09 Março 2021
"Robôs, satélites e criptomoedas. O setor que se apresenta como futuro do Brasil e da produção de alimentos não consegue responder a uma pergunta básica: o que será dos trabalhadores?"
A reportagem é de Nathália Iwasawa e Marcos Hermanson, publicada por O joio e o trigo, 08-03-2021.
Compreender quais serão as próximas fronteiras tecnológicas a serem desbravadas pelo agronegócio parecia uma tarefa penosa. Um trabalho de meses que, talvez, nem respondesse a todas as perguntas que tiravam a nossa paz.
Após apenas algumas semanas, porém, chegamos a um resumo: não se sabe ao certo se estamos no agro 4.0 ou se já saltamos ao 5.0 – há quem fale em 6.0. Não se sabe bem qual é o conjunto de inovações que estão sendo criadas. Sabe-se que corporações do agronegócio e da alta tecnologia estão caminhando de mãos dadas. Mas, ao final, a equação ignora totalmente um “detalhe”: o impacto que tudo isso terá na vida e no trabalho de milhões de agricultores familiares e trabalhadores da zona rural.
“Algumas pessoas ficarão pelo caminho no processo de automatização de cérebros”. A fala do representante de multi-industry business development da IBM, Luiz Carlos Faray de Aquino, foi um dos raros momentos nos quais se admitiu a possibilidade de que as tecnologias do agro 4.0 causem desemprego. Durante um webinar, respondendo à pergunta de um espectador, ele afirmou que uma possível solução para o problema seria a instituição de uma renda básica.
No geral, porém, as dezenas de relatórios e análises que encontramos; as entrevistas que fizemos; as organizações governamentais que trabalham com o tema; todos têm se ocupado mais em listar inovações que em pensar nos impactos sociais, ambientais e econômicos das novas tecnologias.
Calma. Para chegar lá, vamos começar pelo começo: entender o que as figuras da área vêm chamando de “Agro 4.0” – a incorporação de tecnologias digitais avançadas como big data, inteligência artificial e robótica à produção agrícola. Entender esse movimento significava, para nós, saber quais técnicas e ferramentas ele mobiliza e quais são suas consequências do ponto de vista social, ambiental e econômico.
Silvia Massruhá, chefe-geral da Embrapa Informática, é considerada uma das principais especialistas em agricultura digital – ou Agro 4.0 – no Brasil. Ela explica que “a primeira etapa [de desenvolvimento da agricultura] foi a grande Revolução Verde, com o desenvolvimento das novas commodities e novos fertilizantes. Foi quando começou a expansão da soja do Sul do país para o Centro-Oeste. Esse foi um grande marco”.
De fato, a ruptura drástica da agricultura como forma de subsistência e trabalho manual deu-se principalmente nos anos 1960 e 70, quando passamos a encarar a solução da fome mundial a partir da produção de alimentos em escala e controle industrial. Foi aí que o antigo latifúndio virou empresa agrícola, ou “agroindústria” – processo que se acentuou no Brasil nos anos 1990, com a agricultura cada vez mais atrelada à exportação.
Por sinal, o diretor de inovação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), Cléber Soares, citou a palavra “indústria” ao menos uma dúzia de vezes durante a entrevista que concedeu para esta reportagem.
Para ele, o Agro 4.0 está limitado à agricultura de precisão, que abarca sensores de telemetria, algoritmos e análise de dados, principalmente para o monitoramento de solo e clima. Mas essa seria uma fase já ultrapassada: “Com o advento da conectividade 5G, das tecnologias wifi 6.0, da conectividade utilizando satélites, já existe o conceito hoje de indústria 5.0, e a agricultura está copiando.”
A questão da nomenclatura parece não ser um consenso. Uns batem no peito e dizem que no Brasil o Agro, sempre tech, (já) faz uma transição do 4.0 ao 5.0. Mais ousados ainda, outros dizem que essas são terminologias atrasadas, e que na verdade estaríamos no estágio 6.0. Enquanto isso, uma minoria comedida afirma que “no Brasil a gente ainda tem que utilizar muita agricultura até chegar na 4.0”.
Silvia, da Embrapa, enfatiza que a fase chamada de 4.0 é a consolidação do uso de dados que estão sendo gerados na agricultura de precisão, modelo já praticado pelo agronegócio. “O agro 4.0 é uma agricultura baseada em conteúdo digital, em tecnologia de ponta. E aí eu tô falando de biotecnologia, nanotecnologia, tecnologia de informação, agricultura de precisão, automação, etc”.
Por exemplo, na agricultura de precisão, um sensor mede a umidade do solo e processa números, como a quantidade de água a ser usada em cada mês do ano de acordo com as estações e o desenvolvimento da planta. No Agro 4.0 esses dados serão combinados com outras informações em uma base, que dará a previsão de desperdícios e crescimento da safra. São informações que podem facilitar ou dificultar investimentos, esfriar ou aquecer o mercado.
A essa altura, dados valem ouro. É o que mostra o relatório recém-publicado pela GRAIN, uma organização internacional que busca apoiar pequenos agricultores e movimentos sociais em defesa da sociobiodiversidade dos sistemas alimentares.
Os autores afirmam que “assim como em outros setores da economia, as grandes corporações — empresas de tecnologia, provedoras de telecomunicações, redes de varejo, empresas de alimentos, agroindústrias e bancos — estão todas na disputa para coletar o máximo possível de dados sobre todos os nós (nodes) do sistema alimentar e encontrar formas de lucrar com eles”.
Para a chefe-geral da Embrapa Informática, esse momento de digitalização do agronegócio brasileiro tem como objetivo atender às demandas internacionais de fornecimento de commodities para “alimentar o mundo”.
A aposta é que o Brasil se torne o grande celeiro capaz de produzir alimentos para os quase dez bilhões de indivíduos que habitarão o planeta em 2050. Antes de conversar conosco, Massruhá já havia defendido que, na metade deste século, 40% da produção mundial de alimentos caberá ao país.
É uma espécie de destino-manifesto (do Brasil como produtor e fornecedor mundial de commodities) que os principais representantes do Agro 4.0 repetem à exaustão. Afinal, “o agro é nosso caminho e nosso DNA”, conforme pontuou um funcionário da multinacional californiana Trimble em um evento online dedicado a debater o tema.
Os encontros aconteceram virtualmente em 2020 por conta da impossibilidade de reunir quase 160 mil pessoas, como se deu na sua última edição, em 2019, no interior de São Paulo.
O evento é gigante não só pela ocupação de uma área equivalente a 52 campos de futebol, mas chama atenção principalmente por outros números que mobiliza: R$ 2,9 bilhões em negócios em cinco dias, também na última edição presencial.
Uma das ideias muito defendidas pelas figuras do Agro 4.0 é que as novas tecnologias são sustentáveis, dada a precisão com que detectam “imperfeições” na lavoura.
“Você pode identificar, por exemplo, o lugar onde tá com problema e pulverizar só aquele lugar com o drone”, diz Silvia Massruhá. “Tudo isso são inovações tecnológicas que permitem melhorar a gestão, o planejamento. Você passa da agricultura de precisão para a agricultura de decisão, para você ter uma agricultura mais preditiva.”
Para Paulo Alvim, secretário de Inovação do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTI), o Agro 4.0 vai permitir um ganho em “rastreabilidade e eficiência”: “No primeiro ciclo [de inovações] da agricultura, foi possível produzir onde não se podia. No segundo ciclo, ganhamos em sustentabilidade. Estamos substituindo insumos químicos por bioquímicos e fazendo a integração floresta-lavoura-pasto”, diz.
A professora Fabiana Scoleso, do departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT), pesquisa sobre o Agro 4.0 e o mundo do trabalho no pós-doutorado.
Scoleso começou a se interessar pelo tema depois de pesquisar por dois anos o funcionamento do Acampamento Dom Celso do MST, em Porto Nacional (TO), onde teve contato com as implicações sociais do avanço tecnológico no campo e da expansão da fronteira agrícola: camponeses expulsos de suas terras, pulando de propriedade em propriedade atrás de bicos, alguns deles buscando refúgio com os movimentos de luta por reforma agrária.
Ela questiona a ideia de que o Agro 4.0 é compatível com a sustentabilidade: “Se a gente está sempre atendendo ao mercado internacional e tem que corresponder temporalmente a esse mercado, como a gente vai, de fato, produzir de maneira sustentável, respeitando o tempo da natureza?”.
Essa premissa vai de encontro à tendência do agronegócio de acelerar o tempo de todos os elos da cadeia. Dentro e fora da porteira, o objetivo é ter o controle na palma da mão: da semente que certamente dará uma colheita farta à rastreabilidade do alimento. Para isso, já se fala em usar criptomoedas para garantir a validade das transações da cadeia de suprimentos.
Instituições como MAPA, Embrapa e debatedores convidados pela Agrishow encampam a ideia de que a pandemia do novo coronavírus teve ao menos uma boa consequência: a abreviação dos processos de transformação tecnológica no campo.
