A corrupção da palavra: a Igreja também será vítima do trumpismo? Artigo de Massimo Faggioli

Donald Trump, erguendo uma Bíblia, em frente à Igreja Episcopal de St. Johns (Foto: Ninian Reid/Flickr CC)

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05 Outubro 2020

A defesa da democracia é, acima de tudo, a defesa da palavra; com a falsificação da palavra, todo o restante é traído, e a confiança é minada na raiz. A corrupção da palavra corrompe a democracia.

A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por Commonweal, 25-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Em um capítulo sobre mentirosos e mentiras em seus “Ensaios”, Michel de Montaigne traça distinções entre a verdade e o seu oposto. Não há apenas a distinção “entre uma inverdade e uma mentira, e eles asseguram que dizer uma inverdade é dizer uma coisa que é falsa, mas que nós mesmos acreditamos que é verdade”.

Há também a distinção entre as formas de mentir e de dizer a verdade: “Se a falsidade tivesse, assim como a verdade, apenas uma face, estaríamos em melhores condições; pois deveríamos tomar como certo o contrário do que o mentiroso diz: mas o reverso da verdade tem cem mil formas e se estende por um campo indefinido, sem fronteiras ou limites”.

Montaigne dá uma ênfase especial ao valor da palavra, na qual a palavra vem primeiro, e a comunicação, depois. Invertendo as prioridades habituais, Montaigne enfatiza que a palavra é um fim, enquanto a comunicação é um meio: os animais também se comunicam, mas há uma diferença na forma como os humanos falam.

Montaigne chama a mentira de um “vício maldito”, porque é um comportamento eminentemente antissocial: “Não somos homens, nem temos outro vínculo uns com os outros senão do que pela nossa palavra. Se conhecêssemos todo o seu horror e a gravidade disso, deveríamos persegui-la com fogo e espada, e com mais justiça do que outros crimes”.

Como vimos nos últimos anos nos Estados Unidos, a manipulação da palavra por pessoas poderosas se caracteriza pela vulgaridade, superficialidade e banalidade. Montaigne pergunta: “A linguagem falsa não é muito mens sociável do que o silêncio?”. A palavra é o lugar da nossa humanidade singular, ancorada como está em nossa carne, em nossa condição social, em nossa sexualidade, em nossa história pessoal. Somente um uso apropriado da palavra torna o mundo inteligível e humano.

A defesa da democracia é, acima de tudo, a defesa da palavra; com a falsificação da palavra, todo o restante é traído, e a confiança é minada na raiz. A corrupção da palavra corrompe a democracia: “Visto que as nossas relações são reguladas apenas pela forma da palavra, quem falsifica a palavra trai a sociedade pública”.

A democracia prospera na troca, no diálogo, na comparação de opiniões; as palavras moldam as leis, as regras e as normas. Em uma democracia, a palavra substitui a violência, permitindo a resolução pacífica do conflito e possibilitando a coexistência civil.

W. H. Auden falou sobre a conexão entre a falsificação da palavra na praça pública e as brigas nas nossas ruas em 1971. “Como poeta – não como cidadão – há apenas um dever político, que é o de defender a própria linguagem da corrupção. E isso é particularmente sério agora. Ela está sendo corrompida muito rapidamente. Quando ela é corrompida, as pessoas perdem a fé naquilo que ouvem, e isso leva à violência”.

Estamos vendo uma versão ainda mais acelerada disso hoje, especialmente na política estadunidense, à medida que as mídias sociais transbordam de imagens e textos que parecem promover uma estratégia de mentira organizada: ocultação da verdade, distorção do significado dos eventos, apresentação de falsidades como fatos.

Há também a mentira descarada que caracteriza grande parte da propaganda cristã de Donald Trump. Ela é usada para “vender”, deturpar ou justificar praticamente qualquer coisa – desde as suas supostas crenças pró-vida, até o seu desprezo pela expertise científica (ou de qualquer tipo), passando pelos seus ataques a opositores políticos como socialistas ímpios e a sua má gestão da pandemia.

Há membros da hierarquia católica que se subordinaram ao trumpismo e aos objetivos da sua campanha, chegando a afirmar que o opositor de Trump não é um católico “de verdade” – e, ao fazer isso, eles mesmos abraçaram a manipulação da palavra.

As implicações disso vão além da política. Essa é mais uma prova do fracasso do catolicismo estabelecido nos Estados Unidos e de uma traição à tradição intelectual católica. Isso representa mais um passo na metamorfose da Igreja estadunidense em algo como o evangelicalismo branco conservador – uma Igreja com a alma de um partido político etnonacionalista –, cujos laços de comunhão com o papa e a comunidade católica global são condicionais.

Nesse sentido, o esvaziamento da palavra revela uma corrupção da palavra na religião – que tem consequências para o cristianismo. A exortação pós-sinodal Verbum Domini (2010), um dos documentos mais interessantes do pontificado de Bento XVI, contém esta passagem sobre a sacramentalidade da palavra:

“O Papa João Paulo II já aludira ‘ao horizonte sacramental da Revelação e, de forma particular, ao sinal eucarístico, onde a união indivisível entre a realidade e o respectivo significado permite identificar a profundidade do mistério’. Daqui se compreende que, na origem da sacramentalidade da Palavra de Deus, esteja precisamente o mistério da encarnação: ‘O Verbo fez-Se carne’ (Jo 1, 14), a realidade do mistério revelado oferece-se a nós na ‘carne’ do Filho. A Palavra de Deus torna-se perceptível à fé através do ‘sinal’ de palavras e gestos humanos. A fé reconhece o Verbo de Deus, acolhendo os gestos e as palavras com que Ele mesmo se nos apresenta. Portanto, o horizonte sacramental da revelação indica a modalidade histórico-salvífica com que o Verbo de Deus entra no tempo e no espaço, tornando-Se interlocutor do homem, chamado a acolher na fé o seu dom.”

A constituição do Vaticano II sobre a revelação, Dei verbum, fala sobre a compreensão católica de uma “unidade interior” entre atos e palavras. A Dei verbum descreve uma ideia da revelação em que o ser humano é “uma criatura de diálogo que se torna contemporânea do presente de Deus e recebe, na comunhão da palavra, a realidade que é indivisivelmente una com essa palavra”.

A unidade interna entre atos e palavras não se limita à Palavra de Deus. A comunhão com Deus e a nossa humanidade comum pressupõem uma comunhão compartilhada da palavra, sobre a possibilidade de uma comunicação verdadeira. A diferença entre um uso social e antissocial da palavra é a diferença entre o conceito de verdade como fruto da inspiração – que envolve forjar uma aliança pública com o divino e com os nossos semelhantes humanos – e a ideia de conspiração – cujas conotações gnósticas sugerem um conhecimento secreto disponível apenas aos iniciados e, assim, minam a possibilidade dessa aliança nas esferas religiosa e civil.

A palavra tem uma qualidade performativa. Mas a mentira também – nas liturgias secularizadas dos nossos sistemas políticos e subculturas ideológicas, e nos nossos contextos eclesiais. Temos amplas evidências do dano causado pela mentira organizada e sistemática na nossa política. Resta saber ainda o impacto disso na Igreja.

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