separando o evento de Jesus daquele de seus seguidores, um passado de um presente; ao passo que também para o historiador trata-se de uma questão de compreender, seja qual for o caso em questão.
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O Jesus utopista de Bermejo-Rubio e o uso das fontes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU