16 Dezembro 2020
"O Poder Público - Executivo, Legislativo e Judiciário - precisa ouvir os/as carroceiros/as para que um Projeto de Lei realmente justo e que respeite os direitos dos carroceiros/as seja elaborado e aprovado", escreve Gilvander Moreira, frei e padre da Ordem dos Carmelitas.
Frei Gilvander é doutor em Educação pela FAE/UFMG, licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália, assessor da CPT, CEBI, SAB, Ocupações Urbanas e Movimentos Populares e professor de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
Você já percebeu que em todas as cidades há carroceiros e carroceiras? Você já ficou sabendo que nas origens e no desenvolvimento de todas as cidades estão os/as carroceiros/as? Você sabe que o Povo Carroceiro é Povo e Comunidade Tradicional protegida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Organização das Nações Unidas (ONU)? Você sabe que em Montes Claros, MG, estima-se a existência de 3 mil carroceiros/as e que em Belo Horizonte e Região Metropolitana há mais de 10 mil carroceiros? Pergunto, porque muitas vezes, cegados pela ideologia dominante, não vemos a beleza da imensa diversidade cultural existente no nosso país. Como amar, admirar e respeitar se não conhecemos? Em todo o Brasil, deve ter alguns milhões de carroceiros/as. Belo Horizonte, por exemplo, começou ao lado de um curral Del Rey e entre os/as trabalhadores/as que foram imprescindíveis na construção da capital mineira, estão os/as carroceiros/as. Porém, com as cidades se tornando cada vez mais cidades-empresas, o processo de asfixia e de encurralamento da imensa diversidade cultural segue atropelando modos de vida maravilhosos.
Em contexto de agravamento da pandemia do novo coronavírus, injustamente, dia 14 de dezembro de 2020, um Projeto de Lei (PL 142/2017), que insiste há quatro anos em criminalizar o modo de vida dos carroceiros e das carroceiras na cidade de Belo Horizonte, MG, estava na pauta para ser votado em segundo turno na Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH). Nada foi votado, e reagendado para votação dia 15/12/2020. Escondendo os verdadeiros motivos -interesses políticos para eleição da Mesa Diretora da Câmara, interesses econômicos de empresas e caçambas, de deputados e vereadores que se elegem capitalizando essa pauta - e com argumento falacioso de defesa dos direitos animais, busca-se substituir os cavalos por motos adaptadas.
Segundo os/as carroceiros/as, “querem trocar os cavalos que fazem parte da nossa família por “cavalos de lata”, um absurdo. Sob a liderança da Associação dos Carroceiros e Carroceiras Unidos/as de Belo Horizonte e Região Metropolitana, com o Lema “A cidade é nossa roça! Nossa luta é na carroça!”, esse Povo Carroceiro, que é Comunidade Tradicional, friso, repudia com veemência tal projeto pelos seguintes motivos:
a) a proibição das carroças afetaria a vida de cerca de 10 mil famílias não só de Belo Horizonte como também da região metropolitana, cujo sustento se baseia no trabalho na carroça. Não tendo mais zona rural, a cidade de Belo Horizonte se encontra (faz divisa) com Sabará, Santa Luzia, Vespasiano, Ribeirão das Neves, Contagem, Ibirité, Sarzedo, Nova Lima e Brumadinho. Por isso, milhares de carroceiros/as que moram nos limites de BH trabalham em dois ou até três municípios com suas carroças;
b) desde os anos de 1990, foi construída em Belo Horizonte uma política de limpeza urbana que sempre tratou os carroceiros e carroceiras como verdadeiros agentes ambientais, responsáveis pela destinação correta de milhares de toneladas de resíduos da cidade. Nas gestões de Patrus Ananias e Célio de Castro foram construídas 34 Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes (URPV);
c) os cavalos e as éguas não são meros animais, mas sim companheiros/as de trabalho dos/as carroceiros/as, têm nome, história e fazem parte da família e da Comunidade Tradicional Carroceira.
