"O problema é que se trata de uma orientação que não indica efetivação pois não aponta qualquer medida preventiva consistente e ampla, sabido é que para enfrentar a violência e as violações de direitos humanos, não bastam políticas pontuais e específicas, são necessárias políticas que ampliem e efetivem o conjunto dos direitos humanos, sem o que o que restará é a ação da segurança pública, em geral como medida de contenção mais do que de realização", escreve Paulo César Carbonari, doutor em filosofia e militante de direitos humanos, ao analisar o decreto Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031, que estabelece a estratégia de desenvolvimento do Brasil.
O governo federal publicou a “Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031” (EFD 2020-2031) por meio do Decreto Federal nº 10.531, de 27 de outubro de 2020.1 O artigo 1º define o objetivo da Estratégia como sendo “definir a visão de longo prazo para a atuação estável e coerente dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional”. Estas instituições, pelo artigo 2º, “considerarão, em seus planejamentos e suas ações, os cenários macroeconômicos, as diretrizes, os desafios, as orientações, os índices-chave e as metas-alvo estabelecidos” na Estratégia. Cabe ao Ministro de Estado da Economia “editar normas complementares à execução” (artigo 3º).
A EFD é apresentada em duas partes, sendo a Parte I, com os Cenários Macroeconômicos, a Parte II, com os Eixos da Estratégia, sendo eles o Econômico, o Institucional, a Infraestrutura, o Ambiental e o Social. Além de diretrizes gerais comuns aos eixos, há em cada eixo, diretrizes, índices-chave e metas-alvo, além de desafios e orientações.
O Eixo 5. Social, tem como diretriz: “Promover o bem-estar, a família, a cidadania e a inclusão social, com foco na igualdade de oportunidades e no acesso a serviços públicos de qualidade, por meio da geração de renda e da redução das desigualdades sociais e regionais”. Dentro deste eixo está o Desafio 5.3.5, que prevê “efetivar os direitos humanos fundamentais e a cidadania”. As orientações são feitas em dois grupos. O primeiro visa a “garantia dos direitos para todos” são: “- observar a universalidade, a imparcialidade e a não seletividade na promoção de direitos; - promover o direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às gestantes; - promover políticas de fortalecimento dos vínculos familiares e da solidariedade intergeracional; - ampliar redes de proteção social às famílias e aos indivíduos, com especial atenção às crianças, aos adolescentes e à população idosa; - fortalecer os mecanismos de combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil e de acesso ao trabalho decente para todos; - incentivar o fortalecimento e a integração das políticas de prevenção, atenção e reinserção social de usuários de crack, álcool e outras drogas; - promover e fomentar o acesso, o fortalecimento e a integração de políticas de prevenção e atendimento às vítimas de violência e de demais violações de direitos; - promover e fomentar a equidade de oportunidade para todos; - promover e fortalecer a igualdade de direitos entre homens e mulheres e entre as diferentes raças e etnias; e - promover o respeito à dignidade de todos em sua integralidade, indiscriminadamente, e às liberdades individuais, nos termos do disposto na Constituição.
O segundo grupo trata do “fortalecimento da cidadania”, com as seguintes orientações: “- fomentar o papel do cidadão no desenvolvimento econômico nacional, com atenção à promoção do bem comum, de acordo com os princípios da solidariedade social e da subsidiariedade do Estado; - fomentar a participação da família como corresponsável pelo dever da promoção da educação, respeitando os direitos dos pais ou responsáveis pelos alunos e assegurando a neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado; - melhorar a governança dos programas e serviços especializados de atendimento e assistência social a públicos vulneráveis em situação de violência ou restrição de direitos, valorizando os vínculos familiares e comunitários; - colaborar para o aumento da eficiência e para a democratização do acesso ao sistema de justiça; e - fomentar os sistemas de resolução de conflitos extrajudiciais”
A seguir nos propomos a fazer uma breve análise desta proposta para direitos humanos. Também analisaremos o modo de apresentação da proposta, feito de forma autoritária, sem participação e sem debate com a sociedade, como se coubesse unicamente ao governo fazer a orientação das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, quando o que lhes cabe é serem orientadas pela sociedade com base no que previsto na normativa constitucional e legal.
Ainda que a Estratégia desenhe três cenários econômicos para 2031, na prática os eixos, as diretrizes e as orientações não os consideram, dando a entender que, independente do cenário, o que previsto ali não será levado em conta, o que, por si só, já denota um grave problema metodológico, já que, ainda que aponte cenários alternativos, os desconsidera como determinantes para a efetivação do que pretende levar adiante no período. Na prática, considerando haver a admissão de três cenários seria no mínimo esperado que o que previsto nos Eixos fosse trabalhado para as circunstâncias de cada um deles. Mas não é o que acontece, dando a entender que a Estratégia é pensada com base no cenário desejável. Ademais, os cenários são desenhados no que chama de um “ambiente internacional neutro para o Brasil”, o que é pouco provável que possa vir a se efetivar.
O primeiro é o “cenário de referência” que, segundo a Estratégia é o “mais básico” e nele “não haveria muitos avanços na adoção de reformas microeconômicas com grandes impactos sobre a produtividade, apenas com melhorias marginais”. O segundo cenário, o “transformador”, segundo a Estratégia, “considera que, além das reformas requeridas para o equilíbrio fiscal de longo prazo, também haveria um conjunto mais amplo de reformas, as quais incentivariam o aumento da produtividade geral da economia, na ordem de 1% a.a. (um por cento ao ano, em média) e da taxa de investimento, que aumentaria para 19,5% (dezenove inteiros e cinco décimo por cento) do PIB na média de 2021 a 2031, dos quais 2,9% (dois inteiros e nove décimos por cento) para infraestrutura, e o avanço mais intenso da escolaridade, o que permitiria, por conseguinte, avanço do capital humano e da taxa de participação da população em idade ativa”. A Estratégia considera que “os cenários de referência e transformador apresentam duas trajetórias possíveis decrescimento, condicionadas à realização das reformas fiscais necessárias para o equilíbrio das contas públicas. Entretanto, nenhum desses cenários parece viável na ausência das reformas. O atual nível elevado da dívida pública, que foi significativamente prejudicado pela crise da pandemia da Covid-19, combinado à trajetória de crescimento insustentável de um conjunto de despesas permite inferir que, caso as reformas necessárias não sejam implementadas, a probabilidade de uma crise fiscal e econômica nos próximos anos aumentará significativamente”. O terceiro cenário, o pior de todos, desenha um “quadro de desajuste fiscal explosivo” e alerta que “por motivos evidentes” este cenário “não sirva para balizar metas na Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil”.
No que trata dos direitos humanos, a Estratégia só parece razoável e convir com o que temos acumulado de mais avançado em direitos humanos como propostas programáticas para a ação em políticas públicas, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), fruto de amplo e diversificado processo de participação e de debate público no processo de sua elaboração, mas também em sequência à sua elaboração, neste caso, momento marcado por ataques e a antecipação de posicionamentos hoje transformados em lugares comuns. Ao afirmar que pretende enfrentar o desafio de “efetivar os direitos humanos fundamentais e a cidadania”, aparentemente assume os compromissos constitucionais com os direitos humanos. O faz aparentemente pois quando vai às orientações, parece não o fazer adequadamente, até porque logo em seguida já não fala em realização e sim em “garantia”. Não precisa estratégia para a garantia, já que quem o faz é a Constituição. O que uma estratégia precisa fazer é, sim, realizar. Mas, passemos à análise.
A primeira orientação para a “garantia dos direitos para todos” fala em “observar a universalidade, a imparcialidade e a não seletividade na promoção de direitos”. Ainda que pareça ter um ar universalista, ao agregar a imparcialidade redunda em assumir que não fará escolhas posicionadas e de apoio a quem mais precisa, às vítimas das violações, àqueles/as para quem a promoção dos direitos é necessidade. Não há imparcialidade em direitos humanos e defende-la é reforçar, ainda que se queira o contrário, a posição do mais forte, do violador. A introdução da “não seletividade”, ainda que bem-vinda, no entanto, esconde o fato de não ser assumida a não discriminação, princípio presente em todos os atos internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.
A segunda orientação força uma interpretação do texto constitucional no que diz respeito ao “direito à vida” e ataca frontalmente os direitos sexuais e reprodutivos, particularmente das mulheres, ao dizer que pretende “promover o direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às gestantes”. Esta orientação confronta a primeira, por ser seletiva, parcial e não universalista, no mínimo porque desconsidera as possibilidades não sancionadas com punição para a interrupção da gravidez, por exemplo, e que deve ser uma ação a ser empreendida pelo Estado, ainda que quem o esteja dirigindo possa disso discordar.
A terceira orientação reforça os vínculos familiares, o que não é necessariamente negativo, mas ao introduzir a ideia de “solidariedade intergeracional”, que é muito positiva, sobretudo para a proteção dos/as idosos/as e crianças ou mesmo até na perspectiva da sustentabilidade, mas pode estar aí embutido um “jabuti”, aquele proposto na Proposta de Emenda Constitucional do Pacto Federativo (PEC 188/2019), proposta pelo governo Bolsonaro e em tramitação no Congresso Nacional na qual se introduz um parágrafo único ao artigo 6º da Constituição Federal para estabelecer um suposto direito a ser observado na promoção dos direitos sociais ali previstos, o “direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”, uma forma de consolidar a “reserva do possível” e vinculá-la expressamente ao “equilíbrio fiscal”.
A quarta orientação completa a terceira em termos de fortalecimento da família, que passa a ser o centro da ação protetiva, ainda que preserve ao seu lado a figura do “indivíduo”, o problema é que a “especial atenção”, que não é sinônimo de “prioridade absoluta”, como determinam as normativas específicas para as crianças, os adolescentes e os idosos. Não aparecem sujeitos de direitos que certamente, por sua condição de necessidade de maior cuidado precisariam no mínimo de “especial atenção” como população em situação de rua, LGBTI+, entre outros/as.
A sexta orientação fala em “fortalecer os mecanismos de combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil e de acesso ao trabalho decente para todos”. Todavia, num país com mais de 14 milhões de desempregados e mais de 15 milhões de desalentados, com crescimento do trabalho informal, da precarização, inclusive patrocinadas pela reforma trabalhista recente, fica difícil acreditar que será promovido o trabalho decente. No que diz respeito ao enfrentamento do trabalho escravo e do trabalho infantil, a flexibilização das medidas e o desmonte dos organismos e dos espaços coletivos de atuação nestas áreas também não faz crer que efetivamente serão fortalecidas. O que se tem visto é o enfraquecimento destes mecanismos.
A sétima orientação fala em “incentivar o fortalecimento e a integração das políticas de prevenção, atenção e reinserção social de usuários de crack, álcool e outras drogas”. Mesmo que pareça adequada, fica a dúvida do porque dar ênfase ao “crack”, sendo ela “uma” das muitas drogas utilizadas. Ao falar de integração das políticas de prevenção, atenção e reinserção, considerando as medidas tomadas pelo governo para a saúde mental e as políticas neste campo, o que se pode esperar é retrocesso no processo de desinstitucionalização e de fortalecimento de processos terapêuticos bastante discutíveis e nos quais já se identificou a presença de práticas de tratamento desumano, cruel e degradante (como denunciou o Mecanismo Nacional de Prevenção em Combate à Tortura para o caso de Comunidades Terapêuticas, por exemplo).
A oitava orientação fala em “promover e fomentar o acesso, o fortalecimento e a integração de políticas de prevenção e atendimento às vítimas de violência e de demais violações de direitos”, o que seria uma forma de política de direitos humanos para as vítimas.
Como já observamos acima, ao se pretender imparcial, a política não pode fazer esta opção ou, ao faze esta opção, rompe com a imparcialidade. O problema é que se trata de uma orientação que não indica efetivação pois não aponta qualquer medida preventiva consistente e ampla, sabido é que para enfrentar a violência e as violações de direitos humanos, não bastam políticas pontuais e específicas, são necessárias políticas que ampliem e efetivem o conjunto dos direitos humanos, sem o que o que restará é a ação da segurança pública, em geral como medida de contenção mais do que de realização.
A próximas três orientações são principiológicas e não indicam os caminhos de efetivação, diferenciando-se bastante das demais. Na verdade, praticamente repetem o que determina a Constituição, sem assumir mediações concretas para sua efetivação, o que lhes dá um sentido retórico forte. Fala em “promover e fomentar a equidade de oportunidade para todos; promover e fortalecer a igualdade de direitos entre homens e mulheres e entre as diferentes raças e etnias; e promover o respeito à dignidade de todos em sua integralidade, indiscriminadamente, e às liberdades individuais, nos termos do disposto na Constituição”. Evidentemente que uma estratégia precisa respeitar princípios, é o mínimo, mas aqui se esperaria orientações para a concretização, até porque estes e outros princípios já estariam no próprio enunciado do Eixo 5, no qual se inserem.
O segundo grupo de orientações trata do “fortalecimento da cidadania”. Nele aparecem cinco orientações. A primeira fala em fomentar o “papel do cidadão no desenvolvimento econômico nacional” e acrescenta, “com atenção à promoção do bem comum, de acordo com os princípios da solidariedade social e da subsidiariedade do Estado”. Aparentemente incorpora princípios bastante consistentes e desejáveis, no entanto, ao ressaltar o “papel do cidadão” no “desenvolvimento econômico nacional”, a centralidade da orientação restringe-se ao homo oeconomicus, como se o cidadão e a cidadã pudessem ser relativizáveis e o desenvolvimento ser reduzido. Não há cidadão econômico, nem papel econômico do cidadão e da cidadã, sem que haja cidadão/cidadã em sua integralidade. Não há desenvolvimento nacional sem que seja integral e integrador. Assim que, na prática, “cidadão” aqui está mais para uma casca para encobrir o “empreendedor de si”.
A segunda orientação para o fortalecimento da cidadania é o que assume os princípios da Escola Sem Partido, já declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, como orientação para a educação, pois fala em “fomentar a participação da família como corresponsável pelo dever da promoção da educação, respeitando os direitos dos pais ou responsáveis pelos alunos e assegurando a neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. Quem seria contra a participação e corresponsabilidade da família na educação, se é o que manda a Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação? O problema é que, ao enfatizar o respeito aos “direitos dos pais ou responsáveis”, se dá uma unilateralidade que não é o que está inscrito nestas legislações. No final, fala em assegurar a “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”, como se isso fosse possível. O Estado não é neutro e a educação não é realizada com “neutralidade”. A questão é outra, particularmente no que diz respeito à questão religiosa, visto que ao assumir esta posição, recoloca a laicidade do Estado em novo sentido, bastante problemático. Ademais, soa no mínimo falso para quem pretende nomear autoridades “terrivelmente cristãs” em cargos estratégicos do Estado, ou faz discurso na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas e fala em “combate à cristofobia”.
A próxima orientação reduz o problema do atendimento e assistência social a “públicos vulneráveis em situação de violência ou restrição de direitos” – seria a “invenção” de uma nova categoria social”, o que significa ela na prática? – a “melhorar a governança dos programas e serviços especializados”. O problema é bem mais amplo do que de governança. O que existe é subfinanciamento, estratégias e medidas inadequadas, questões que estão muito além da “governança”.
As duas últimas orientações para o “fortalecimento da cidadania” falam de questões relativas ao sistema de justiça: uma fala em “colaborar para o aumento da eficiência e para a democratização do acesso ao sistema de justiça” e a outra em “fomentar os sistemas de resolução de conflitos extrajudiciais”. No caso do acesso à justiça, restringe-se a “colaborar” mas para “aumento da eficácia” e “democratização”, como se não coubesse ao Estado, inclusive ao Poder Executivo, promover ações efetivas para o acesso à justiça, por exemplo, um exemplo elementar, ampliando a presença da Defensoria Pública da União nos territórios. A expressão “aumento da eficácia” é confusa, sendo difícil de entender o que significa, considerando que eficácia sozinha, sem combinar com outros aspectos, fica difícil de ser esperada no acesso à justiça. A orientação que fala em “fomentar os sistemas de resolução de conflitos extrajudiciais” é bastante confusa pois parece querer indicar para “resolução extrajudicial de conflitos”, mas fala em “resolução de conflitos extrajudiciais”. Estariam aqui previstas práticas restaurativas, estratégias de mediação de conflitos? Mas, trata-las como “sistemas” parece exagerar no que significam. Por outro lado, ao não qualificar o seu significado, poderia até ensejar acreditar que práticas milicianas ou patrocinadas por grupos criminosos pudessem estar entre elas, o que não seria estranho dados os vínculos familiares de mandatários como tem sido fartamente denunciado, mas seria execrável...
Enfim, esta análise, que ainda é bastante inicial e com alta dose de dúvidas, visto que o documento, assim como foi publicado, veio sem a devida qualificação do debate e explicitação dos enunciados nele presentes e abre margens para compreensões diversas, algumas das quais indicamos. Ademais, é parcial e não trasversaliza com os demais eixos, o que a torna ainda bastante longe da complexidade implicada no documento. A esperança é que estas observações suscitem reações e contraditórios exatamente para que a sociedade possa compreender com mais profundidade o que vem com esta Estratégia. Afinal, mais do que a explicitação das “intenções” do governo, vai dar base para o que ele vier a fazer e, se o fizer, o fará na sociedade, não somente para aqueles/as que apoiam e defendem o governo, mas no conjunto dela.