05 Junho 2017
“Imaginei – santa ingenuidade – que as batalhas do século XX, além do avanço dos direitos sociais e econômicos, tivessem, finalmente, estendido os direitos civis e políticos, conquistas das “democracias burguesas”, a todos os cidadãos”, escreve Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, em artigo publicado por CartaCapital, 05-06-2017.
Segundo ele, “talvez estejamos numa empreitada verdadeiramente subversiva, ainda que não revolucionária: a construção da República dos Mais Desiguais. Uma novidade política engendrada nos porões da inventividade contemporânea, regime em que as garantias republicanas recuam diante dos esgares da máquina movida pela “tirania das boas intenções”.
“Um sistema – conclui - em que bons meninos exibem sua retidão moral para praticar brutalidades em nome da justiça. O direito e a eticidade do Estado desaparecem no buraco negro do moralismo particularista e exibicionista”.
As delações de Joesley & cia. revelaram o que os sabidos da mídia estão carecas de saber, mas fingem ignorar. Por essas e outras, resolvi retomar o tema das relações entre a Política e os Negócios, assunto tantas vezes debatido nesta coluna.
Insisto: a concorrência entre as grandes empresas e as trapaças ideológicas dos mercados financeiros não só arrastam o Estado para a arena dos negócios, como também atraem a rivalidade privada para o interior das burocracias públicas com o propósito de cooptar cumplicidade, influenciar as formas de regulação e capturar recursos fiscais.
Norberto Bobbio chamou de sottogoverno essa presença das sombras no interior do Estado contemporâneo – o que inclui a influência no processo eleitoral, a propagação desimpedida da corrupção dos funcionários do Estado e, muito importante, o controle da informação e da opinião pelos grandes grupos de mídia.
Max Weber, o sociólogo preferido do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, sabia que o sistema social e as formas políticas construídas pela “sociedade burguesa” seriam destroçados por tensões insuportáveis, na ausência de uma burocracia pública cujos valores maiores fossem a honra, a dignidade, o status, o sentido de dever para com a comunidade.
Weber falava, particularmente, das burocracias envolvidas na prestação jurisdicional e suas prerrogativas de independência funcional, irredutibilidade dos vencimentos, vitaliciedade (que poderia ser suspensa no caso de falta grave) e direito a uma aposentadoria especial.
Essas prerrogativas não concedem um privilégio à pessoa do juiz, mas, sim, pretendem dar ao cidadão a certeza de que será julgado por um magistrado capaz de resistir ao poder econômico e político, aos arreganhos das burocracias autoritárias ou às tentativas midiáticas de atemorizar e de influenciar a prestação jurisdicional.
Tais cuidados partem do princípio de que os conflitos de interesse, algumas vezes entre iguais e outras opondo desiguais do ponto de vista social e econômico – mas sempre iguais como sujeitos de direitos individuais – são constitutivos da sociedade moderna e só podem ser resolvidos pacificamente pelo direito e por seus intérpretes legítimos.
O juiz só serve ao “povo” enquanto intérprete da lei e servo da hierarquia do sistema de prestação jurisdicional. A incompreensão dos fundamentos de suas funções e prerrogativas por parte dos funcionários do Estado escancara as portas para a horda de justiceiros que pretendem violar as garantias individuais dos ricos em nome do desamparo da maioria pobre, esta diariamente submetida ao justiçamento praticado pelos esbirros do abuso.
As relações promíscuas entre burocracias de Estado e a mídia colocam em risco o direito sagrado à privacidade. Ao recrutar a conivência de funcionários da Justiça para “furar” os concorrentes, a empresa jornalística envolve-se em uma aventura perigosa.
A divulgação do grampo Reinaldo Azevedo/Andrea Neves suscitou aleivosias sobre a cumplicidade de jornalistas com encalacrados em “supostas” malfeitorias. Aleivosias ameaçadoras para o exercício da liberdade de informação.
Tempo houve em que o grampo se prestava a finalidades excelentes. O grampo cuidava, então, de adornar os cabelos das estrelas de Hollywood, mulheres inesquecíveis. Rita Hayworth em Gilda ou, melhor ainda, Kim Novak em Vertigo transtornaram os corações masculinos.
Mas, imagino, poucos se deram conta do poder de sedução abrigado nos prosaicos grampos, quase invisíveis, em seu nobre mister de prender os longos cabelos cuidadosamente repartidos de Rita ou as madeixas prateadas de Miss Novak, magistralmente dirigida por Alfred Hitchcock.
As ações de autoridades sucumbem às tentações do protagonismo outrora reservado às deusas do cinema. Dos cabelos das deusas os grampos decaíram para as patranhas dos bárbaros.
Imaginei – santa ingenuidade – que as batalhas do século XX, além do avanço dos direitos sociais e econômicos, tivessem, finalmente, estendido os direitos civis e políticos, conquistas das “democracias burguesas”, a todos os cidadãos.
Mas talvez estejamos numa empreitada verdadeiramente subversiva, ainda que não revolucionária: a construção da República dos Mais Desiguais. Uma novidade política engendrada nos porões da inventividade contemporânea, regime em que as garantias republicanas recuam diante dos esgares da máquina movida pela “tirania das boas intenções”.
Um sistema em que bons meninos exibem sua retidão moral para praticar brutalidades em nome da justiça. O direito e a eticidade do Estado desaparecem no buraco negro do moralismo particularista e exibicionista.
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