26 Janeiro 2021
O novo livro de Massimo Faggioli, “Joe Biden and Catholicism in the United States” [Joe Biden e o catolicismo nos Estados Unidos, em tradução livre], chega bem a tempo para aqueles de nós que estão tentando entender o estuário onde a política e a religião se encontram nos Estados Unidos neste momento da história. É um momento em que muitas questões fundamentais estão envolvidas, um momento muito prenhe de possibilidades e muito repleto de dificuldades.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicado por National Catholic Reporter, 25-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O livro de Faggioli explora essas questões fundamentais com profundidade e intuição. Ele é excelente em elucidar o contexto imediato deste momento hediondo em que um presidente católico e um papa profundamente pastoral podem fazer causa comum em uma variedade de questões.
“As relações entre os Estados Unidos e o Vaticano claramente sofreram durante o governo Trump, resultado da inegável incompatibilidade entre as visões de mundo do Papa Francisco e do presidente do ‘Make America Great Again’”, escreve ele.
“Mas igualmente óbvia é a sobreposição que existe entre o apoio a Trump entre os eleitores cristãos praticantes (incluindo muitos católicos) e a tentativa de setores influentes da Igreja Católica estadunidense de deslegitimar o Papa Francisco tanto eclesialmente quanto politicamente.”
Novo livro de Massimo Faggioli (Foto: Villanova University)
No entanto, ele vai mais fundo. O cerne do livro é uma exploração do fato de que:
“Tanto [o Papa] Francisco quanto Biden têm a árdua tarefa de exercer a liderança institucional em um período de turbulência em todos os níveis: ambiental, econômico, social, cultural e político. Suas eleições são, ambas, sinais encorajadores da vitalidade dos sistemas institucionais que eles lideram. Mas não está claro o quanto o nível institucional pode fazer para lidar com a quebra do equilíbrio em todos os outros níveis.”
Para ambos, sua tarefa é complicada e definida pelo fato de que a oposição a eles tende a se unir nas mesmas pessoas: a ala anti-Francisco da Igreja Católica consiste no mesmo conluio de fanáticos anti-Biden que elaboraram ou aplaudiram a ofensiva declaração da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos no dia da posse.
Nenhum teólogo é melhor do que Faggioli para explicar e criticar as várias maluquices de direita que surgiram nas vinhas do catolicismo estadunidense nos últimos 30 anos. Ninguém, que eu saiba, notou anteriormente, como Faggioli, que entender as tensões entre os católicos arquiconservadores que resistem e se ressentem do Papa Francisco e aqueles católicos, como o novo presidente, que o amam “devem ser entendidas no contexto da transição entre dois paradigmas muito diferentes típicos dos círculos intelectuais católicos conservadores nos Estados Unidos durante a última década. É a transição do movimento neoconservador católico dos anos 1980 e 1990 para um levante de revolta e ressentimento mais próximo do tradicionalismo anti-Vaticano II do que de uma crítica cultural e teológica legítima de alguns aspectos do período pós-Vaticano II”.
Ele reconhece corretamente que as distorções do magistério do Papa Bento XVI – e os esforços até para minimizá-lo – desempenharam um papel nessa radicalização da direita católica estadunidense. Ele observa que “o Papa Francisco é um católico anti-ideológico que não fez mistério do seu desejo de cancelar as ‘guerras culturais’. Isso foi percebido desde o início por alguns bispos como algo incompatível com os desafios que a Igreja enfrenta nos Estados Unidos”.
Faggioli extrai as implicações políticas claras desses contratempos teológicos – e as consequências teológicas das mudanças políticas que estão ocorrendo. “O destino do catolicismo de Biden nos Estados Unidos está entrelaçado com o destino do pontificado do Papa Francisco (isto é, seu destino de longo prazo, mesmo após o próximo conclave); ambos dependem daquilo que se tornará, nos Estados Unidos, a proposta de Francisco de um catolicismo anti-ideológico e antimoralista.”
Essa campanha anti-Francisco é, para a eclesiologia, aquilo que Donald Trump foi para o governo constitucional: perturbadora e vulgar. “Toda a recepção do magistério de Francisco, especialmente nas questões sociais, é a história de uma rejeição mais ou menos sutil por parte do establishment católico, com tons e métodos mais subversivos do que a dissidência católica pós-conciliar dos anos 1960 e 1970”, escreve ele.
Seu relato detalhado da reação de muitos bispos às acusações proferidas pelo desafortunado ex-núncio e arcebispo Carlo Maria Viganò – e seu apelo para que o papa renuncie! – deixa claro que, por algum tempo, a Igreja dos Estados Unidos é um ponto fora da curva na Igreja universal, e que setores dirigentes da Igreja estadunidense estão em um estado protocismático.
Nem todas as tensões entre Roma e a Igreja dos Estados Unidos são atribuíveis a clivagens ideológicas. Parte disso é simples miopia, que atinge tanto a direita quanto a esquerda nos Estados Unidos:
“O pontificado de Francisco procurou reconhecer e ouvir uma Igreja Católica global e policêntrica. Mas essa tentativa de redefinir a ideia do ‘centro’ do catolicismo tem consequências importantes para a Igreja estadunidense, que tende a se considerar como o centro do mundo – consciente ou inconscientemente, tanto em seu componente conservador (com seu esforço contra o liberalismo teológico, a pluralização do mundo religioso e a secularização) quanto em seu componente progressista (com seus esforços em favor de uma universalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, uma teologia feminista da libertação das mulheres e uma teologização da política identitária).”
Raro é o acadêmico católico disposto a convocar ambos os extremos ideológicos, e a disposição de Faggioli em fazer isso apenas aumenta a convicção de que ele é um dos poucos teólogos acadêmicos que não está preso em uma tediosa câmara de eco com acadêmicos seculares .
Os subcapítulos de Faggioli sobre a “Metamorfose eclesial nos Estados Unidos e suas consequências internacionais” são extremamente bem feitos, especialmente seu tratamento do papel e da influência da mídia católica conservadora.
Da mesma forma, no subcapítulo seguinte, “O governo Biden e o Vaticano”, Faggioli usa um importante discurso de 2019 do cardeal secretário de Estado, Pietro Parolin, no qual ele falou de uma “neutralidade positiva” para discernir as oportunidades e os pontos de potencial conflito entre o novo governo em Washington e o Vaticano do Papa Francisco. Realidades geopolíticas como a ascensão da China apresentam desafios diferentes para os dois católicos mais proeminentes e, em sua maioria, mais simpáticos do mundo.
O capítulo final é um tour de force, mais especialmente o subcapítulo intitulado “As ‘guerras culturais’ como um estilo de vida eclesial e político”. A decisão de empregar a palavra “estilo de vida” é brilhante, nova e devastadoramente precisa. Sua discussão sobre a diferença entre secularismo e secularidade deveria ser leitura obrigatória para os nossos bispos insatisfeitos.
Se eu pudesse recomendar uma frase de todo o livro, seria esta:
“O desafio, tanto político quanto eclesial, na presente emergência, é reconstruir um senso de unidade que marginalize os extremos e trate o instinto sectário como a epítome do espírito não católico.”
É assustador reconhecer a verdade da insistência de Faggioli de que a polarização que muitos católicos, incluindo muitos bispos, ajudaram a gerar se tornou um vício.
Uma das minhas frustrações com este livro – sem dúvida, fruto da sua publicação às pressas – é que ele contém algumas observações que você pode dizer que estão repletas de sentido e significado, mas não são suficientemente explicadas para realmente se entender o seu sentido ou significado. Por exemplo, quando Faggioli fala da “escolha de John Kennedy de privatizar seu catolicismo e secularizar a presidência”, eu não tenho certeza do que ele quer dizer com secularização nesse contexto. Kennedy manteve seu catolicismo à distância, mas estava profundamente envolvido na religião cívica do cargo e usou essa religião em suas batalhas retóricas da Guerra Fria.
Quando ele escreve que “as simpatias dos bispos dos Estados Unidos por Trump também dependiam do fato de que eles e o catolicismo dos Estados Unidos em geral não precisavam aprender a democracia lidando com o fascismo, como os católicos da Europa antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial”. Tenho certeza de que ele tem algo a dizer, mas não tenho certeza do quê, e as frases que se seguem contribuem pouco para dar corpo precisamente ao modo como a democracia foi aprendida de forma diferente nos Estados Unidos e o que isso tem a ver com o “abraço” dos bispos em Trump.
Eu suspeito que isso tem menos a ver com o modo como eles aprenderam a democracia e mais com o acerto de contas que os europeus precisaram fazer depois da sua cumplicidade com o fascismo e o consequente entendimento da consciência e do seu papel na vida cívica, mas eu não tenho certeza disso, porque a sua prosa aqui não é clara.
Outras vezes, Faggioli está simplesmente errado. Ele começa com um levantamento histórico, e são sempre esforços traiçoeiros. Mesmo assim, ele está enganado quando escreve que a “aceitabilidade dos católicos no cenário político nacional foi fortalecida pela compatibilidade da sua fé com a oposição tradicional do liberalismo da Guerra Fria ao comunismo, mas também pelo tratamento da questão da segregação racial nos Estados Unidos como irrelevante teológica e politicamente”.
Na época da Guerra Fria, o Partido Democrata já havia testemunhado uma debandada em sua convenção nacional de 1948, de modo que a segregação dificilmente era “irrelevante” politicamente naquela época.
Uma dificuldade a mais – mais de omissão do que de erro – é a falha de Faggioli em reconhecer a importância crucial da migração católica para os subúrbios no pós-guerra como a condição sine qua non para todas as outras mudanças eclesiais e políticas que ele descreve. Ele está certo ao dizer que o Vaticano II e especialmente o seu magistério sobre a liberdade religiosa ajudaram os católicos a entrar na vida política tradicional, embora Kennedy tenha sido eleito antes mesmo de o Vaticano II ter começado.
E ele tem razão ao afirmar que foi a reação ao panorama pós-conciliar que viu o nascimento do catolicismo conservador moderno, embora certos precursores pré-conciliares, como o pudor da Legião da Decência, tenham fornecido um solo fértil para iterações posteriores da teologia pélvica.
Mas a perda de uma identidade especificamente católica e a consequente e relativa diminuição de quaisquer reivindicações que o ensino social católico pudesse ter sobre os eleitores católicos começaram quando os católicos se tornaram ricos e se mudaram para os subúrbios, onde a sua identidade tinha mais a ver com o carro que você dirigia do que com as orações que você recitava.
Essas dificuldades são mínimas quando comparadas com aquilo que o texto como um todo realiza. Não é apenas o fato de que Faggioli, assim como Alexis de Tocqueville antes dele, traz um olhar estrangeiro para a sua tarefa, permitindo-lhe ver coisas que nós, nativos, perdemos de vista. Nem que Faggioli tenha mergulhado em um terreno sociocultural profundamente complicado e o tenha dominado. Nem que Faggioli seja, simplesmente, o mais notável eclesiologista estadunidense do nosso tempo, embora ele o seja.
O mais revigorante sobre este livro é que ele contém teologia. Ele faz distinções, levanta argumentos e apresenta evidências. Ele não faz afirmações não comprovadas. Em uma época em que muitos teólogos confundem extremizar o discurso para serem publicados com o fato de serem proféticos, Faggioli entende que uma das questões mais centrais em jogo na luta contra o fascismo e o protofascismo é precisamente a demanda de que evidências e argumentos sejam exigidos, e não discursos bombásticos apropriados para um ativista, mas deslocados quando vindos de um acadêmico.
Faggioli não busca se sentar à melhor mesa, ele quer convencer o leitor. E seu texto é a explicação mais convincente sobre a situação da Igreja nos Estados Unidos que eu li em muito tempo. Compre este livro. Leia-o com uma caneta na mão. Escute de perto as suas páginas. Mantenha-o ao seu alcance. Eu recomendo.
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Livro de Massimo Faggioli sobre Biden e catolicismo explica o atual momento crítico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU