04 Janeiro 2021
Privilegiar o qualitativo, dar sentido, colocar a economia novamente a serviço do interesse geral... Aurore Lalucq e Vincent Liegey dão elementos para montar um novo modelo.
Aurore Lalucq é eurodeputada e relatora de “Semestre de 2020” no Parlamento Europeu; Vincent Liegey é ensaísta e pesquisador.
A entrevista é de Vincent Grimault e Aude Martin, publicada por Alternatives Économiques, 26-12-2020. A tradução é de André Langer.
No momento, estamos passando por uma violenta queda no crescimento. O que o período atual nos ensina?
Vincent Liegey: O que vivemos hoje não é uma queda no crescimento, mas uma recessão. A filósofa Hannah Arendt disse que “não há nada pior do que uma sociedade de trabalho sem trabalho”. Da mesma forma, não há nada pior do que uma sociedade de crescimento sem crescimento. Todo o desafio do decrescimento é repensar o nosso modelo para não depender mais dele. Por um lado, porque o modelo do crescimento infinito apresenta problemas ambientais óbvios. E, por outro lado, porque tem consequências sociais igualmente desastrosas e rouba a muitos de nós a alegria de viver. Enfim, já convivemos com baixo crescimento há vários anos. Precisamos nos preparar com urgência para a sequência.
Aurore Lalucq: Encontrar soluções para a crise ecológica e social requer a definição correta dos termos do debate. Há, obviamente, uma correlação entre o crescimento do produto interno bruto (PIB) e as emissões de CO2; o período de confinamento mostrou isso com a queda de ambos. Mas esse período não mudou nosso sistema. Pior, as desigualdades aumentaram: a Amazon teve lucros exorbitantes, os mais abastados conseguiram economizar e os trabalhadores pobres foram os mais expostos. É urgente reorganizar nossa economia, colocá-la a serviço da sociedade, respeitando os limites da biosfera. Como deputada, não posso contar com o PIB como uma bússola, porque nada diz sobre o estado das desigualdades ou da biodiversidade. Crescimento ou decrescimento, isso equivale a referir-se a um indicador datado de 1944, projetado para a reconstrução da França do pós-guerra. É um absurdo. Temos que sair da nossa obsessão por este indicador, passar do mais para o melhor.
Vincent Liegey: O decrescimento não é o contrário do crescimento. O termo, infelizmente, é mal interpretado, e nos faz perder nosso tempo. Por que me apego a ele mesmo assim? Porque ele é o único que nunca foi esvaziado de seu significado. Todos os outros mudaram para o greenwashing, a começar pelo “desenvolvimento sustentável”, que é um oxímoro. O “pós-crescimento” corre o risco de se tornar a nova torta de creme para promover o crescimento verde. Precisamos de palavras claras que mudem radicalmente o nosso software intelectual.
Aurore Lalucq: Como deputada, luto todos os dias para implementar políticas públicas eficazes, que realmente mudem nossas vidas. Mesmo se, evidentemente, nenhum termo seja “puro”.
Para além dos debates semânticos, com o que se parece o novo modelo que vocês esperam?
Vincent Liegey: O isolamento físico tinha suas falhas, mas também permitiu que muitas pessoas – especialmente os ricos – se perguntassem o que realmente importava em suas vidas. Muitos então perceberam a toxicidade do seu ritmo de vida, do seu trabalho e puderam se concentrar novamente nos seus filhos, na sua alimentação e na sua saúde. Existem alavancas de transformação para um mundo onde domina a busca de sentido.
Aurore Lalucq: Claro, o isolamento físico permitia que os executivos se fizessem perguntas existenciais. Mas durante esse tempo, outros continuaram a trabalhar em péssimas condições, sem ver os filhos, fazendo fila para receber ajuda alimentar… Interrogar-se sobre o consumo, muitas vezes, é um luxo que alguns não têm. É mais fácil renunciar a certos produtos quando já se provou deles. O consumo não é apenas um fenômeno material, mas uma ação classificatória, social, com consequências psicológicas e ecológicas. Além disso, somos todos mais ou menos prisioneiros de uma sociedade de consumo baseada na frustração. Não nos precipitemos para julgar os padrões de consumo e não nos esqueçamos do crescimento que ocorreu durante os Trinta Anos Gloriosos...
