19 Agosto 2020
A atual popularidade do presidente é o resultado da combinação de muitos fatores. Relevante é saber se este nível de aprovação pode se manter, escreve Bernardo Ricupero, professor de ciência política na USP, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 18-08-2020.
No dia 08 de agosto se anunciou que o Brasil atingiu a assombrosa cifra de 100 mil mortes pelo novo coronavírus. O número de óbitos ultrapassa os causados em 2019 por acidentes de trânsito e assassinatos e, há mais de cem anos, pela Guerra do Paraguai. Faz com que o país seja o segundo no número de mortes provocadas pela pandemia, ultrapassado apenas pelos EUA.
No dia 12 de agosto, o Datafolha indicou que o presidente Jair Bolsonaro atingiu seu recorde de aprovação, 37% dos entrevistados considerando sua administração como ótima ou boa. Este é, porém, o mesmo governante que minimizou a gravidade do covid-19 e sabotou o distanciamento social, medida comprovadamente mais eficaz para combater seu alastramento.
Como, então, explicar que em meio a uma das maiores tragédias sociais da história brasileira seu presidente colha índices de popularidade inéditos para ele? A explicação pode favorecer fatores conjunturais e sustentar que a tática de Bolsonaro ao longo da pandemia foi bem sucedida. Ou seja, ele teria conseguido se desvincular da responsabilidade pela propagação do coronavírus, além de atacar uma medida, a quarentena, que se tornou crescentemente impopular. Tal rejeição seria especialmente grande entre os mais afetados pelo distanciamento social, autônomos e donos de pequenos negócios, setores de antemão sensíveis ao discurso bolsonarista.
A explicação pode também favorecer fatores estruturais e defender, em poucas palavras, que a vida não tem grande valor no Brasil. Prova disso é o impressionante número de mortes violentas que, em alguma medida, foi, ao longo do tempo, incorporado ao nosso cotidiano, possivelmente consideradas como “coisa da vida”. Como resultado dessa predisposição, as mortes pelo covid-19 acabariam sendo naturalizadas, pouca diferença fazendo com que Bolsonaro seja o ceifador de vidas que é. Não é de se estranhar que apareça um sentimento como esse numa sociedade formada pela escravidão e que nunca valorizou seu povo.
A explicação pode, finalmente, favorecer uma ou outra medida, o auxílio emergencial à população mais vulnerável merecendo destaque entre elas. Sinal do impacto dessa iniciativa é que entre os que recebem o auxílio, cerca de 40% da população, a aprovação do presidente chega a 42% e sua reprovação na região mais pobre do país, o Nordeste, caiu, nos cinquenta dias desde a última pesquisa Datafolha, de 52% para 35%. Não deixa de haver certa ironia que um dos principais efeitos do auxílio emergencial seja alavancar a popularidade de Bolsonaro, já que, como é amplamente conhecido, o governo defendeu originalmente um aporte de R$ 200,00, o valor tendo chegado a R$ 600,00 apenas devido à insistência do Congresso.
Na verdade, a atual popularidade de Bolsonaro não é o resultado de nenhum desses fatores isolados, mas da combinação deles. A questão mais relevante é saber se este nível de aprovação pode se manter.
Para buscar resposta a essa pergunta é também preciso levar em conta fatores conjunturais e estruturais. O problema mais imediato consiste na nova situação criada pelo coronavírus e a resposta atabalhoada do governo a ela. A questão mais permanente a considerar é o comportamento da coalizão que elegeu e sustenta Bolsonaro. Trata-se, aqui também, de imaginar como essas dimensões se articulam.
É possível, em especial, que a nova conjuntura criada pela pandemia provoque um realinhamento eleitoral do bolsonarismo. A analogia evidente é com o lulismo pós-mensalão analisado pelo cientista político André Singer. Neste caso, o afastamento da classe média do candidato do PT, que começara na eleição de 2002, teria sido potencializado com o escândalo. Em compensação, Lula aumentou seu apoio, na eleição de 2006, entre os mais pobres e na região Nordeste.
A condução ou falta de condução de Bolsonaro da pandemia contribuiu para o desgaste do governo com a classe média. Combinada com a saída do popular Sérgio Moro do Ministério da Justiça consolidou o afastamento desse setor do bolsonarismo. Por outro lado, o auxílio emergencial criou possibilidades para Bolsonaro em segmentos do eleitorado nos quais o capitão reformado tinha dificuldade de penetrar, em particular, a antiga base lulista, identificada com os mais pobres e o Nordeste.
Nos dois casos, Lula e Bolsonaro contaram com o apoio no Parlamento do Centrão, aliança informal de partidos sempre disposta a sustentar o governo. A diferença é que o Mensalão surgiu do Centrão, ao passo que o coronavírus levou à aproximação com o Centrão. Além do mais e mais importante, o realinhamento do lulismo se deu em condições em que a economia crescia devido ao boom das commodities, já em 2006 o PIB tendo crescido 4%. Em contraste, os cálculos são que o PIB de 2020 deve cair no mínimo 5%.
De qualquer maneira, o coronavírus provocou um rearranjo na coalizão que sustenta Bolsonaro. Se o capitão reformado foi eleito apoiado por um núcleo de extrema direita, à qual se juntou a classe média “lavajista”, a burguesia financeira e o agrobusiness identificados com o discurso liberal, ademais de setores populares pentecostais e militares ressentidos com a Nova República, a configuração da aliança mudou desde março. Em resumo, a classe média “lavajista” se afastou do governo que, em compensação, passou a contar com apoio entre setores populares contemplados com o auxílio emergencial e no Centrão.
A questão agora para Bolsonaro é como manter o apoio de sua nova base sem alienar seus antigos aliados.
No caso dos mais pobres, o problema principal é o fim do auxílio emergencial. Consequentemente, será preciso criar compensação na forma de algum programa de renda mínima. O desenho que tal programa assumir pode, entretanto, criar tensões no interior da coalizão bolsonarista. A equipe econômica faz questão de que o já anunciado Renda Brasil seja o resultado da unificação dos programas sociais já existentes, não acarretando, portanto, pressão num Orçamento com gastos já exacerbados devido ao combate à pandemia.
No caso do Centrão, é preciso que Bolsonaro mude o discurso que o elegeu presidente. Em resumo, ao invés do ataque ao “sistema”, teria dese aliar ao “sistema”. O novo discurso tem sido ensaiado desde meados de junho, em especial, depois da prisão do “escudeiro” Fabrício Queiroz, quando os ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Congresso foram amenizados. De maneira paralela, os aliados mais recentes do presidente podem incomodar o núcleo duro do bolsonarismo. O descontentamento tende a aparecer principalmente se for percebido que a aproximação do “Mito” como Centrão é mais do que um movimento tático.
Além do discurso, a aliança com o Centrão deve favorecer uma nova prática. Ela deve se traduzir, em especial, em mais obras e gastos governamentais. Que há apoio para a nova orientação no interior do governo ficou claro na famigerada reunião ministerial de 22 de abril, em que o ministro-chefe da Casa Civil, general Braga Netto, ao anunciar o chamado Plano Pró-Brasil, chocou-se com o ministro da Economia, Paulo Guedes.
Combinada com a busca de apoio entre os setores populares, esta orientação cria constrangimentos para o grupo liberal. Não por acaso, Guedes, diante da volta de diversos auxiliares à iniciativa privada, num misto de advertência e chantagem, falou em “debandada” do governo e chegou a acenar para a eventualidade de um impeachment. É preciso, portanto, esperar para verificar como tal movimentação repercutirá junto à burguesia financeira e ao agrobusiness.
Não é necessário, contudo, grande clarividência para perceber que os atuais níveis de popularidade de Bolsonaro estão longe de serem seguros. Por outro lado, sua derrota dependerá sobretudo da maneira como a oposição irá agir.
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A vitória de Bolsonaro? Artigo de Bernardo Ricupero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU