06 Janeiro 2021
"O fato concreto é que as águas da Transposição não estão chegando ao seu destino final", alerta João Suassuna, engenheiro agrônomo e pesquisador titular da Fundação Joaquim Nabuco, em artigo publicado por EcoDebate, 28-12-2020.
O projeto da Transposição do Rio São Francisco começou a sair do papel no governo Fernando Henrique Cardoso, quando foram realizados os estudos de impactos ambientais e os de viabilidade econômica, com uma proposta de gestão hídrica que fosse capaz de atender às demandas da população.
Em 1995, o presidente foi com sua comitiva às nascentes do rio, para iniciar um programa que chamou de “Compromisso pela vida do Rio São Francisco”, tomou um pouco de sua água e transmitiu uma mensagem de apoio ao projeto da Transposição dizendo que “O rio é generoso e não há de secar porque os estados nordestinos irão pegar um pouquinho de água aqui e ali” (matéria publicada nos principais jornais do Recife no dia 6 de junho daquele ano).
Em linhas gerais, durante a gestão FHC, o projeto da Transposição possuía as seguintes diretrizes:
a) a captação de água seria realizada no município de Cabrobó, na divisa entre Bahia e Pernambuco, numa altitude 50 m inferior à da Barragem de Sobradinho;
b) pretendia-se desviar do São Francisco, à época, cerca de 280 m³/s, quando o projeto estivesse todo implantado, sendo que, na primeira etapa, a previsão era de se retirar apenas 70 m³/s do rio que, naquele trecho, tinha vazão média de 2.065 m³/s;
c) da captação, a água seria bombeada para superar cerca de 30 m de desnível e seguiria, através de canais e reservatórios, até Terra Nova, onde seria elevada mais 50 m, prosseguindo em aquedutos e leitos naturais até Salgueiro, onde uma 3ª estação elevatória seria implantada para um recalque de mais 80 m de altura. Desta forma, a água captada na cota 315, após uma elevação de 160 metros, cruzaria o divisor de águas na altitude de 475 m, prosseguindo daí em diante, por gravidade, para o vale do Jaguaribe;
d) a ideia era a de que, dos 2.000 km percorridos pela água, da adução até o mar, cerca de 200 km fossem contemplados com obras. As demais distâncias seriam percorridas em leitos naturais de rios e reservatórios;
e) depois de transposto o divisor, a água seguiria pelos rios dos Porcos, Salgado e Jaguaribe, por onde atingiria o litoral;
f) na primeira etapa do projeto, as vazões decorrentes da transposição seriam divididas da seguinte forma: 25 m³/s para o Ceará, 15 m³/s para o Rio Grande do Norte, 15 m³/s para a Paraíba e 15 m³/s para Pernambuco, totalizando os 70 m³/s, anteriormente citados.
Toda a narrativa acima descrita encontra-se no “Relatório sobre a Transposição do Rio São Francisco e as Atuais Necessidades de Recursos Hídricos do Nordeste”, documento elaborado, em 1997, pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Estado de Pernambuco, que explicitava a visão do governo estadual em relação às vantagens de transpor as águas do São Francisco, tendo em vista o reforço dos recursos hídricos para os rios Brígida e Pajeú, bem como os benefícios socioeconômicos advindos.
No início de 2004, no governo do então Presidente Lula, devido ao grave problema de abastecimento em Campina Grande, o projeto da Transposição ganhou mais um eixo, o Leste. O projeto passou a ter, então, dois canais, o Norte, com as águas retiradas no município de Cabrobó, e o Leste, com retiradas na represa de Itaparica. Esses dois canais foram dimensionados para transportar um volume de cerca de 127 m³/s, sendo 99 m³/s no Eixo Norte, e 28 m³/s no Leste.
Apesar de todo o planejamento acima descrito, infelizmente a questão da Transposição parece ter sido colocada em um contexto um tanto quanto inconsequente, sem a devida avaliação da magnitude tanto dos custos do projeto (financeiros e os imputados ao meio ambiente), como a das dificuldades que surgiriam no decorrer da implantação das obras.
Atualmente, tudo está sendo realizado de forma improvisada. A água está sendo considerada, pelas autoridades, como um bem natural infinito que pode ser, portanto, usada a bel prazer e de forma ilimitada. Parece faltar às pessoas censo crítico para avaliar essa questão, uma vez que inexiste, no atual contexto, uma proposta eficiente de gestão das águas do rio, que dê bases científicas seguras ao atendimento das demandas hídricas das populações, em observância aos danos ambientais existentes na bacia do São Francisco como um todo. Outro fator que está sendo ignorado é a ocorrência das secas periódicas na região, o que vem interferindo tanto na qualidade quanto, e principalmente, na quantidade de água fornecida para abastecimento dos nordestinos.
Importante mencionar tais fatores, tendo em vista os desequilíbrios ambientais atualmente existentes na bacia do São Francisco, notadamente aqueles provenientes dos desmatamentos havidos, com consequente assoreamento do seu leito; a péssima qualidade de suas águas, misturadas aos esgotos dos municípios ribeirinhos; além de suas vazões em processo constante de redução ao longo do tempo.
Explicitando esse contexto, podemos citar o ano de 2017, quando, ao final do longo ciclo seco de seis anos que se abateu sobre a região, e com uma proposta de gestão hídrica desastrosa em sua bacia hidrográfica, o Rio São Francisco registrou vazões nunca antes atingidas pelo caudal, com afluência e defluência, em Sobradinho, de cerca de 290 m³/s e de 550 m³/s respectivamente, cujo volume útil da represa, naquele ano, ficou reduzido a 1% de sua capacidade total.
Essa defluência de 550 m³/s, regularizando o Submédio e Baixo São Francisco, local de maior retirada de suas águas para fins de irrigação, geração de energia e abastecimento da população, é cerca de quatro vezes menor do que a vazão de 2.065 m³/s, prevista no documento da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Estado de Pernambuco, de 1997, e considerada segura para a gestão hídrica do projeto da Transposição.
Visando um melhor entendimento dessas questões sanfranciscanas, e procurando dar as devidas respostas ao Governo Federal, coube à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 2004, promover uma reunião, no Recife, na qual foram identificadas e analisadas, em minúcias, as questões hidrológicas mais evidentes na bacia do São Francisco, destacando-se, dentre elas, as suas vazões.
Os técnicos da SBPC concluíram que o Rio São Francisco dispunha, em 2004, de cerca de, apenas, 360 m³/s de vazão alocável (vazão autorizada para fins consuntivos) e uma outorga, com direito de uso da água, de cerca de 335 m³/s. Portanto, naquele ano, o rio só dispunha de cerca de 25 m³/s, para serem utilizados em um projeto que, em média, demandaria 70 m³/s.
Com uma outorga concedida pela Agência Nacional de Águas (ANA) de 26,4 m³/s, o governo, objetivando viabilizar o projeto, iniciou a execução das obras, propondo, para atingir os 70 m³/s previstos, a captação dessa diferença volumétrica na represa de Sobradinho, quando esta alcançasse 94% de sua capacidade, ou seja, quando estivesse cheia. Estudos da SBPC acerca do regime de enchimento do reservatório, porém, concluíram que, o mesmo, atinge o máximo de sua capacidade quatro vezes a cada dez anos, intervalo de tempo que impede uma solução definitiva para o problema.
O que fica cada vez mais claro é que, a Transposição, apresenta um custo benefício fora de propósito, se levado em consideração os vultosos investimentos realizados nas obras do projeto (hoje já ultrapassando a casa dos B$ 12 bilhões), cujos usos plenos de suas águas só se verificam em 40% dos casos.
O fato concreto é que as águas da Transposição não estão chegando ao seu destino final.
Atualmente, o governo federal vem se empenhando na inauguração das obras da Transposição que ficaram paralisadas em governos anteriores, anunciando, inclusive, a conclusão do Ramal Apodi, no Rio Grande do Norte (obra orçada em R$1,77 bilhão e considerada como redentora para a região), objetivando ampliar em 700 mil ha a área irrigada e abastecer 750 mil pessoas naquele estado e nos do Ceará e Paraíba, com uma vazão de 40 m³/s, advinda do Rio São Francisco pelo Eixo Norte da Transposição. Esse volume proposto, sem ter havido uma avaliação mais acurada sobre a capacidade do rio em fornecê-lo, reflete um claro desrespeito ao previsto no documento da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Estado de Pernambuco para o Rio Grande do Norte (15 m³/s – quase três vezes menor). A licitação está sendo feita tendo como base o acordo ambiental de 2005, ou seja, sem licenciamento específico e com prazo de validade vencido.
A solução mais plausível para o enfrentamento dessa situação no Rio Grande do Norte seria o abastecimento de água da região através da adoção de medidas que busquem e controlem os recursos hídricos interiores estaduais, associadas a políticas públicas que se comprometam com a boa aplicação da água em si, e, principalmente, com a adoção de soluções que sejam efetivas e duradouras.
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A publicidade enganosa da Transposição do Rio São Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU