01 Outubro 2020
As janelas do apartamento na Piazza della Città Leonina, a poucos metros da colunata de São Pedro, foram abertas já pela manhã para arejar a casa que ficou fechada por quase três anos. O cardeal George Pell chegou a Roma. Ele não punha os pés desde 2017, annus horribilis para o prelado nomeado pelo Papa em 2014 prefeito da poderosa Secretaria para a Economia, obrigado a retornar à Austrália para se defender de um processo com a acusação, formulado pela Polícia e pela Procuradoria do Estado australiano de Victoria, de abuso sexual contra menores. Crime do qual, após uma condenação em primeiro grau, seguida por um longo e complexo trâmite processual e treze meses de prisão, foi absolvido pelo Tribunal Superior da Austrália no final do ano passado.
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada por Vatican Insider, 30-09-2020. A tradução de Luisa Rabolini.
O imponente cardeal chega agora em um clima escaldante dentro dos muros leoninos, devido à chegada do secretário de Estado estadunidense Mike Pompeo e dos inspetores da Moneyval que devem avaliar a eficácia dos instrumentos legislativos e organizacionais adotados nos últimos anos para prevenir a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo (e, portanto, o ingresso da Santa Sé na chamada "lista branca"), mas sobretudo após a defenestração do Cardeal Angelo Becciu, o ex-substituto da Secretaria de Estado que a narrativa dos Sagrados Palácios descreve como ferrenho inimigo do "Australian Ranger". Um dos tantos que Pell teria conseguido na Cúria Romana pelos modos rudes e alguns programas de reforma excessivamente "precipitados" que pretendia realizar com a Secretaria para a Economia, agora sob a liderança do jesuíta Juan Antonio Guerrero Alves, SJ.
Terno escuro, máscara azul, George Pell pousou na tarde de quarta-feira, 30 de setembro, por volta de 14, no aeroporto de Fiumicino após um voo de cerca de vinte e duas horas. Parece que ele tenha se submetido a um teste-covid antes de deixar Sydney, onde reside desde 9 de abril de 2020, após sua libertação da Penitenciária de Alta Segurança de Barwon. Um motorista esperava por ele em um carro azul com placa italiana para levá-lo ao que foi seu apartamento como prefeito por três anos. “It’s lovely to be here”, “é um prazer estar aqui”, foram as únicas palavras ditas a um pequeno grupo de jornalistas e fotógrafos que o aguardavam à porta. Pell entrou rapidamente no prédio enquanto uma mulher que surgiu do nada gritava contra ele insultos pesados em inglês e italiano. “Você é uma pessoa horrível! Felizmente deixou a Austrália! Sim, volte para seu luxuoso apartamento depois de ter destruído a Igreja na Austrália”, gritava. “Eu represento as pessoas na Austrália, aquele é um monstro!” disse a mulher a algumas câmeras, antes de ser afastada. Não são cenas novas para o prelado que, a cada sessão do processo, encontrava diante do tribunal de Melbourne enxames de manifestantes com camisetas e faixas com frases do tipo: “Pell go to Hell!”.
O cardeal deveria, portanto, ficar no apartamento do Vaticano e não, como inicialmente imaginado, na Domus Austrália, residência para os padres australianos perto da estação Termini, ou mesmo na Casa Santa Marta. Nos próximos dias, ele também deverá enfrentar uma mudança de seu apartamento na Piazza della Città Leonina, onde livros, móveis e roupas permaneceram por todos esses anos. A mudança seria justamente o motivo do retorno a Roma e não uma suposta convocação pelo Papa - como afirmado nos últimos dias por alguns meios de comunicação - talvez para esclarecer alguns pontos da história obscura da compra milionária do imóvel de Londres, sobre a qual o ex-prefeito da Secretaria para a Economia teria pedido verificações já em 2014, alertado sobre a existência de fundos extra-orçamentários e práticas "anômalas".
