23 Dezembro 2020
"A questão é mais ampla do que a revisão de uma política de barragens. O modelo predatório de mineração a que temos sido submetidos considera a devastação de territórios e a destruição da vida como um preço a ser pago pela enorme margem de lucros do negócio", escreve Gilvander Moreira, frei e padre da Ordem dos Carmelitas.
Frei Gilvander é doutor em Educação pela FAE/UFMG, licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália, assessor da CPT, CEBI, SAB, Ocupações Urbanas e Movimentos Populares e professor de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
Sob os ventos natalinos, como biblista, no nosso texto semanal, eu gostaria de escrever sobre o Nascimento de Jesus Cristo acontecendo na periferia, no meio dos pastores (Cf. nosso artigo “Natal de Jesus: o divino no humano”) [1], - que eram os mais discriminados e injustiçados em uma colônia da sociedade escravocrata sob o Império Romano -, e sendo acolhido e reverenciado pelos magos, que não eram astrólogos, mas “vindos do oriente”, de onde o sol nasce e a vida revigora diariamente, driblaram o rei Herodes, opressor contumaz e repressor sanguinário, seguiram a “estrela de Belém” e reconheceram Deus no humano em uma criança nascendo em um acampamento improvisado na periferia da pequena cidade de Belém. Entre os periféricos, Deus assumiu a condição humana por amor infinito. Natal: Deus se apaixona tanto pelo humano, que larga o céu e vem diariamente acampar com os humanos, todos os animais e seres vivos, mas sempre a partir dos últimos dos últimos (Cf. nosso artigo “Natal de Jesus Cristo na periferia de Belém: “Não tenham medo!””) [2]. Entretanto, sob a perseguição de Herodes, José e Maria tiveram que fugir para o Egito para salvar o menino Deus.
Entretanto, o eloquente clamor de mais um atingido soou como o choro do Menino Deus, o recém-nascido Jesus de Nazaré, também espoliado pelos podres poderes da época, e inspirou-me e motivou-me a falar sobre o Natal, denunciando um grande Herodes da atualidade, a mineradora Vale S/A, que, com a cumplicidade do Estado, não apenas segue expulsando outros Josés, Marias e o menino Deus, mas também, em Brumadinho, MG, dia 18 de dezembro de 2020, por volta das 16h10, matou outro José, chamado Júlio César de Oliveira Cordeiro, soterrando-o, após submetê-lo a trabalhar em uma retroescavadeira na Mina de Córrego do Feijão, em condições de altíssimo risco. Por esse crime, deixou outra “Maria”, uma mulher jovem, viúva com um ‘Jesus’ de apenas três meses nos braços. Por isso ecoaremos aqui o que já foi denunciado pela Comissão Pastoral da Terra, em Minas Gerais: Mineradora Vale S/A mata mais um trabalhador, em Brumadinho, MG. Até quando a Vale continuará impune e matando?
A mineradora Vale S/A, com exploração predatória, assassinou mais um trabalhador na Mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho, onde foram mortos, enterrados vivos, 272 trabalhadores e trabalhadoras, dia 25 de janeiro de 2019, com 11 corpos ainda desaparecidos. Após quase dois anos do crime-tragédia cometido pela Vale S/A com anuência do Estado, um dos maiores desastres ambientais do mundo e o maior acidente de trabalho do mundo em perdas de vidas humanas, com a cumplicidade do Estado, a Vale S/A continua matando, todos os dias, de várias formas, gente, peixes, animais e sacrificando todos os ecossistemas e expulsando comunidades de seus territórios. Enquanto dirigia uma retroescavadeira, um grande talude de uma cratera na Mina de Córrego do Feijão desabou, soterrando a retroescavadeira e o jovem trabalhador Júlio César de Oliveira Cordeiro, de 34 anos, empregado da empresa Vale Verde, terceirizada da Vale S/A. Júlio César deixou sua esposa viúva e órfão uma criança de 3 meses. Nossa solidariedade à esposa e a toda a família de Júlio César, mais um trabalhador martirizado pela Vale com a cumplicidade do Estado.
