25 Junho 2019
Myriam Revault D'Allonnes se pergunta sobre a fragilidade democrática, o ataque à estrutura essencial que significou a multiplicação da pós-verdade e das falsas notícias. Por fim, conclui, a democracia acaba decepcionando... Dissertará na Noite da Filosofia, para a qual é convidada pela Embaixada da França na Argentina. Antes de sair, recebeu a revista Ñ em sua casa, em um bairro parisiense, longe das paisagens de cartão postal, para falar sobre verdades e democracias em um estado precário.
A entrevista é de Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 21-06-2019. A tradução é do Cepat.
O que aconteceu para que hoje a verdade seja objeto de debate e seja questionada?
A verdade sempre foi motivo de debate para a filosofia, mas nunca foi colocada em questão. Inclusive Jacques Derrida e Friedrich Nietzsche questionaram a ideia de uma verdade absoluta, a relação entre verdade e realidade, e Michel Foucault, que falou dos regimes de verdade. Não acredito de forma alguma que a questão da pós-verdade se deva às filosofias da desconstrução ou ao questionamento da relação entre verdade e política ou a verdade e o poder. Como aconteceu após o Brexit, a eleição de Trump e de Bolsonaro. O que há de novo é algo parecido à indiferença em relação à verdade, como se já não tivesse importância. A verdade sempre foi considerada como algo essencial, fundamental.
Em 2006, o dicionário Oxford apresentou a pós-verdade como a palavra do ano...
Após o Brexit, os usos do termo explodiram, houve um aumento de 2000% no vocabulário corrente, nos jornais, nos editoriais. Na realidade, o fato de que esta impossibilidade de estabelecer uma diferença entre o verdadeiro e o falso seja algo que pede para ser interrogado sobre diferentes pontos. Primeiro, qual é a diferença com a mentira tradicional, é a mesma coisa? Por que surgiu no domínio político e nas democracias? Que diferença há entre essa pós-verdade e as mentiras dos sistemas totalitários? Se se trata de um fenômeno realmente novo (penso eu), quais são os problemas que apresenta, não apenas para o sistema político, mas também para o mundo comum?
Brexit, Trump, Bolsonaro. Que fenômenos semelhantes ocorreram na França?
Na França, temos Marine Le Pen... Há um problema, que é que a mentira na política sempre existiu. Falei sobre Bolsonaro, Trump e do Brexit porque são campanhas políticas que foram levadas por pessoas que chegaram ao poder sem mentir simplesmente, mas desenvolveram toda a sua campanha sobre o fato de que não importava se algo era verdade ou não. O que não é exatamente o mesmo que mentir.
Aquele que mente, de certo modo, sabe que está mentindo. O mentiroso não faz a verdade desaparecer como referência. A conselheira de Trump pôde falar de realidade alternativa. Marine Le Pen divulga contraverdades sobre o Tratado de Aix-la-Chapelle e diz que a França vai vender seu território para a Alemanha. São mentiras deliberadas.
Qual o papel das novas tecnologias, as redes sociais?
É um fator que facilita a disseminação da informação falsa, ao contrário da imprensa tradicional, onde os jornalistas geralmente verificam suas fontes e se preocupam com os fatos. As redes difundem de modo horizontal, sem verificação das fontes, se faz por algoritmos. Multiplica-se uma enorme massa de informações disponíveis para os consumidores, que não tem filtro.
Sabemos muito bem que, em tais casos, aqueles que recebem as informações não são capazes de exercer um juízo crítico, porque eles dão prioridade ao que corresponde a seus preconceitos e suas ideias preconcebidas. É um tipo de disseminação de informação que, ao invés de favorecer o espírito crítico, a discriminação do verdadeiro e do falso, reconforta os indivíduos em suas crenças prévias.
De fato, a pós-verdade é facilitada por essa difusão através das redes. É necessário fazer uma distinção entre o desenvolvimento da pós-verdade em um sistema democrático e a mentira generalizada de um sistema totalitário. No sistema totalitário, temos uma ideologia massiva, extremamente forte, que cobre a realidade com uma espécie de manto, uma armadura lógica. É isso que Hannah Arendt analisou muito bem sobre as ideologias totalitárias, um tipo de raciocínio que não precisa da realidade para se desenvolver, porque é perfeitamente lógico. É tão lógico que os fatos não podem contradizê-lo.
Como o sistema democrático reage ao questionamento da verdade?
Na democracia, a pluralidade de opiniões prevalece, mas o requisito fundamental é que esse debate seja legítimo apenas se for baseado em fatos. A legitimidade desse debate de ideias supõe que fatos reais estão sendo discutidos. O perigo é a transformação dessa pluralidade sustentada por fatos em um relativismo de opiniões: acho que, eu digo que, eu prefiro que...
Uma falsa democracia.
Sim, exatamente. Não é um desenvolvimento da cultura democrática... Sei que alguns ensaístas franceses disseram que as redes são um desenvolvimento da democracia, porque qualquer um pode se expressar e o conhecimento não está mais concentrado no poder, mas é um absurdo.
A multiplicação de notícias falsas, as "infaux" em francês, afeta o sistema democrático. Todos nos lembramos quando George Bush e Colin Powell falaram sobre as armas químicas do Iraque, depois Tony Blair os apoiou e atacaram. E era mentira.
Na ONU, os estadunidenses declararam que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa: uma mentira de Estado. Sempre houve mentiras, viver em uma democracia não é viver na verdade. O problema é que essa mentira foi desmentida pelos fatos. Sabemos agora que era mentira. A mentira não elimina a diferença entre o verdadeiro e o falso.
O que acredito é que agora a multiplicação de opiniões, de discursos, que consideram que não importa o que seja verdadeiro ou falso, introduzem algo novo, que não é a mentira política tradicional e surge um regime geral de indiferença à verdade. Em Watergate, nos Panama Papers e Paradise Papers, a imprensa de investigação pôde trabalhar como um contrapoder para fazer explodir esses escândalos. A democracia não é de modo algum o reino da perfeição moral, mas oferece os meios para poder restaurar a verdade.
Como se combate a pós-verdade?
Mostra uma crise muito profunda da democracia, a situação é extremamente grave porque a pós-verdade é um dos elementos fundamentais da deterioração da democracia e até mesmo do dano ao mundo comum compartilhado. É preciso recuperar as condições do debate democrático, do julgamento, do espírito crítico. A pós-verdade acompanha uma crise muito profunda da democracia, do debate democrático, da pluralidade.
Não temos mais as condições para um verdadeiro conflito, que coloca frente a frente argumentos que não estão desvinculados do real, dos fatos. É algo muito complicado resolver porque é muito a longo prazo, o que também requer educação. Acredito que a educação para a democracia está falhando.
Myriam Revault é filósofa e professora emérita das universidades da École Practique des Hautes Études. Dirigiu, de 2006 a 2013, a coletânea de filosofia para crianças "Chouette! Penser", na editora Gallimard. É especialista em filosofia ética e política. Suas pesquisas enfocam o terror da Revolução Francesa, o "dano da política" e o "caráter intratável" das paixões como base do vínculo social.
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Mentiras sempre existiram, o novo na democracia é a “indiferença geral à verdade”. Entrevista com Myriam Revault D’Allones - Instituto Humanitas Unisinos - IHU