Vincent Liegey: Os Trinta Saqueadores (Saccageuses) você quer dizer!
Aurore Lalucq: Os Trinta Saqueadores, como você diz, tiraram milhões de pessoas da miséria após a Segunda Guerra Mundial. Não idealizo de forma alguma este período, nem do ponto de vista (geo)político, nem ecológico. Mas esquecer esse elemento de melhoria das condições de vida e de emancipação, especialmente dos trabalhadores, é um erro de análise. Para mudar tudo, devemos primeiro entender por que estamos tão apegados a este sistema, embora ele não nos faça mais bem! Não devemos esquecer que a ecologia é uma questão de pobres. São os ricos que mais poluem e os pobres que mais sofrem com a poluição. Assim, um dos departamentos mais poluídos da França é também um dos mais pobres: Seine-Saint-Denis.
Vincent Liegey: Estou de acordo, mas para isso, vamos ter que trabalhar sobre os imaginários. Eu moro na Hungria, que é o terceiro país da Europa onde as pessoas mais andam de bicicleta, depois da Dinamarca e dos Países Baixos. Essa trilha vem em parte de bobos [contração das palavras burguês e boêmio] hipster como eu, que andam de bicicleta em Budapeste. Mas também gente do campo que não tem carro. Para estes últimos, a bicicleta não é uma forma de libertação da sociedade de consumo automobilística. É um símbolo de fracasso, até porque a publicidade os lembra constantemente que eles precisam comprar com urgência um carro grande. Não sairemos disso sem uma regulamentação estrita, até mesmo uma proibição da publicidade, porque ela coloniza nossos imaginários.
Aurore Lalucq: Não imponhamos nosso imaginário. Em vez disso, liberaremos o potencial criativo dos indivíduos, como disse André Gorz. Além disso, quando penso na Hungria, penso menos nas bicicletas do que nas políticas extremistas de Viktor Orbán.
O decrescimento escolhido e planejado destruiria muitos empregos e criaria outros. O saldo pode ser positivo?
Aurore Lalucq: A questão do saldo já se coloca. Muitos empregos foram destruídos e ainda serão nas indústrias fósseis. Como remediar isso? Reduzindo o tempo de trabalho, investindo na transição ecológica e na criação de um mecanismo de empregador de última competência: políticas inscritas no centro do “Green New Deal”. Em termos europeus, isso criaria milhões de empregos na proteção da biodiversidade ou na renovação térmica de edifícios.
Vincent Liegey: O desemprego é uma escolha de sociedade. O sistema precisa do desemprego para impor condições de trabalho às pessoas que, de outra forma, não as aceitariam. Em uma sociedade decrescimentista, o desafio mais importante é sair da centralidade do valor trabalho. Isso entranha uma reflexão sobre como consumir menos e, portanto, viver melhor. A recuperação econômica pós-coronavírus não deve ser uma oportunidade para reativar trabalhos inúteis. Devemos refletir sobre como dividir as tarefas para que todos tenham um lugar na organização social.
Os ganhos de produtividade provocaram desvios, mas também têm sido um motor da redução do tempo de trabalho e da melhoria das condições de trabalho. O decrescimento não corre o risco de acabar com este progresso?
Aurore Lalucq: Os ganhos de produtividade já vinham caindo nas últimas décadas. A ligação ganhos de produtividade-crescimento-emprego não é óbvia. Nem todo crescimento é necessariamente rico em empregos. Precisamos contratar na agricultura orgânica e no setor do care [cuidado], onde os níveis de produtividade “quantitativos” são baixos e são as principais fontes de emprego. Temos que sair do quantitativo e ir para o qualitativo.