Denunciamos que a Vale, com a cumplicidade do Estado, continua matando de mil formas. Por exemplo, vem negando da forma mais vil o fornecimento de água potável a milhares de famílias que só acham lama em suas torneiras; negligencia quanto ao direito dos atingidos e das atingidas que se encontram fora do limite de 1 km do rio Paraopeba, mas que sofrem os mesmos prejuízos e danos dos demais; suspende indevidamente o auxílio emergencial de quem já possui este direito assegurado, sem justificativas plausíveis. O consumo de água potável para beber e cuidar das plantações e animais é um direito garantido pelos Direitos Humanos em nível internacional, mas o que se apresenta na bacia do Paraopeba é um cenário de pânico e de terror em várias comunidades, que sentem a cada dia as crescentes consequências na saúde da população decorrente do consumo de água com poluentes tóxicos e, provavelmente, com metais pesados. O adoecimento das pessoas e a insegurança de saber se vão ou não receber o auxílio emergencial no próximo mês causa uma grande tensão, além de conviverem diariamente com um rio e um ar contaminado. Doenças respiratórias, gastrointestinais, renais, vários tipos de câncer, depressão e outras enfermidades de ordem psicológica vêm se alastrando, comprometendo assim a saúde física e mental da população como um todo. Isso mata aos poucos. A Vale S/A, privatizada, mata também se beneficiando da terceirização, pois os trabalhadores que são submetidos aos trabalhos mais arriscados são os terceirizados.
O local é uma área de alto risco, não poderia ter ninguém lá. O talude não cai de uma vez. Sempre há indícios, rachaduras. Não se pode arriscar vidas humanas dessa forma e é preciso investigar se não há risco de novos rompimentos. O medo e o desespero das comunidades próximas àquele local é muito grande. Não foi um acidente conforme informado pela Vale S/A e pela imprensa, foi mais um crime premeditado e planejado. Em auto de infração de 15 dias atrás está registrado problemas de segurança de disposição de rejeitos minerários na cratera da Mina de Córrego do Feijão. Por isso, a Agência Nacional de Mineração (ANM) tinha paralisado os trabalhos na área. Os taludes estavam instáveis pela movimentação de caminhões e gigantes “tratores”? Como foi possível a obtenção de uma licença simplificada para uma operação tão arriscada e questionada por ambientalistas que é depositar rejeitos de mineração na cratera da mina de Córrego do Feijão, oferecendo altíssimos riscos aos trabalhadores e de contaminação dos lençóis freáticos na região? Assim, a Vale S/A operava na ilegalidade ou em legalidade suspeita.
É notória a exaustão da Região Metropolitana de Belo Horizonte, com mais de 300 anos de mineração. Com tantas crateras e túneis de muitos quilômetros, inclusive debaixo da cidade de Belo Horizonte, com dezenas de grandes barragens sinalizando que podem romper a qualquer momento e com vários pequenos abalos sísmicos e tremores de terra é óbvio que os trabalhadores e as trabalhadoras são submetidos a trabalharem em situações de altíssimo risco de morte.
Esse crime e tantos outros crimes-tragédias, como o rompimento da barragem de “Fundão” em Mariana, MG, (19 mortos), Barragem de Córrego do Feijão em Brumadinho (272 mortos), rompimento da barragem da Mineradora Herculano em 2014, em Itabirito-MG (03 mortos), a morte do motorista Bruno Henrique do Amaral Silva, em agosto de 2019, e a morte de dois caminhoneiros em meados de 2019 enquanto transportavam minério para a mineradora Mineral do Brasil, vizinha à Mina do Córrego do Feijão, revelam como o modelo de exploração mineral no Brasil é predatório e devastador, também em relação à vida humana. A geração bilionária de lucro para as empresas do setor, a maior parte sob controle de investidores estrangeiros, deixa apenas um rastro de desastres, destruição, miséria e contaminação para as populações locais. Até quando a Vale, a Samarco e outras mineradoras continuarão impunes e matando?