“Muitas vidas serão ceifadas, a gente se compadece, mas a pandemia será um acelerador. O Brasil vai sair melhor, dando mais valor ao tempo, buscando reduzir desperdícios, cantando pneu”, disse o presidente da fábrica de veículos agrícolas John Deere no Brasil, em um webinar organizado pela FGV Agro.
Da mesma forma, para um representante de uma das maiores cooperativas do Brasil, a Coopercitrus, “o primeiro desafio foi estabelecer a agricultura como uma atividade essencial [durante a pandemia]”.
A aceleração do ritmo do agronegócio parece justa quando se enxerga o setor como fornecedor de alimentos para o mercado interno, mas a realidade não é como a propaganda veiculada incansavelmente pela rede Globo.
Scoleso explica que a segurança alimentar e nutricional do povo brasileiro é colocada em xeque porque boa parte da produção agrícola é voltada para exportação. Isso acontece quando o alimento é visto como uma mera mercadoria, e não como um direito humano.
“Embora o Brasil tenha batido, em plena pandemia, recorde de produção de alimentos, em especial da soja, [este] é o óleo mais caro no ambiente doméstico”, lembra.
A desvalorização do real no mercado internacional contrasta de forma inequívoca o desabastecimento interno. É uma conta simples: com o dólar nas alturas, torna-se mais lucrativo vender a produção para países mundo afora. Dentre a clientela, o destaque vai para a China, que compra mais de 30% das nossas commodities. Aqui, nas terras onde tudo é produzido, os preços dos alimentos nas prateleiras não deixam dúvidas que a inflação disparou, colocando o brasileiro cara a cara com a insegurança alimentar.
Durante o ano de 2020, o litro do óleo de soja chegou a custar R$ 10 em algumas cidades do país. Da mesma forma, preços como o do arroz e da carne têm batido recordes, enquanto a indústria celebra a alta nas exportações.
Durante a apuração nos perguntamos se essas novas tecnologias empregadas no campo brasileiro – tratores e colheitadeiras com piloto automático, drones pulverizadores, sensores digitais de solo – acabariam acentuando o desemprego no setor agrícola. O tema foi tratado apenas de forma superficial, como um assunto incômodo, na maior parte dos fóruns de discussão a que tivemos acesso.
Geralmente, a possibilidade de desemprego em massa era descartada. “A função da máquina não é criar desemprego, pelo contrário, é aumentar a produtividade da mão de obra”, como afirmou Paulo Hermann, CEO da John Deere Brasil.
Para o executivo, existe “uma tendência global de movimentação das pessoas do campo à cidade. A máquina entra exatamente na compensação dos braços que se foram, e na alimentação das bocas que aumentam”.
O secretário de Empreendedorismo e Inovação do Ministério da Ciência, Paulo Alvim, vai na mesma linha: “Os novos postos vão remunerar melhor. Você vai incorporar profissionais trabalhando em análise de dados e imagens, combinando inteligência artificial e trabalho humano.”
Fabiana Scoleso faz críticas a essa leitura: “Ainda que a tecnologia crie novos postos de trabalho, novas funções em novos elos dentro da cadeia de valor, a gente não pode esquecer que ou ela cria trabalho altamente especializado – com um número menor de postos – ou ela cria trabalho altamente precarizado.”
A pesquisadora se refere aos trabalhos sazonais, principalmente durante a safra, e à manutenção da infraestrutura das propriedades, como a construção de cercas, que, por vezes, são trabalhos ainda mais pontuais.
“Eles vão fazer os piores trabalhos por valores muito pequenos sem qualquer tipo de correspondência com o salário mínimo ou qualquer medida protetiva de trabalho”, explica. De acordo com relatório publicado pela ONG Repórter Brasil, a maior parte dos casos registrados de trabalho escravo estão na zona rural.
Por fim: quem desenvolve as tecnologias do Agro 4.0 e para quem elas são pensadas? Será que vão trazer, de fato, uma agricultura mais sustentável, humana e produtiva, ou “será que vão levar a uma concentração absoluta de riqueza na mão de poucos”, como perguntou o secretário de Inovação do MAPA, Fernando Camargo, em um evento sobre o tema promovido pela FGV Agro?
Quando fizemos essas mesmas perguntas a Paulo Alvim, do MCTI, ele deu a entender que as tecnologias atualmente existentes não contemplam a agricultura familiar e os pequenos produtores, mas que essa adaptação deve ser encarada como uma “janela de oportunidades”.
Assim como o MAPA, o Ministério da Ciência e Tecnologia está engajado no avanço da agricultura digital no Brasil. Para isso, no final de 2019 as pastas juntaram forças na criação da Câmara Agro 4.0. Segundo texto institucional publicado pelo MCTI, a Câmara “tem como objetivo promover ações de expansão da internet no campo e a aquisição de tecnologias e serviços inovadores no ambiente rural”.
Procuramos pelas atas e listas de presença das reuniões dos Grupos de Trabalho (GT’s) da Câmara pela Lei de Acesso à Informação (LAI). Obtivemos a resposta de que os trabalhos foram retomados em outubro de 2020, após um período de suspensão das atividades causado pela pandemia.
Observamos minuciosamente os documentos e percebemos que, além das presenças ilustres do governo, figuravam nas reuniões entidades privadas de pesquisa e inovação, como o Instituto Eldorado e P&D Brasil, empresas produtoras de agrotóxicos, como a Monsanto, e de telecomunicações, como a TIM.
A falta de reuniões durante a pandemia não significa que a Câmara tenha ficado parada. O próprio diretor de inovações do MAPA sinalizou que houve liberação dos recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) destinado à Câmara Agro 4.0.
Se somados os valores definidos para o MAPA e MCTI, o total passa dos R$ 25 milhões. Não foi anunciado quanto desse montante será utilizado para as ações dos GTs.
Em tese, a agricultura familiar também será contemplada com recursos do estado, dessa vez pelo programa ATER Digital, lançado em outubro de 2020 pelo governo federal. O objetivo é financiar as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) para empresas públicas e privadas que prestam serviços de extensão rural, ampliando, assim, o acesso aos produtores rurais. O MAPA anunciou que destinará R$ 40 milhões para o programa.
Scoleso faz ressalvas quanto à capacidade da agricultura familiar de fazer frente à lógica do agro. “Na medida em que o governo regula a agricultura familiar, ela acaba indo mais pro campo da subordinação do que pro campo da resistência. Ela pode ser resistência, mas o governo tem interferido muito na questão da agricultura familiar a ponto de deslocar o seu eixo”, analisa a pesquisadora.
Quem faz a resistência, então? Os movimentos pela reforma agrária, destacando-se, aí, o MST. Quem explica essa situação é Messias Vieira Barbosa, coordenador regional do movimento no Tocantins, estado para onde a fronteira agrícola tem se expandido. Ele relata um aumento na procura de trabalhadores rurais pelos acampamentos do movimento e atribui essa tendência aos despejos dos trabalhadores das grandes fazendas.
Para ele, subtrair a lógica do agronegócio das práticas dessas famílias é um grande desafio. “Vende-se a ilusão de que o emprego é a salvação e a pessoa acaba se iludindo. Aí ela deixa de cuidar da sua roça e vai cuidar das terras, da fazenda ‘do seu fulano de tal’, ou da máquina, ou do laboratório onde fazem os experimentos.”
Messias conta que “às vezes eles [os trabalhadores despejados] estão muito ligados à essa concepção de ‘meu lote, minha terra’, então até chegar [em um pensamento mais coletivo] leva em torno de três a cinco anos”.
A essa altura, já deu pra perceber que a agroecologia, em todo seu diverso escopo de pequenos agricultores, não experimentará essa fase mais aguçada das transformações tecnológicas. Nesse tipo de produção, não cabem drones de pulverização, inteligência artificial, rastreabilidade da produção por criptomoedas. A digitalização tem como alvo principal o agronegócio e, na rebarba, a agricultura familiar atrelada ao agro.
A angústia de Messias durante a entrevista tem o mesmo tom de incertezas com o qual finalizamos essa apuração. Do lado de cá conseguimos monitorar pelas telas – pelo menos enquanto a vacina não chega para nós – os eventos online e as movimentações do Agro 4.0.
Foram nove entrevistas, cerca de dez horas de eventos online, textos e documentos e, ainda assim, depois de tudo isso, não sabemos exatamente o que virá.
Por mais que se fale com entusiasmo sobre o Agro 4.0, parte das suas alegadas vantagens nos pareceram exageradas. Uma solução tecnológica resolverá problemas históricos que assolam o campo brasileiro, começando pela própria distribuição e uso da terra? Quem se beneficiará das fazendas inteligentes e das adubadoras operadas a quilômetros de distância? Jogar veneno em uma área menor é mesmo sustentabilidade?
Talvez as perspectivas não sejam as melhores, mas, como pontuou Scoleso, em acalanto ao fim da entrevista, “todas as condições e contradições sempre são produtoras de possibilidades”.
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O agro é tech, e os trabalhadores não são pop - Instituto Humanitas Unisinos - IHU