Nenhum desmentido oficial veio do Vaticano sobre o assunto, mas várias fontes internas classificam a notícia da convocação do Papa como fake news. A porta-voz do cardeal, questionada a respeito, não responde nem a mensagens nem a e-mails. É certo, porém, que Francisco, informado do retorno a Roma de seu ex-ministro da Economia, o receba nos próximos dias e é provável que o caso de Londres seja tratado na conversa. "Talvez amanhã", disseram pessoas próximas ao cardeal. Embora Pell deveria ter uma obrigação de quarentena como qualquer viajante vindo do exterior.
“Assuntos oficiais do governo do Vaticano” é a motivação apresentada pelo cardeal para obter permissão de viagem do governo federal australiano, que fechou as fronteiras como medida de precaução para o Covid. Na web a notícia da viagem do cardeal - ainda muito criticado, embora absolvido - acabou em meio a um turbilhão de críticas: "Por que o governo australiano proibiu os cidadãos de deixar o país ou os bloqueou no exterior e concedeu uma isenção para o cardeal?”, perguntam os usuários. Qualquer pessoa que "viaja a negócios oficiais de um governo" não precisa pedir permissões especiais, foi a resposta do Departamento de Assuntos Internos da Austrália.
Nestas semanas, mas talvez meses, em que Pell deveria residir em Roma, alguns especulam também um encontro com Becciu. Os defensores do prelado australiano, liderados por Andrew Bolt, conhecido jornalista do Herald Sun, entrevistador quase oficial de Pell e fervoroso defensor de sua inocência desde as primeiras audiências do processo, falam de uma "revanche" do cardeal ou de "um desafio aos poderosos inimigos agora envolvidos no pior escândalo financeiro do Vaticano das últimas décadas”. Também há quem destaque esse tipo de retaliação poética do cardeal que caiu em desgraça por falsas acusações de pedofilia, que regressa como homem livre poucos dias depois de o "rival" Becciu renunciar ao cargo de prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e perder os direitos do cardinalato por acusações de peculato e favorecimento.
Uma notícia comentada imediatamente por Pell (o único cardeal a se manifestar sobre o episódio) em um comunicado: “O Santo Padre foi eleito para limpar as finanças do Vaticano. O jogo é longo e devemos agradecê-lo e cumprimentá-lo pelos últimos desenvolvimentos. Espero que a limpeza dos estábulos continue tanto no Vaticano como em Victoria”. Palavras pesadas que evidenciam a velha ferrugem entre os dois cardeais. Becciu parece, de fato, que teria interferido no passado em uma revisão externa feita pela PriceWaterhouseCooper de todos os Dicastérios do Vaticano planejada pela recém-criada Secretaria para a Economia e que tenha se oposto a várias reformas propostas por Pell.
O próprio Becciu, em entrevista coletiva no dia seguinte ao seu pedido de demissão, questionado por jornalistas, havia confirmado o “conflito profissional” com o colega. “Nós tínhamos uma maneira de ver e ele queria aplicar leis que não haviam sido promulgadas. Eu sabia que ele tinha diferenças comigo e um dia pedi a ele uma audiência. Ele me recebeu e me fez um interrogatório: se eu acreditava na reforma, se eu era contra a corrupção, se eu estava com a Apsa ou com a Secretaria para a Economia ... Mas nos despedimos em boas relações. Em outra ocasião, em uma reunião em presença do Papa, discutíamos como usar os fundos da Secretaria de Estado; eu dava sugestões e ele a certa altura mandou me calar: "Você é desonesto". Eu perdi a paciência. Eu lhe disse que meus pais me ensinaram a honestidade desde criança e que desonesto é o pior insulto que poderia ser feito a mim. No final, o Papa me disse: "Você fez bem". Mas também me lembro que quando Pell voltou para a Austrália, escrevi-lhe um bilhetinho: “Cara Eminência, apesar das diferenças profissionais, sofro por essas acusações e, como sacerdote, espero que sua inocência seja plenamente provada. Minhas saudações e um abraço”. Se Pell ainda está convencido que eu seja desonesto, não posso fazer nada".
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O cardeal Pell retorna a Roma depois de três anos: “É um prazer estar aqui”. Insultos de uma mulher - Instituto Humanitas Unisinos - IHU