A questão é mais ampla do que a revisão de uma política de barragens. O modelo predatório de mineração a que temos sido submetidos considera a devastação de territórios e a destruição da vida como um preço a ser pago pela enorme margem de lucros do negócio. São especuladores também de minas de água e de aquíferos. Cumpre recordar que com a Lei Kandir, de 1998, isentando do pagamento de Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMs) as commodities para exportação, a Vale S/A e as outras mineradoras nem ICMs pagam. Com isso, o Estado de Minas Gerais teve uma perda de 140 bilhões de reais nos últimos 22 anos. E agora a Vale e o Governo de Minas Gerais, com a participação das Instituições de Justiça (Ministério Público de MG, Defensoria de Pública de MG e Tribunal de Justiça de MG (TJMG)), SEM A PARTICIPAÇÃO dos/as atingidas, estão construindo um Acordão que será muito bom para a Vale e péssimo para os/as atingidos/as.
Em Sarzedo, MG, município muito próximo à Mina do Córrego do Feijão, há quase dois anos, milhares de pessoas, longe dos holofotes da grande mídia corporativa, convivem com o pesadelo de eventual rompimento de barragens da mineradora Mineração Itaminas. Com mais de 5 mil pessoas cadastradas na área de inundação por lama tóxica em caso de rompimento, a continuidade da utilização dessas estruturas depende hoje do desfecho de uma Ação Civil Pública que até a presente data não levou a nenhuma obrigação de desativação das barragens, não foram realizadas perícias que possam minimamente tranquilizar a população. No dia 18 de dezembro p.p., após a notícia de mais um soterramento causando a morte do trabalhador Júlio César, milhares de pessoas do Bairro Brasília, em Sarzedo, que estão sob as barragens da Itaminas, não conseguiram dormir com a notícia e a chuva forte que aumentava os riscos de desabamento das barragens da Itaminas. Muitos são os fatores de risco apontados pela população e ignorados pelas autoridades, mas com o crime ocorrido na tarde de ontem em especial merece ser lembrado. Um fator de grande risco que vem sendo totalmente negligenciado até o momento pelas autoridades envolvidas é a existência de taludes das crateras da Mina da Jangada, de propriedade da Vale S.A, a pouquíssima distância da Barragem B4 da Itaminas, a barragem que oferece gravíssimo potencial para ceifar 5 mil vidas em Sarzedo, MG.
Como no caso da Barragem da Mina de Gongo Soco, em Barão de Cocais, MG, taludes são estruturas integrantes das crateras de mineração, privadas de estabilidade devido à enorme atividade que sobre elas impacta, desde a movimentação de cargas de dezenas de toneladas por “tratores” gigantes a detonações rotineiras. O senhor Ricardo Moraes e a senhora Rejane Moraes, moradores “expulsos” da sua casa em Córrego do Feijão, denunciaram em videorreportagem que as explosões com 460 quilos de dinamite na Mina da mineradora MIB, distante apenas 700 metros da Mina de Córrego do Feijão, pode ter desencadeado o rompimento da Barragem em Córrego do Feijão dia 25/01/2019. Assim como as barragens, os taludes também podem se desestabilizar, escorregando lentamente ou, em cenário mais grave, romper bruscamente, sendo que tal movimentação é capaz de ocasionar um rompimento das frágeis estruturas de contenção de rejeitos como é a Barragem B4 da mineradora Itaminas em Sarzedo. Ora, se na Mina do Gongo Soco, taludes de uma cratera distante quase 2 (dois) quilômetros da barragem interditada foram considerados fatores de risco do chamado “gatilho”, por qual motivo essas estruturas da Mina Jangada, que estão muito mais perto da B4 não foram consideradas como de risco à estabilidade e segurança da barragem? A Mina de Jangada localiza-se nos municípios de Brumadinho e Sarzedo e faz parte do complexo Paraopeba da Vale S/A. A mina vem sendo lavrada desde 1974, e em 2007 a Vale assumiu suas operações por meio do arrendamento do antigo empreendedor Minerações Brasileiras Reunidas S.A (MBR).
Além de suspender de forma preventiva o funcionamento de complexos minerários geradores de risco para populações, de rever processos de licenciamento, auditar e fiscalizar com rigor barragens e outras estruturas, é urgente avançar para um maior empoderamento das comunidades nos seus territórios. Para que se possam contrastar de maneira efetiva o projeto de morte revelado pela atuação das mineradoras, é imprescindível que às lutas das comunidades atingidas possam se somar todos que tenham compromisso com preservação do meio ambiente, a proteção das condições de vida e a promoção da dignidade, desde lideranças políticas, sociais e religiosas, passando por movimentos, organizações, entidades, chegando até as instituições públicas. Todos os crimes praticados por essas mineradoras, e que seguem impunes, são provas cabais de que para o capital minerário não há limites em termos de devastação e destruição. Esse modelo precisa ser interrompido para que centenas de territórios e sua gente deixem de ser subjugados como tem ocorrido de forma especialmente intensa nas últimas décadas.
Exigimos de todas as autoridades apuração contundente, julgamento e punição de mais esse crime da Vale S/A. Exigimos também que as autoridades do Estado não deixem a Vale continuar controlando a cena do crime. Nesse contexto de superexploração do capital – Vale S/A, agronegócio, transnacionais e capital financeiro especulativo -, além de acolher o menino Deus nascendo no meio dos atingidos e massacrados, temos também de denunciar os Herodes da atualidade. Em meio à guerra contra os pobres, contra a mãe terra, a irmã água, fauna e flora, oxalá sejamos Natal, presença do divino que revoluciona o humano para ser de fato humano, libertador.
[1] Natal de Jesus: o divino no humano, disponível aqui.
[2] Natal de Jesus Cristo na periferia de Belém: “Não tenham medo!”, disponível aqui.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Videorreportagem sobre o soterramento de Júlio César na Mina de Córrego do Feijão, da Vale S/A
2 - Homilia de Dom Vicente em São José do Brumadinho, Barão de Cocais, MG: São José sob Herodes, a Vale
3 - “SOCORRO! A VALE NOS ROUBOU O DIREITO DE VIVER”: PATRÍCIA PASSARELA e FERNANDA PERDIGÃO - 07/12/2020
4 - "Basta de atrocidades! Exigimos justiça!" - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 06/12/2020
5 - A verdade está com os/as atingidos pela Vale e pelo Estado/1ª Parte/Por frei Gilvander - 06/12/2020 h
6 - "Estado, não venda nossa dor para a Vale!", atingida Eunice e Carlos Henrique, Câmara Fed. 06/12/20
7 - "A gente se sente esfaqueada pela Vale e pelo Governo." - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 05/12/2020
8 - Gritos dos/das Atingidos/as interpelam nossa consciência - Por frei Gilvander -1ª Parte - 05/12/2020
9 - PALAVRAS DE FOGO: Atingidos/as pela Vale e Estado na Câmara Federal. Eliana Marques e Nívea Almeida
10 - Dor e lágrimas dos/as Atingidos/as. Por que as autoridades não ouvem? BRITO e LIONETE, de MG–4/12/20
11 - “Desde nossos avós vivemos aqui. Vale, AQUI NÃO!” Márcio, de Laranjeiras, Barão de Cocais/MG–7/12/2
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Vale S.A, Herodes que matou outro José: Júlio César - Instituto Humanitas Unisinos - IHU