Vincent Liegey: Mesmo quando ainda havia ganhos de produtividade, eles nunca estiveram a serviço do bem viver e serviram antes para estimular a competição entre os países, criando uma situação de superabundância e de dependência material. O isolamento físico nos mostrou quão vulneráveis se tornaram nossos processos de fabricação feitos com base nas deslocalizações, na produção enxuta e nas economias de escala. Precisamos relocalizar a produção em toda a Europa com pequenas fábricas locais e favorecer locais que incentivem o uso da segunda mão, os reparos, etc. Poderemos assim recuperar as técnicas de produção e voltar a ser soberanos. Talvez seremos menos eficientes e menos produtivos, mas teremos uma relação mais convivial com nossos objetos low tech ecoconcebidos ou reciclados.
Como financiar a proteção social sem crescimento e sem a taxação das atividades poluidoras?
Aurore Lalucq: Na França, tivemos um crescimento inexpressivo desde os anos 2000, ao mesmo tempo em que garantimos o financiamento da proteção social. Por outro lado, esse financiamento é prejudicado por algumas políticas que ajudam a colocar os recursos da Seguridade Social no vermelho, como a isenção de contribuições sociais sobre as horas extras.
Existem significativas margens de manobra financeiras: acabar com a política de ajuda às empresas, lutar contra os paraísos fiscais, reformar a tributação. A nível europeu, pode-se imaginar um imposto sobre o patrimônio dos 1% mais ricos, uma taxa Gafa, anular a dívida pública... O financiamento é um assunto sério, muitas vezes usado como pretexto para impedir a implementação de certas políticas.
Vincent Liegey: Concordo com Aurore e o economista Gaël Giraud que querem responder à emergência econômica com ferramentas que já estão à nossa disposição. Devemos evitar uma modificação dos tratados europeus por razões políticas e constitucionais óbvias. Isto deverá dar-nos tempo para, na sequência, instituir uma forma de renda básica incondicional em toda a Europa, que evite disparidades entre os Estados e o não recurso às ajudas sociais, o que é importante dada a complexidade dos diferentes sistemas nacionais.
Poderemos nos contentar em controlar os comportamentos por meio de incentivos fiscais ou será preciso recorrer à regulação, mesmo que isso signifique retroceder em certas liberdades atuais?
Aurore Lalucq: O sinal preço não é inteiramente o mais eficaz! Nós lutamos contra o buraco na camada de ozônio por meio de uma regulamentação. Teremos que retomar alguns consumos. Mas não poder mais andar de avião o tempo todo não é uma regressão. Acima de tudo, isso acabaria com os excessos, e permitiria que outros países poluíssem um pouco mais para se desenvolverem. Direito que lhes foi roubado.
Vincent Liegey: O tema das liberdades é complexo. Vejamos o movimento dos coletes amarelos. Este movimento começa inicialmente como uma reação à introdução de uma pseudotaxa de carbono, mas também com uma outra medida que não foi bem recebida: a redução da velocidade autorizada de 90 para 80 km/h nas estradas de mão dupla. Penso que essas duas medidas não foram rejeitadas tanto pelo conteúdo, mas porque foram vistas como imposições.
A mobilização dos coletes amarelos desembocou na Convenção Cidadã sobre o Clima (CCC)... uma das propostas era reduzir a velocidade nas rodovias de 130 para 110 km/h! É paradoxal: um movimento desencadeado em oposição a uma redução do limite de velocidade acabou por colocar outro em debate. Isso mostra que, quando se trata de regulação, o método de implementação faz toda a diferença. A CCC desdobrou-se em uma dinâmica de prestação de contas, escuta e respeito. In fine, portanto, a proposta de redução da velocidade não é mais sentida como uma privação de liberdade, mas vivida como uma reapropriação dos limites.
Aurore Lalucq: Dar liberdade também é investir. A crise dos coletes amarelos deriva tanto da falta de diálogo, como do empobrecimento e da falta de alternativas... eles estão presos a um modelo antigo. Daí a urgência de reorganizar o mais rapidamente possível a nossa economia, para colocá-la novamente a serviço do interesse geral.
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“Devemos mudar nosso software intelectual”. Entrevista com Aurore Lalucq e Vincent Liegey - Instituto Humanitas Unisinos - IHU