A tentativa de trocar cavalos e éguas por motos demonstra o desconhecimento da relação que existe entre carroceiros/as e seus/suas companheiros/as animais. E mais, nos leva a pensar em escusos interesses do capital de empresas que querem vender mais 10 mil motos e com isso aumentar o número de acidentes com motociclistas, poluir mais o ar com dióxido de carbono e poluição sonora. E os 10 mil cavalos e éguas substituídos seriam abandonados à própria sorte até a morte ou seriam sacrificados para se tornarem invisíveis?;
d) os casos de maus-tratos aos animais não fazem parte do modo de vida carroceiro e são veementemente repudiados pelos mesmos. Os carroceiros e carroceiras participam, inclusive, desde 2017, de várias discussões com a Prefeitura, buscando regulamentar o trabalho e os critérios de cuidado dos cavalos e éguas. “Se há joio no meio do trigo, não se pode cortar o meio de vida do trigo por causa de algum joio existente no meio e somos os primeiros interessados em ver todos os cavalos e éguas e todos os animais bem cuidados. Que a prefeitura, as faculdades de veterinária e a sociedade nos ajudem a garantir condições dignas para todos os cavalos e éguas e que se aplique a lei de maus-tratos aos animais. Tem que acabar com os maus-tratos que injustamente acontece aqui ou ali e jamais proibir nosso meio de vida”, dizem os/as carroceiras. “Mas com a desculpa de defesa dos cavalos e éguas, matar aos poucos os carroceiros e nossas famílias não é justo”, afirma o carroceiro Cláudio, descendente de pais, avós e bisavós carroceiros;
e) a cidade de Belo Horizonte foi construída com a participação ativa dos carroceiros e carroceiras, constituindo um patrimônio histórico e cultural da cidade. Ai de quem pisa na própria história e não honra suas origens!;
f) o projeto de lei viola os artigos 215 e 216 da Constituição Federal que prevê que o Estado deve garantir o direito à manifestação da diversidade de todos os grupos que compõem o país;
g) o PL 142 é autoritário, pois pugna apenas por proibição e repressão de um modo de vida tradicional e também porque foi formulado sem a participação dos/as Carroceiros/as. O presidente da Associação dos/as Carroceiros de BH e RMBH, Sr. Sebastião Alves Lima, carroceiro há 48 anos, denuncia: “Esse PL é racista, porque, sem nos conhecer e nem nos ouvir, insiste em violentar e massacrar nosso modo de viver e de cuidar dos animais.
Por que quem defende esse covarde projeto só pensa em repressão e proibição? Quem disse proibição por si só resolverá os casos de maus-tratos, que são uma exceção no nosso meio?”. É óbvio que esse projeto se ancora em racismo estrutural, algo execrável e corolário de relações sociais escravocratas. Assim como sedentarismo nos adoece, adoece também os cavalos e éguas. Trabalhar de forma ética e justa no oficio de carroceiro/a faz bem tanto para os/as carroceiros/as e suas famílias quanto para os cavalos e éguas.
Além disso, os carroceiros e carroceiras da capital mineira já se autodeclararam como Povo e Comunidade Tradicional, com modos de vida próprios e cujo direito está garantido pela Convenção 169 da OIT da ONU, da qual o Brasil é signatário. A autodeclaração é o suficiente para garantir os direitos assegurados pela Convenção 169 da OIT. Além disso, o Decreto 6040/2007 e a Lei 21147/2014, que criaram, respectivamente, as Políticas Nacional e Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais, também garantem o direito dos/as carroceiros/as a manter seu modo de vida. Assim, qualquer tipo de ação, seja do setor público ou privado, que comprometa o modo de vida dos carroceiros e carroceiras, caracteriza uma clara violação à Convenção, à Constituição e às leis citadas. Desta forma, os/as carroceiros/as reivindicam aos vereadores e vereadoras de Belo Horizonte que garantam os direitos humanos e animais, arquivando de vez o perverso, inconstitucional e injusto PL 142/17 e solicitam que criem leis que garantam que as condições de vida dos/as carroceiros/as e seus companheiros animais sejam plenamente asseguradas.
Se há algo que o PL 142 não faz é garantir o respeito aos direitos dos cavalos e éguas, e ainda viola de forma cruel os direitos humanos básicos. Viola o direito à livre expressão da diversidade cultural e viola o direito ao trabalho, já que o trabalho com os cavalos e éguas é a única fonte de renda para essas famílias. Há carroceiros que estão há quarenta, cinquenta anos na lida com as carroças. Muitos herdaram os saberes de seus pais, tios, avós, outros aprenderam com amigos. E pela pouca escolaridade, poucos teriam condições de tirar carteira para dirigir motos e nem condições econômicas para comprar moto, pagar seguro, IPVA e garantir manutenção.
Ao propor a substituição das carroças por motos adaptadas, o PL 142 trata de forma equivocada os cavalos e éguas como meros objetos substituíveis. Os setores do movimento de defesa dos direitos animais, que apoiam esse projeto fascista e etnocêntrico, sempre alegam que os cavalos e éguas, animais sencientes, são escravizados pelos/as carroceiros/as. Intencionalmente, promovendo sensacionalismo, divulgam em várias capitais as mesmas fotos sem data e sem localização, fotos sem identidade. Como o lugar social condiciona o olhar epistemológico, quem não convive com os/as carroceiros/as, de longe e do seu “lugar social”, que não é da classe trabalhadora, mesmo tendo boas intenções se equivoca redondamente. Sabemos que de boas intenções a estrada para o inferno está pavimentada. Triste quem ignora a Pedagogia da Libertação, de Paulo Freire, que diz que jamais quem está longe e fora da realidade pode apresentar solução correta para os problemas dos oprimidos. São os/as carroceiros/as quem têm experiência e saberes frutos da vivência cotidiana e, por isso, capazes de propor soluções para a superação dos problemas existentes no meio dos/as carroceiros/as.
O Poder Público - Executivo, Legislativo e Judiciário - precisa ouvir os/as carroceiros/as para que um Projeto de Lei realmente justo e que respeite os direitos dos carroceiros/as seja elaborado e aprovado. Os/as carroceiros/as organizados se regem por um Decálogo (“Dez Mandamentos”) dos/as Carroceiros/as [1]. Cavalos, éguas, burros são sujeitos de direitos, parte de famílias e comunidades, têm nome, temperamento, personalidade. O fato de carroceiros/as e cavalos e éguas se dedicarem a um trabalho de grande esforço físico certamente é interpretado por esses pretensos defensores dos direitos animais, em sua maioria brancos e de classe média, como algo degradante. Afinal, a elite sempre tratou os trabalhos braçais como atividades de terceira categoria, destinados a suas empregadas, pedreiros, porteiros, entre outros/as, ao fim e ao cabo, descendentes de seus parentes que foram escravizados do século XIX. “Hipócrita, tire primeiro a trave do seu olho antes de apontar o cisco no olho do/a irmão/ã” (Mateus 7,5), alerta o Evangelho de Jesus Cristo.
Atenção, esquerda cirandeira! Cuidado com as pautas identitárias para se eleger, que ignoram o recorte de classe em jogo na luta dos/das carroceiros/as. Via de regra são aliados da classe dominante que insistem em pisotear em um Povo e Comunidade Tradicional que tanto bem tem feito ao povo brasileiro: os/as carroceiros/as. A guerra contra os/as carroceiros/as é só mais uma página da guerra contra os pobres, mais uma trincheiro capitalismo que urbaniza e uniformiza tudo para dominar e lucrar, que tem horizonte tenebroso: apagar qualquer traço da vida camponesa na metrópole. Mas, expropriado e expulso do campo, os/as camponeses/as resistem há 520 anos. E resistiremos sempre, pois sabemos que é nosso único modo de viver. Por isso seguiremos, de cabeça erguida, na luta por todos os nossos direitos [2]. Carroceiros e Carroceiras, uni-vos, pois o rolo compressor de aliados dos capitalistas está atropelando e buscando asfixiar-nos.
[1] Decálogo dos Carroceiros e Carroceiras:
1º - Amar o animal como se fosse seu próprio filho.
2º - Manter seu animal sempre bem cuidado.
3º - Ser feliz e orgulhoso por ter seu animal sempre bem cuidado.
4º - Manter o cavalo feliz com uma carroça sempre com os pneus calibrados, boa carroça e arreata adequada.
5º - Zela pelo trato do animal dando banho, alimento, água e o descanso necessário.
6º - Andar sempre com atenção em vias públicas, respeitando a legislação.
7º - Contribuir para a união e a solidariedade entre os carroceiros e as carroceiras.
8º - Aprender a ser amigo/a, compartilhando os conhecimentos.
9º - Ter boa convivência com os clientes/fregueses e servidores públicos, tratando-os com respeito.
10º - Jogar os materiais transportados apenas nos locais permitidos, contribuindo para a limpeza urbana.
[2] São co-autores deste artigo o Prof. Emanuel Almada, da UEMG e do Grupo Kaipora, e todos/as Carroceiros/as da Associação de Carroceiros/as Unidos/as de Belo Horizonte e RMBH.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - “Pelos direitos dos Carroceiros, vereadores/as de BH, arquivem o PL 142” Prof. Emanuel/UEMG/14/12/20
2 - Grito dos carroceiros de Belo Horizonte contra o PL 142/2017: "Somos Povo Tradicional!" – 13/12/2020
3 - Luta de carroceiros/as de BH/MG: Trabalho e respeito aos cavalos e éguas. 6ª Parte. 07/7/2018.
4 - Luta dos carroceiros/as e cavalos em BH/MG: pelo direito de existir na cidade/5ª Parte/07/7/2018.
5 - Luta dos/das carroceiros/as pelo direito de trabalhar com cavalos e éguas/BH/MG. 4ª Parte/07/7/2018
6 - Carroceiros/as, cavalos e éguas em BH/MG: dignidade e sobrevivência, 3ª Parte. 07/7/2018.
7 - Carroceiros/as de BH/MG: Cuidado com o meio ambiente e respeito aos animais/2ª Parte/ 07/7/2018.
8 - Carroceiros e carroceiras de BH/MG: Respeito à cultura, direito ao trabalho. 1ª Parte. 07/7/2018.
9 - Carroceiros/as de Belo Horizonte PROTESTAM na CMBH contra a aprovação do PL 142 INJUSTO - 14/12/20
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Pelos Direitos do Povo Tradicional Carroceiro e dos Cavalos e Éguas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU